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PL do estupro e da morte de meninas e mulheres reverte norma de 1940

Ideologias extremas querem pôr fim a direito em nome de crenças perversas

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VÁRIAS AUTORAS (nomes ao final do texto)

Ser menina e mulher no Brasil significa viver em um contexto de risco permanente de violência sexual. Cada uma de nós entende, pequena ainda, que pode ser alvo de abusos. Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram porque sentimos assim. No primeiro semestre de 2023, uma menina ou mulher foi estuprada a cada 8 minutos, um aumento de 14,9% em relação ao mesmo período de 2022.

Em muitos casos, a crueldade do estupro se transforma em uma gestação indesejada. Desde 1940, há mais de 80 anos, esse é um caso em que meninas e mulheres podem recorrer legalmente a um aborto. E é justamente essa norma do Código Penal que alguns parlamentares e profissionais da saúde com ideologias extremas querem reverter em nome de suas crenças. Não nos parece que seja uma questão de religiosidade, mas sim de controle dos corpos das mulheres e de uma necropolítica perversa. Afinal, a solidariedade e a compaixão, comuns a religiões e filosofias seculares, estão alinhadas à ideia de que meninas e mulheres devem ser respeitadas.

Ato contra o PL Antiaborto por Estupro na avenida Paulista, em São Paulo - Tuane Fernandes/Folhapress

Os parlamentares radicais que propuseram e apoiam o PL 1904/24, o PL Antiaborto por Estupro, pensam diferente. Para eles, a norma de 1940, que garante o acesso ao aborto em casos de gestação resultante de estupro e risco para a vida das mulheres, deveria ser revertida. Se a vontade deles prevalecer, uma mulher ou menina estuprada que faça um aborto a partir de 22 semanas de gestação poderá ser condenada a até 20 anos de prisão, pena maior do que a que se aplicaria a seu estuprador. A proposta foi passada na surdina, em menos de 23 segundos, sugerindo uma estratégia premeditada.

Os casos em que a gestação indesejada chega a 22 semanas são, comumente, os de meninas que não têm experiência para reconhecer o que está acontecendo no seu corpo. Ou têm medo de contar a alguém, já que a maior parte dos estupros de meninas acontece em casa e o abuso é majoritariamente cometido por familiares, ou pessoas do círculo de confiança. Meninas e mulheres negras, pardas ou indígenas, pobres e periféricas podem sofrer consequências ainda mais intensas pela dificuldade de acesso a saúde e informação qualificada sobre o direito de abortar em caso de estupro.

Alguns parlamentares parecem achar razoável retirar a infância de meninas. São crianças e adolescentes sendo obrigadas a ser mães depois de terem sido vítimas de uma violência terrível. A crença de alguns lhes torna cegos à indignidade da situação, justificando uma dupla brutalidade. Cabe, aliás, reforçar que confrontam o direito constitucional à dignidade, que é constitucional.

Outro caso em que o PL incidiria é o de mulheres que demoram a saber que correm risco de vida se prosseguirem na gestação. São, muitas delas, mães que estão apavoradas com a possibilidade de deixar órfãos os filhos que já têm. Para quem defende o PL 1904/2024, se o diagnóstico for feito a partir de 22 semanas de gestação, essa mulher teria que escolher entre o risco de complicações graves e a prisão.

Para os muitos médicos e agentes de saúde que compartilham uma visão solidária e humanizada e que querem cumprir a lei brasileira e seus códigos de ética, o PL apresenta uma insegurança a mais.

Somos cientistas de diferentes áreas, mulheres, muitas de nós mães e avós. Somos irmãs, somos companheiras, somos filhas. Neste artigo, pedimos a parlamentares, agentes de saúde e a cada pessoa no seu espaço de atuação que reflitam sobre quanto vale a vida de uma menina e de uma mulher atravessada pela dor de um crime hediondo quando interesses políticos escusos passam à frente da humanidade e da solidariedade. A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas se une às mobilizações que ocorrem em todo o Brasil em defesa da vida e dos direitos de meninas e mulheres.

Flávia Biroli
Universidade de Brasília

Luciana Tatagiba
Unicamp

Juliana Arruda
UFRRJ

Luciana Santana
Universidade Federal de Alagoas

Michelle Fernandez
Universidade de Brasília

Ana Claudia Farranha
Universidade de Brasília

Mellanie Fontes-Dutra
Unisinos

* As autoras fazem parte da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

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