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Ana Beatriz de Oliveira, Dácio Roberto Matheus e Raiane Patrícia Severino Assumpção

Alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias coloca ciência paulista em risco

Excelência da Fapesp, referência em pesquisa e inovação, está sob ameaça

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Ana Beatriz de Oliveira, Dácio Roberto Matheus e Raiane Patrícia Severino Assumpção

Respectivamente, reitores da UFSCar, UFABC e Unifesp

O fazer científico exige estabilidade e investimento perene, capazes de ancorar em instituições robustas um ciclo de formação reunindo pesquisadoras e pesquisadores de diversas gerações, com compartilhamento de experiências e conhecimentos que são herança social valiosa. A produção científica no estado de São Paulo é, assim, um patrimônio vivo, já que tem passado respeitado, presente desafiador e um futuro que pode continuar sendo promissor.

O uso do condicionante ("pode continuar") em relação ao futuro da ciência paulista traduz a preocupação que aqui trazem à atenção as três universidades federais existentes em São Paulo: do ABC (UFABC), São Carlos (UFSCar) e de São Paulo (UFABC). No início de maio, fomos surpreendidos com a inclusão, na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) encaminhada pelo governo estadual à Assembleia Legislativa, da possibilidade de redução em até 30% do orçamento destinado à Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Fachada do prédio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress - Zanone Fraissat/Folhapress

Desde 1989, a Fapesp tem seu orçamento garantido por dispositivo constitucional que prevê a transferência de 1% da receita tributária do estado para a fundação. Em 2023, esse orçamento foi de R$ 2,3 bilhões. UFABC, UFSCar e Unifesp receberam, em conjunto, R$ 169 milhões em auxílios à pesquisa e bolsas em diferentes níveis, da iniciação científica ao pós-doutorado. Nossas universidades têm suas histórias entremeadas pelo apoio da Fapesp e conseguem contar, com propriedade, o quanto esse investimento público reverteu-se em ações de pesquisa notáveis —nacional e internacionalmente— e de grande impacto social.

Esses resultados podem ser demonstrados, de saída, com o caso da saúde, área cuja importância cada pessoa que lê este artigo facilmente saberá avaliar. Apenas na Unifesp, cuja trajetória de mais de 90 anos a torna referência na área, estão em andamento com financiamento da Fapesp 61 auxílios à pesquisa e 145 bolsas na área das ciências da saúde. Um dos grandes projetos financiados é o Aries —Instituto Paulista de Resistência aos Antimicrobianos. A resistência a antimicrobianos (AMR) —popularmente chamados de antibióticos— é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como um dos dez principais problemas de saúde pública mundiais, e a atuação do Aries, iniciada em 2023, é um aporte crucial à luta contra essa causa de milhões de mortes, especialmente em países de média e baixa renda.

Os chamados Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), como é o caso do Aries, são uma estratégia importante da Fapesp, que, além da perspectiva de longo prazo, prioriza a inovação e, assim, a interação com o setor empresarial e industrial.

Dois exemplos dessa interface vêm da UFSCar. O Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), por exemplo, é berço de um conjunto de empresas de base tecnológica atuando em setores tão diversos como cosméticos, jogos educacionais e prevenção de intoxicação por monóxido de carbono. O Centro de Pesquisa, Tecnologia e Educação em Materiais Vítreos (CeRTEV) é reconhecidamente um dos principais grupos de pesquisa na área de vidros e vitrocerâmicos em todo o mundo, com soluções para desafios tecnológicos em áreas distintas que incluem implantes ortopédicos, oculares e odontológicos (biovidros); armazenamento de energia (baterias); construção civil (função estrutural); e catálise, dentre outras.

As políticas públicas também são foco da atuação da Fapesp. Para um novo exemplo, passemos à UFABC. A última chamada do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da Fundação selecionou cinco projetos coordenados a partir da UFABC. Dois acontecem em parceria com o Consórcio Intermunicipal Grande ABC, para reabilitação de áreas de inundações crônicas e criação de um Observatório de Políticas Educacionais. Em parceria com a Prefeitura de São Bento do Sapucaí (SP), outro projeto busca o desenvolvimento sustentável e resiliente da cidade turística na serra da Mantiqueira. Junto à Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente da cidade de São Paulo, está sendo desenvolvido um programa de conservação e recuperação de áreas de preservação permanente. Um quinto projeto é voltado ao estado, em parceria com a Agência Reguladora de Serviços Públicos.

Os casos aqui destacados são uma pequena amostragem da potência e da envergadura da Fapesp na produção de ciência em sua multiplicidade. Por essa razão, vimos a público expor que a proposta encaminhada pode colocar em risco a atuação estável e qualificada da Fapesp.

O governo alega que o dispositivo incluído na LDO —relacionado à desvinculação de receitas provenientes de impostos— não significará necessariamente o corte no financiamento. No entanto, considerando o passado recente do país, de um lado, e a importância da Fapesp, de outro, são necessárias mais que promessas —e todo o cuidado é pouco nas alterações que incidem sobre a produção científica.

Cabe a toda a população defender o legado da Ciência, que já deu mostras significativas de que apenas produções constantes e bem qualificadas podem nos ajudar a superar pandemias, como a de Covid-19, e, especialmente, a mitigar os já postos desafios da atualidade, como a emergência climática; a continuidade de busca por soluções como o tratamento a diferentes tipos de câncer, as doenças metabólicas e as questões de saúde mental; a perda da nossa biodiversidade, dentre muitos outros.

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