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Jerson Kelman

Parlamentares despachantes

Maioria quer alocar recursos públicos para criar eleitorado fiel e garantir reeleição

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Jerson Kelman

Engenheiro e colunista da Folha, foi professor da Coppe-UFRJ e dirigente da ANA, Aneel, Light, Enersul e Sabesp

No segundo ano de funcionamento da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), mais de 20 anos atrás, recebi a visita de um deputado federal do Nordeste. Trazia um mapa com o traçado de uma adutora para ligar um açude existente a um conjunto de cidades da região. Logo no início da conversa, expliquei que a ANA não tinha recursos nem teria a autorização legal para realizar a obra —ao contrário, por exemplo, do Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). Mas, é claro, estaria disposto a ajudá-lo a conceber o empreendimento.

Iniciei explicando que o trajeto da adutora não poderia ser definido apenas com a informação contida no mapa. Seria necessário conhecer a topografia, as demandas hídricas das localidades e realizar estudo hidrológico para calcular se o açude teria água para atender a vazão a ser retirada, em adição ao atendimento já estabelecido de outras localidades.

Várias pessoas sentadas em sofás que circulam uma mesa.
Ministros do STF, o chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT), e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), participam de reunião sobre emendas parlamentares na sede do Supremo, em Brasília - Divulgação/Casa Civil

O deputado foi ficando desanimado com a conversa, e eu, constrangido. Resolvi examinar novamente o mapa e notei que o traçado que ele havia feito não atendia alguns municípios da região. Indaguei a razão. "Nessas cidades eu não tive boa votação", respondeu o deputado.

Lembrei dessa conversa ao ler sobre a tensão política deflagrada pela decisão do ministro Flávio Dino, confirmada por todos os seus pares no Supremo Tribunal Federal, de suspender as emendas parlamentares por ausência de rastreabilidade e transparência. É razoável supor que as negociações que se seguiram desembocarão numa acomodação que elimine as violações constitucionais. Porém, como bem apontou o presidente da corte, Luís Roberto Barroso (Jornal Nacional, 20/8), para além da rastreabilidade e transparência, remanesce a necessidade de melhorar a qualidade do gasto público, que é uma responsabilidade conjunta dos três Poderes.

O sistema atual é disfuncional porque induz os parlamentares a se comportarem como despachantes dos interesses paroquiais de suas respectivas áreas eleitorais. Claro, nem todos se portam dessa maneira. Mas a principal motivação da maioria é alocar recursos públicos para criar um eleitorado fiel que lhe garanta a reeleição, sem preocupação em resolver os problemas sistêmicos do país.

Trata-se de um processo de seleção altamente perverso porque quanto mais o congressista se comportar como o deputado do episódio da adutora, mais ele fideliza os seus eleitores. Com esse método, ele consegue sagrar-se vencedor em sucessivas eleições, derrotando eventuais competidores mais qualificados, mesmo deixando à míngua os seus não eleitores.

Tanto isso é verdade que o tal deputado hoje é senador. Ele não mais necessita da "bênção técnica" de alguma entidade do Executivo. Agora ele redige uma emenda e... Pimba! O seu desejo é realizado.
A população costuma atribuir à corrupção a causa raiz de nossos principais problemas. É verdade, mas não é só isso. Igualmente contrário ao interesse difuso da sociedade, e bem mais frequente, é a utilização de critério indefensável e inconfessável na priorização de investimentos públicos.

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