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Maílson da Nóbrega

ONU: a lógica do poder de veto

Extinguir o poder é quase impossível, pois os motivos que o justificaram persistem

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Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

O presidente Lula tem criticado o direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, de que gozam cinco potências vencedoras da 2ª Guerra. A motivação é o veto dos Estados Unidos à resolução proposta pelo Brasil, que condenava os ataques terroristas do Hamas e obrigava Israel a encerrar o bloqueio à Faixa de Gaza. Para os americanos, o texto não garantia a Israel o direito de defesa.

Como tem feito em relação a temas complexos, Lula parece não ter estudado cuidadosamente o assunto. Para ele, esse poder é uma "loucura", além de não ser "democrático". Por isso, defendeu uma reforma para democratizar o conselho, estendendo o mesmo direito a países como Brasil, Argentina, México, Egito, Índia e Nigéria. Em debate na TV entre jornalistas, um deles afirmou que tal poder seria um erro histórico cometido quando da criação da ONU. Lula teria razão, portanto. Outro sustentou que o multilateralismo seria violado pelo exercício desse poder.

Tanque israelense em área destruída por ataques no norte da Faixa de Gaza - Gil Cohen-Magen/AFP

Na verdade, essa prerrogativa é mais antiga do que se pensa. Constava do Tratado de Versalhes (1919), que criou a Liga das Nações. Havia quatro membros permanentes e quatro não permanentes, todos com poder de veto. Em 1936, o número dos não permanentes foi elevado para 11. Assim, 15 países podiam vetar qualquer assunto, o que dificultava reunir a concordância em muitos temas.

Na reunião de São Francisco (1946), convocada para discutir a criação das Nações Unidas (ONU), as potências vencedoras da 2ª Guerra deixaram claro que a medida estaria condicionada a que lhes fosse atribuído o poder de veto. Francis Wilcox, assessor da delegação americana, afirmou peremptoriamente que ou carta da ONU incluía tal poder ou não haveria carta. Para o presidente americano, Harry Truman, "sem o veto, nenhum acordo será aprovado pelo Senado".

O veto fora discutido na reunião de Ialta (1945), entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética. Privilegiava-se a unanimidade, não apenas pelo desejo das grandes potências de agirem em conjunto, mas também para proteger seus direitos soberanos e o interesse nacional de cada uma. Muito provavelmente, percebia-se como inevitável um processo de descolonização que elevaria o número de membros da ONU e do próprio conselho. Temiam a ditadura da maioria, no que estavam certos. Todos os novos países independentes da África votaram sistematicamente contra proposições de interesse dessas potências. O veto era, desse modo, uma consequência da realidade política.

Reunião do Conselho de Segurança sobre Israel-Gaza - Justin Lane/Shutterstock

A composição do conselho e o poder de veto têm sido objeto de controvérsia. Seus críticos argumentam que ele reflete a estrutura de poder do fim da 2ª Guerra. Trata-se, diz-se, de privilégio anacrônico, injusto e contraproducente. A enorme influência do poder de veto tem sido considerada como causa da incapacidade da ONU de agir em casos de genocídio, violência e violação de direitos humanos.

Esforços de reforma têm-se frustrado. Discutem-se ideias para tornar o conselho mais transparente e para atender a demandas de quatro países: Brasil, Alemanha, Índia e Japão. Mesmo contando com o apoio explícito de algumas potências, nunca foi possível construir o ambiente favorável a tais mudanças.

Tornar-se membro do conselho é um sinal inequívoco de prestígio, de influência e de reconhecimento da relevância dos que o pleiteiam e principalmente daqueles de menor peso estratégico constantes da lista de Lula. Na verdade, sua extensão a outros países tenderia a ampliar o uso desse poder. Isso acabaria reeditando a dificuldade de decidir de que padecia a Liga das Nações. Mesmo assim, é legítimo que o Brasil insista em tornar-se membro permanente.

Por outro lado, extinguir o poder de veto é praticamente impossível, pois os motivos que o justificaram permanecem, ainda que sejam procedentes muitas das críticas sobre o seu exercício pelas grandes potências. Tal mudança seria rejeitada exatamente pelo uso desse poder pelos que hoje o detêm.

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