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Julio Bertolin

Ensino a distância e os perigos da expansão mercantil

Avanço vertiginoso do modelo está reproduzindo desigualdades da sociedade

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Julio Bertolin

Doutor em educação, mestre em ciência da computação e pesquisador das bases de dados do Enade, é professor da Universidade de Passo Fundo (RS); consultor em projetos sobre educação superior do MEC, da Unesco e do Unrisd

Em quase todos os lugares, a educação superior se tornou uma instituição central para a sociedade. Numa geração, houve um extraordinário avanço global do nível superior, que ultrapassou a média do crescimento econômico. Os 215 milhões de matrículas do ano de 2015 em graduações em todo o mundo devem ampliar para quase 380 milhões em 2030. Todavia, no contexto da sociedade do conhecimento, a efetiva contribuição com o crescimento econômico e o desenvolvimento social dos países depende da forma como os sistemas estão organizados. Em muitos casos, a expansão gera massificação, mas nem sempre leva à democratização que envolve equidade e qualidade.

Contextos diversos de articulações entre redes de universidades públicas, faculdades privadas mercantis e instituições sem fins de lucro, por meio das modalidades presencial e a distância (EAD), configuram resultados diferentes. Logo, é importante analisar questões relacionadas ao quanto deve ser provido pelo setor público, qual a melhor forma e dimensão do setor privado, bem como sobre qual o tamanho e qualidade da modalidade a distância.

Ampliação do ensino a distância deixou prédios de faculdades particulares ociosos - Karime Xavier 8.dez.2022/ Folhapress - Folhapress - Folhapress

O Brasil, mesmo possuindo baixas taxas de atendimento, teve uma grande expansão na educação superior. De 2000 a 2020, as matrículas triplicaram para quase 9 milhões. Tal crescimento foi sustentado pela privatização do sistema, especialmente por faculdades com fins de lucro e cursos na modalidade a distância. Até 1990, inexistiam instituições mercantis; atualmente, em conjunto com as demais privadas, elas possuem aproximadamente 80% das matrículas. Em 2005, menos de 2% dos graduandos estavam em cursos a distância não estatais. Em 2022, a EAD contava com mais da metade das matrículas desta rede.

Estudos baseadas em evidências têm indicado que a qualidade da modalidade a distância é inferior à presencial. De acordo com artigo recente da Higher Education Police, as chances de estudantes de cursos EAD estarem classificados com notas elevadas no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) são significativamente inferiores que as chances dos concluintes da modalidade presencial: quase 60% menor nos cursos de administração, 150% em serviço social e 40% na pedagogia. Num caso raro de "transgressão" da teoria do "capital cultural", que determina maior sucesso escolar para grupos favorecidos, estudantes da modalidade presencial com background baixo têm obtido no Enade desempenho superior a graduandos da modalidade EAD de background elevado.

Considerando ainda que o perfil dos concluintes da modalidade EAD é de menor nível socioeconômico, constata-se que o processo de expansão da educação superior brasileira está produzindo e reproduzindo as desigualdades existentes na sociedade. A parcela de graduandos a distância com indicadores socioeconômicos elevados (10%) é bem menor que da modalidade presencial (25%). Nos cursos de licenciatura, os problemas da EAD têm consequência geracional. Quando crianças e jovens pobres têm professores nas escolas públicas que frequentaram graduações que não propiciam formação adequada, certamente se está negligenciando esta e as futuras gerações num círculo vicioso entre educação básica e superior que causa exclusão e falta de oportunidades.

Países estão restringindo a EAD por evidências de aprendizagem insuficiente, iniquidade e mercantilização. O Brasil, sob pena de altos custos e riscos, como não aproveitar os benefícios da educação superior na sociedade do conhecimento, deve aperfeiçoar a avaliação e regulação de instituições e cursos para controlar a expansão da modalidade a distância e organizar melhor o sistema.

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