A paixão segundo Conda

Sucuri de estimação reaviva dilema entre presa e predador

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Lucrecia Zappi
Nova York

Gostava de tê-la sob controle, próxima do seu corpo. Resvalou os dedos na superfície escamosa do lençol, consciente de que embaixo, rente à sua pele, a sucuri insone reacomodava as vértebras, uma a uma, em um jogo que durava toda a noite e embalava sua dona em um sono mal dormido, mas verdadeiro. Como a cobra se emaranhasse nos panos, dona Ivete decidiu dormir nua, mais por uma questão de segurança que por uma certa dependência afetiva, ou erótica até, porque reconhecia algo excêntrico naquela estreiteza entre o ser e o animal.

O ser e o animal. Desistiu de tentar definir quem era quem, tinha firmado a atenção nas duas palavras alguma vez, coisa de antropologia, ou seria antropofagia, antroposofia. Depois de mais de cinco anos com sua pet, classificada de silvestre ou selvagem, para Ivete era apenas Conda, sua melhor amiga. Conda, no entanto, tinha temperamento rebelde, era uma sucuri adolescente.

Notívaga, se acarinhava nas pernas de Ivete, deixando rastros nos braços e em seu rosto, que se transformavam em imagens entorpecidas de sono, entrecortadas por belas manchas, o burburinho de rios e folhas pisadas apodrecidas que traziam o cheiro profundo da mata. Conda deslizou da cama para explorar o quarto, e seus três metros e meio circundaram quase por inteiro a piscina inflável na sala e o aquário que aprendeu a destampar em busca de bichos. Escondia-se atrás dos sofás e teimava em vir quando era chamada. Às vezes subia na geladeira por trás e explorava com avidez a pequena fresta da janela da área de serviço.

Sucuri aparece em meio ao habitat montado para ela no Museu Biológico do Instituto Butantan
Sucuri é atração principal no Museu Biológico do Instituto Butantan - Acervo pessoal

Uma vez escapou. Soube pelo interfone. Estava fincada no braço do porteiro pelos dentes, depois de uma batalha com rodo e spray limpa-vidros. Não é peçonhenta, Ivete repetiu aos berros, mas foi obrigada a pagar pelo antibiótico. A mordida deixou uma infecção feia. Em uma reunião emergencial de condomínio ficou estipulado que no prédio só seria permitido cachorro e gato. Bicho de estimação, ali, não dava para ser exótico.

Conda não é exótica, Ivete retrucou. Sucuris existem nas nossas florestas e rios, habitam nosso imaginário indígena, ajudaram na criação do mundo! Além disso, tem chip e os papeis obrigatórios. Ibama, tem tudo. E fiquem sabendo que os casos que pipocam na internet, esses que vocês ficam vendo, porque eu sei, onde sucuri preda ser humano, é tudo montagem barata. Além disso, Conda é pescetariana.

Diante do olhar letárgico de seus vizinhos, Ivete calou, ouvindo a sentença ecoar na cabeça. A dor que sentiu no fundo do peito classificou de constrição. Mudaram-se para uma casa de dois quartos, no subúrbio. Montou a piscina no quarto, para tê-la mais próxima, que não fosse parar na rua, se estavam felizes as duas sobre o colchão, nas noites de manchas úmidas, porque Conda também tinha seus acidentes e fralda em cobra não cabia.

Da indignação que crescia ao ver o choque disfarçado nos familiares que se distanciavam pelo asco da situação, entre a falta de higiene e a insanidade ou indecência daquele falo gigantesco arrastado, camuflando-se sobre o tapete esverdeado cada vez mais pintado de manchas pretas, Ivete assumiu de vez sua paixão. A beleza muda e vigilante de Conda. Não fechava os olhos nem para dormir.

Foi com raiva e sem saudades do prédio que Ivete passou a alimentá-la com ratinhos da internet. Um gato de rua ou um cachorro desapercebido. Ivete nutria sua alma gêmea, considerando a relação isomorfa de identidade entre elas e seu desejo cada vez mais explícito de se metamorfosear em cobra. Pensou em consumir veneno de sapo e ayahuasca juntas, estreitar-se no mito do encontro entre o homem e o animal para descobrir sua verdadeira essência. Em vidas passadas, tinha sido serpente. Era óbvio.

Tempos depois da mudança de casa, Conda andava meio quieta. Aos poucos deixou de comer. Recusava a nova dieta, os mimos em pânico que Ivete trazia da rua. Diante de sua inércia, levou Conda ao veterinário. Mesmo que Ivete o interrompesse para lembrá-lo que seu nome era Conda, ele se referia ao bicho como sucuri, e que deixara de comer porque se preparava para devorá-la. A risada de Ivete foi tão ruidosa que Conda se empacotou em um canto. O incômodo, porém, veio da desconfiança súbita da traição de Conda.

O veterinário a aconselhou que deixasse de dormir com ela. Seu habitat é uma king size, mas não é feito de colchão. Hoje em dia andam confundindo bicho com gente. Ivete ainda foi obrigada a ouvir sermão sobre o distanciamento do homem da natureza, por isso essa maluquice: bicho era mais querido do que filho.

Ivete considerou a piscina inflável e o aquário que criara para ela e todo o esforço que fizera com amor para acomodar sua cria. Chamou o veterinário de radicalizado. De fundamentalista. Carinho de bicho é puro, é inocente, ela disse. Minha relação com ela é mais do que saudável. Você não entendeu nada.

Em casa, no entanto, passou a suspeitar de Conda. Mudou-se para o sofá para deixá-la mais à vontade na cama. Sentia-se avarenta e odiosa porque Conda seguia sem comer. Implorava aos prantos para que a cobra se sensibilizasse com sua dor.

Uma noite, Ivete deu-se conta. Era carência, Conda passava por uma fase difícil. Se todo o mundo passa. Tirou a roupa e deitou na cama. Sentiu o roçar em suas pernas, a presença sobrenatural nos braços, a força criadora se estreitando em espirais, cada vez mais perto, para mais perto de si.

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