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Paulo Amador da Cunha Bueno

De exceção em exceção...

Estabeleceu-se um novo e perigosíssimo normal ao devido processo legal

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Paulo Amador da Cunha Bueno

Advogado criminalista e professor de direito penal

Perto de completar seu 36° aniversário, a Constituição Federal assiste a seu mais prestigiado capítulo —o dos direitos e garantias fundamentais— ser passado em revista pela sociedade brasileira, hoje, à evidência, muito mais madura, consciente e ciosa da importância e respeito a tais garantias do que nos primeiros tempos de vida da alcunhada "Constituição Cidadã".

Esse processo de maturidade, é bem de se ver, veio ao custo de sucessivos episódios que, no mais das vezes, notabilizaram de forma negativa a história jurídica brasileira —não apenas pela gravidade dos fatos apurados ou pela importância política de seus protagonistas, mas também por concessões e flexibilizações em garantias que deveriam ser intocáveis na jurisdição penal, tanto por sua estatura constitucional quanto por, de fato, serem a primeira camada do pavimento de uma sociedade efetivamente democrática.

Fachada do Supremo Tribunal Federal com a estátua da Justiça - Gervásio Baptista/STF

Foram diversos os episódios em que a jurisdição penal teve sua eficiência esgarçada por processos deficientes e que ignoraram, ao início, o devido processo legal, contaminando-os e sepultando-os, a médio ou longo prazo. Assim ocorreu em conhecidos episódios em que se sonegou às defesas acesso à integralidade de elementos de investigações; homologaram-se acordos de colaboração premiada a partir do exaurimento moral de investigados mantidos em prisão preventiva; ignorou-se a participação do Ministério Público; permitiu-se a condução de processos em juízos carentes de competência legal —expandidos ao alvedrio da oportunidade— ou despidos da chamada imparcialidade objetiva, entre outras tantas inaceitáveis violações.

Perdeu-se —e ainda hoje se assiste perder—, a perspectiva de que as garantias constitucionais do direito penal e do processo penal estruturam um sistema que, à primeira vista e ao leigo, pode parecer existir apenas para proteger o Estado e sua sociedade do cidadão transgressor. Há, no entanto, uma contramão igualmente importante: as mesmas garantias existem para proteger o cidadão e a mesma sociedade do abuso do próprio Estado, na medida em que conferem (ou tentam conferir) limites aos seus representantes investidos de poder. Nas palavras mais breves do professor Jorge de Figueiredo Dias, "o Estado, protegendo o indivíduo, protege-se a si próprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exercício".

A despeito disso, e de todos os conhecidos precedentes, ainda hoje assiste-se a casos rumorosos —invariavelmente contaminados por vieses políticos— gerarem uma equivocada flexibilidade no sistema de garantias do direito penal e do processo penal, e que, ao final, não refletem a repetidamente vocalizada "defesa do Estado democrático de Direito", obrando em um malsinado "garantismo seletivo".

"Defesa do Estado democrático de Direito" e "flexibilização das garantias constitucionais" são expressões antônimas que não admitem serem usadas como sinônimas ou, de outra sorte, estar-se-á diante do famigerado paradoxo de sacrificar-se a própria democracia em nome de sua defesa, discurso manipulador e onipresente na fala de todos aqueles que justificam seu próprio autoritarismo.

A verdade é que, de exceção em exceção, repetidas diariamente, acabou-se por paulatinamente estabelecer-se um novo e perigosíssimo normal em termos de respeito ao devido processo legal, conduzindo o dito Estado de Direito —a partir da politização de suas garantias mais caras— em verdadeiro e mal disfarçado estado de exceção.

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