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Carlos Irineu da Costa

O paradoxo da inteligência artificial no Brasil

Não há como ignorar o vasto déficit de pesquisa e desenvolvimento no país

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Carlos Irineu da Costa

Palestrante e pesquisador independente em inteligência artificial, é especialista em linguística computacional (Universidade de Chicago)

A Academia Brasileira de Ciências publicou, em 9 de novembro de 2023, um documento intitulado "Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil". Rico em conceitos e também crítico à inação governamental, esse documento se mostra, de minha perspectiva como empresário e desenvolvedor em tecnologia, excessivamente brando. A ABC deixa de mencionar que a situação atual em IA é somente um desdobramento de uma desestruturação ampla que perdura há décadas, consistente com uma falta de vontade política para criação de maior independência nacional.

O foco do documento em inteligência artificial é louvável e deixa claro que o Brasil parou no tempo. Mas as recomendações deveriam ser ampliadas para o vasto déficit de pesquisa e desenvolvimento no país. O atraso civilizacional está embasado numa visão de que tecnologia é para países ricos, perceptível no descaso que sucessivos governos, de diferentes orientações ideológicas, têm com o setor de ciência e tecnologia (C&T). O Brasil é gigante em dimensões e recursos, mas perde oportunidades e cérebros enquanto sonha. Pior, ignora e ostraciza aqueles que se esforçam para transformar sonhos em realidade.


Pensemos no impacto global de tecnologias desenvolvidas aqui, como a linguagem de programação Lua. Foi criada em 1993 por Roberto Ierusalimschy, Luiz de Figueiredo e Waldemar Celes, na PUC-Rio. Apesar de sua importância mundial, sendo usada por Nasa, Sony e outros, recebe pouca atenção no Brasil. Elixir, linguagem elaborada por José Valim, é outro exemplo. Formado em engenharia pela USP, Valim criou um pilar sólido e produtivo usado em todo o planeta. Ele está na Polônia, e sua empresa foi adquirida pelo Nubank em 2020.

São apenas dois casos notórios entre muitos, destacando o desinvestimento e a preocupante "fuga de cérebros" —quando indivíduos talentosos partem para melhores oportunidades no exterior. O êxodo de pessoas e conhecimento afeta todo o Brasil, pois resulta em empresas menos qualificadas, na perda de patentes e em dependência de tecnologias inadequadas que compramos caro no exterior. Não temos estrutura física —por vezes nem banheiros funcionais em universidades— para nutrir nossos próprios talentos. Pensando nesse cenário, me parece que, como nação, não desejamos sair de nosso atraso.

Colagem mostra computador flutuando no espaço, dentro dele os criadores da linguagem de programação Lua. Saindo do pc, a lua e dela um passarinho do angry birds e o Mickey e o Osvaldo, da Disney. Acima deles, um satélite da Nasa. O fundo é repleto de estrelas e códigos de programação.
No centro da colagem, Waldemar Celes, Roberto Ierusalimschy e Luiz Henrique de Figueiredo, criadores da linguagem que foi usada pela Nasa e pelo Angry Birds - Carolina Daffara


A capacidade do Brasil para inovações —como o desenvolvimento de motores a álcool e nossa vacina contra a Covid-19, entre tantos— mostra a criatividade que nasce de nossas restrições. Capacidade criativa não é exclusividade nossa e não escrevo para defender a ideia ultrapassada do "gênio nacional". Não há gênio: há trabalho e esforço continuados para que, entre 200 milhões de indivíduos, os que tenham vocação e desejo para pesquisa tenham também projetos, salário, equipamentos e estrutura.

Temos polos isolados, é fato, mas não um sistema consistente, com gestões profissionais em instituições governamentais, verbas continuadas para ensino e pesquisa, parcerias sólidas entre iniciativa privada e mecanismos suprapartidários de apoio governamental. Sem isso, as belas e duras conquistas que frequentemente mencionamos nunca se tornarão a norma.


Retomando o que disse acima, o documento da Academia Brasileira de Ciências sobre IA é louvável, mas restrito em suas críticas. O cerne das questões brasileiras em relação a C&T, seja no ensino ou em pesquisa, me parece quase patologicamente ligado à ideia de que, aqui, "em se plantando tudo dá" —e por isso nada precisamos fazer. Vendemos commodities baratas, mantemos uma política cambial favorável à exportação e depois compramos caro objetos tecnológicos dos quais precisamos, inclusive para a manutenção de nossa política extrativista dois séculos atrasada.

Se permanecermos nesse rumo, temos duas garantias. A primeira é que continuaremos com a mentalidade colonial com que fomos "fundados". A segunda é que o gigante, "celeiro do mundo", continuará alimentando o planeta enquanto passa fome.

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