Podcast conta a história de médica que comandou clínica de abortos em Campo Grande

Quarto episódio de Caso das 10 mil explica como consultório se estabeleceu na cidade e o desfecho do processo contra Neide Mota Machado

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São Paulo e Brasília

A prisão preventiva da médica Neide Mota Machado foi decretada um mês depois do começo da investigação sobre a clínica dela, em Campo Grande (MS). Ela foi denunciada por formação de quadrilha, prática de aborto, posse de ilegal arma e ameaça —e podia acabar presa por décadas.

Formada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, Neide se tornou uma figura conhecida de Campo Grande pouco tempo depois de chegar à cidade. A médica dava festas em sua chácara, circulava pelos eventos sociais e até fundou uma escola de samba.

O quarto episódio de Caso das 10 Mil conta a história da Neide, como ela estabeleceu a clínica em que fez abortos clandestinos por quase 20 anos e qual foi o desfecho desse processo para a médica. A transcrição desse episódio está no fim dessa reportagem.

A série narrativa em áudio da Folha conta em seis episódios a derrocada da Clínica de Planejamento Familiar e como ela acirrou a disputa política sobre aborto.

As repórteres Angela Boldrini e Carolina Moraes investigaram por meses esse que se tornou o maior processo criminal sobre aborto do Brasil. O podcast explora os corredores do Congresso em Brasília e viaja a Campo Grande, Belo Horizonte e Uberlândia para resgatar a história da clínica e debater os caminhos da discussão do aborto no país.

A médica Neide Mota Machado durante o processo contra a Clínica de Planejamento Familiar, em 2007
A médica Neide Mota Machado durante o processo contra a Clínica de Planejamento Familiar, em 2007 - Reginaldo Coelho/Midia Max

Caso das 10 mil é apresentado pelas repórteres da editoria de Podcasts da Folha Angela Boldrini e Carolina Moraes. Angela apresentou a série narrativa Sufrágio, com apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting, e cobre desigualdade de gênero e temas relacionados aos direitos das mulheres. Carolina é produtora do Café da Manhã e apresentou o Expresso Ilustrada, podcast de cultura da Folha.

A edição de som do podcast é de Raphael Concli. A pesquisa foi feita com Isabella Menon, repórter da Folha, a coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro. A identidade visual do podcast é de Catarina Pignato.

Os episódios são publicados toda semana, às quartas. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

CASO DAS 10 MIL
quando quartas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

Podcast Caso das 10 mil
Podcast Caso das 10 mil - Catarina Pignato

OS EPISÓDIOS DE CASO DAS 10 MIL

A Clínica
Como um consultório que realiza abortos em Campo Grande há 20 anos vira o centro de uma operação policial.

As Mulheres
Milhares de pacientes lidam com as repercussões pessoais, familiares e jurídicas do caso envolvendo a Clínica de Planejamento Familiar.

O Congresso
Em Brasília, o combate ao aborto se torna a prioridade de um parlamentar. Rapidamente, ele constrói uma bancada —e o caso das 10 mil vai para o centro dessa disputa.

A Médica
Quem é a anestesista Neide Mota Machado, denunciada pela prática de abortos clandentinos e que podia ser condenada a décadas de prisão.

O Júri (em 27.set)

O Hospital (em 4.out)

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO QUARTO EPISÓDIO

A Médica

Carolina: Antes de começar, um aviso. Essa série tem linguagem impropria e relatos de violência sexual, sofrimento psíquico, e morte que podem ser um gatilho.

A prisão preventiva da médica Neide Mota Machado foi decretada um mês depois que a investigação sobre a clínica dela começou. A Neide foi denunciada por formação de quadrilha, prática de aborto, ameaça e posse ilegal de arma.

A médica não se apresentou pra polícia e passou a ser considerada foragida. Ela ficou quase dois meses sendo procurada. Até que no dia 11 de julho de 2007, o delegado André Pacheco tava de plantão e recebeu um telefonema. Era uma promotora, dizendo que tinha uma pista do paradeiro da Neide.

Eles precisavam de uma autorização judicial pra ir atrás da médica, que estaria escondida numa chácara. E o André foi pro fórum esperar o mandado.

André:Ficamos lá até por volta das 17h30 e o mandado de busca não saiu. Retornei o telefonema à promotora e falei: "Olha, o fórum está fechando e não vai sair mandado algum. Falei: sem mandado, à noite, numa chácara... Fica meio complicado se nós não tivermos certeza que a médica esteja lá, porque se tiver muito bem. Se não tiver, vamos responder criminalmente".

Carolina: A promotora disse que tinha certeza da informação. E o André e um outro policial pegaram estrada até a cidade de Terenos, que fica a uns 25 quilômetros de Campo Grande.

André: Tava muito fria a noite, um local bem escuro. E um policial meu chamado Souza, ele se rastejou até a sede da chácara e viu um carro encoberto com com aquelas lonas pretas. E ele retornou, retornou até bem sujo. Eu até brinquei com ele: "Você caiu algum poço?". E ele: "Não, eu levantei a lona e anotei uma placa". Eu falei: "Bom, se for a placa do carro da doutora Neide, eu assumo a responsabilidade de adentrar na chácara".

Angela: Era placa do carro da Neide. Os policiais bateram na porta e quem atendeu foi a dona da casa.Ela era uma delegada aposentada, conhecida dos policiais —e também era amiga da Neide.

André: Aí tomamos um café e tal. E ela estava um pouco desequilibrada. A gente percebeu que ela estava sob medicamentos. E nós perguntamos: "A doutora Neide tá dormindo aí e tal?". E ela acabou dizendo que sim, que ela estava deitada.

Angela: Eles subiram pro quarto e chamaram a Neide.

André: Ela estava também sob efeito de remédio e estava bem lenta, né? E, que eu me lembre, ela falou "eu vou me vestir e já vou". E eu, com receio de ela fazer alguma coisa, eu pus o pé na porta para não bater a porta, não trancar e fiquei aguardando. Mas foi tranquilo. Ela veio.

Angela: Os policiais e a médica voltaram para Campo Grande e chegaram no começo da madrugada numa delegacia. Um repórter da TV Morena tava lá —o mesmo que fez a reportagem pro Jornal da Globo que deu início ao caso. O delegado lembra que ele pediu pra entrevistar a médica

André: E eu me lembro que ela falou "eu dou entrevista, desde que seja ao vivo". Bom, em se tratando de uma médica, né? Ela tem aquele perfil, né, aquela postura. Ela é realmente diferenciada.

Angela: Era uma hora da manhã. Não ia rolar nenhuma entrevista ao vivo.

Mesmo presa, a Neide mantinha uma postura característica dela: não aparentava ter medo do processo. Bem vestida, ela tava com um ar de vaidade e de quem está no controle da situação.

A Neide passou a madrugada na delegacia. Na manhã do dia seguinte, ela foi levada pra outro DP, que era responsável pelo inquérito policial contra a clínica.

O Douglas Oldegardo, um dos promotores do caso, lembra da médica descendo do carro.

Douglas: Ela sai assim do camburão da polícia, ela põe os dois pés no chão. Ela ergue a cabeça com o queixo nas alturas, coloca o óculos de sol dela e sai andando como se estivesse descendo de uma carruagem, entrando no palácio. Mas ela estava descendo de um camburão, entrando numa delegacia.

Carolina: A prisão da Neide durou pouco menos de 40 dias. Os advogados dela conseguiram um habeas corpus para que ela respondesse em liberdade. O delegado André encontrou ela mais uma vez

André: Eu estava num caixa eletrônico. E quando eu olhei para o lado, ela também estava no caixa ao lado. Até brinquei com ela. "Poxa, mas já saiu, né?" Ela deu risada e foi embora.

Carolina: Mesmo que a médica não aparentasse estar com medo do processo, a vida dela tava mudando, e muito, por causa disso.

André: As amizades somem, o dinheiro acaba ficando difícil, pode até ser rastreado pela polícia, os acessos diminuem e tudo vai apertando o cerco.

Carolina: Aos 53 anos, a Neide tinha ficado sem a clínica, sem fonte de renda, sem os amigos. No começo da investigação, as pessoas mais próximas dela diziam que a médica achava que esse era mais um processo que não ia dar em nada. Mas a médica começou a perceber que podia acabar presa por décadas.

Carolina: Eu sou Carolina Moraes

Angela: Eu sou Angela Boldrini

Carolina: E este é "O Caso das 10 Mil": a história de 10 mil mulheres, de um acordo velado entre uma médica e uma cidade, e de como o aborto virou o centro de uma disputa política no Brasil que dura até hoje.

Episódio 4: A Médica.

Angela: A reportagem sobre a clínica da Neide foi ao ar em 11 de abril de 2007. Um dia depois, a jornalista Ana Raquel Copetti, que tinha entrado no consultório com a câmera escondida, recebeu uma ligação da médica.

Está registrado num boletim de ocorrência que a Neide teria dito o seguinte pra ela: "Sua filha da puta, vagabunda, vaca, cadela, cachorra, égua. Você me deixa em paz. Eu não quero mais ver meu nome em lugar nenhum. Você tá me entendendo, né. Ou eu preciso repetir. Você toma cuidado".

A gente encontrou esse documento num trabalho da pesquisadora Emilia Juliana Ferreira.

O mesmo boletim de ocorrência registrado pela jornalista diz que ela também recebeu mensagens escritas, por SMS. A médica teria acusado a repórter de despreparo e dito que a imprensa não é dona da verdade. E disparado mais ofensas. A Neide negou tudo isso à polícia.

Ewerton: Foi muito mais por raiva naquele momento ali, aquela coisa assim…

Angela: Esse é o Ewerton Bellinati, um dos advogados da Neide

Ewerton: Sabe aquela coisa de querer xingar o repórter. Por que fez isso comigo? Aquela raiva de quem foi lá e, sorrateiramente, vem e me grava. Hoje eu vejo, falavam dela, esse jeitão dela… Falava o que tinha que falar, sabe? Não tinha muito papas na língua, tanto que talvez a reportagem demonstra bem isso.

Angela: No dia que a reportagem ia pro ar, o repórter da Globo Honório Jacometto procurou a Neide. No depoimento que ele deu à polícia na época, o jornalista contou que disse pra médica que a entrevista seria sobre métodos contraceptivos, laqueaduras em mulheres indígenas e também uma declaração do ministro da Saúde sobre a descriminalização do aborto.

A Neide topou a conversa e eles se encontraram na clínica. A entrevista aparece no fim da reportagem, depois do material com a câmera escondida.

Carolina: O Honório disse à polícia que a médica ficou nervosa quando foi questionada sobre os abortos na clínica. Primeiro, a Neide falou que só fazia abortos em casos previstos na lei. O repórter disse que tinha gravações mostrando que a clínica fazia interrupções voluntárias da gravidez. A médica mudou o tom e passou a defender os procedimentos que fazia.

[Neide em entrevista à Globo] Se elas não têm onde fazer bem feito, elas vão fazer mal feito e vão morrer

Esse é um trecho da reportagem da Globo que foi ao ar em 2007. A Neide disse que as mulheres pobres morrem em abortos sem assistência médica adequada.

[Neide em entrevista à Globo] Fazem da pior maneira possível, e elas perdem os úteros, perdem a vida, deixam filhos pequenos.
[Repórter] Mas a senhora sabe que o que a senhora tá fazendo é ilegal, porque não é permitido fazer o aborto.
[Neide] Sim, mas a questão é a seguinte, Honório, não é questão de deixar na ilegalidade que vai mudar a situação. O que tem que se fazer é legislar a favor.

O jornalista disse pra polícia que a Neide teria falado pra ele depois da entrevista que seria muito prejudicada se a reportagem fosse ao ar.

Em 2010, ele disse numa entrevista pra TV Escola Unoeste que a médica admite fazer abortos não previstos em lei pensando que a câmera tinha sido desligada.

[Jornalista] Perguntei: "O que que a senhora me diz da sua clínica fazer aborto?" Aí ela parou e disse "como assim?". Falei: "Exatamente. a senhora faz abortos há 20 anos em Mato Grosso do Sul, isso é de conhecimento público, isso é notório. O conselho regional de medicina tentou te cassar duas vezes, a imprensa local tentou fazer matéria duas vezes pra tentar de denunciar e não conseguiu. Que que a senhora tem a dizer sobre isso?". Ela pega o microfone, puxa e fala "pelo amor de deus, você tá brincando, para com isso". Aí eu falei pro cinegrafista parar de gravar, ele não parou, e aí é o momento em que ela diz que ela realmente faz o aborto.

O Honório não quis falar com a gente pra esse podcast.

Angela: Os advogados da Neide sustentam que essa entrevista não valia como prova contra ela —já que a confissão sobre os abortos clandestinos não aconteceu em frente a uma autoridade judicial. Essa foi a primeira e última vez que a Neide falou pra uma televisão sobre o caso. Segundo o advogado Ewerton Bellinatti, não porque ela não quisesse.

Ewerton: Ela queria dar entrevista. Eu falava não. E todo mundo querendo entrevista. Todo mundo pedindo entrevista porque poderia ser bombástica.

Angela: O Conselho Regional de Medicina abriu um processo contra a Neide no dia seguinte à reportagem e deu dez dias pra ela explicar as atividades da clínica —com o risco de perder o registro médico. E a defesa da médica trombou com mais um problema.

O Ministério Público tinha como provas as fichas das pacientes, que levavam a assinatura da Neide, e também 27 caixas de Cytotec, um medicamento abortivo, aparelhos de curetagem, e outros materiais ginecológicos, como anticoncepcionais.

Os advogados da Neide, como a gente falou, tavam trabalhando com a tese de que não tinha nenhuma confissão da médica. Então os promotores iam ter que provar tudo a partir do que foi apreendido na clínica. Só que, durante o processo, uma das funcionárias admitiu pra polícia que eles recebiam mulheres pra fazer aborto. E essa confissão acabou valendo como prova.

Carolina: O Ewerton acha que a Neide não esperava ir pra cadeia. E que quando saiu a ordem de prisão, ela entendeu que dessa vez as coisas eram bem mais sérias.

Ewerton: E até porque você não escuta, fala quando você escutou falar que foi preso por aborto? Você não escuta. Enfim, eu não sei, mas ela tinha isso, que "eu não vou ser presa". E é decretada prisão. E ela acho que se assusta muito com isso. Assusta.

Carolina: A perspectiva dessa condenação —e de ter que voltar pra prisão, dessa vez não por 40 dias, mas por anos— tava pesando pra Neide. Apesar da imagem pública de força e despreocupação, todo mundo do entorno da médica disse pra gente que a Neide mudou depois de sair da cadeia em 2007. Ela ficou mais reclusa, parou de dar as famosas festas dela numa chácara nos arredores de Campo Grande e começou a transformar o prédio da clínica em uma casa de repouso pra idosos.

A Neide mostrou que tava apreensiva com o caso também quando começou a falar que ia dedurar as autoridades que tinham procurado os serviços de aborto dela.

Em julho de 2008, o juiz Aluizio Pereira dos Santos decidiu que o processo tinha evidências o suficiente pra ser analisado pelo júri. A Neide e quatro funcionárias da clínica iam ser julgadas por 26 casos de aborto.

A sessão foi marcada pro dia 24 de fevereiro de 2010. E a Neide nunca foi pro tribunal.

[Jornalista da Record] Chegou ao fim, antes mesmo do julgamento da justiça, um caso que foi manchete de muitos jornais durante algum tempo em todo o país. A ex-médica Neide Mota Machado foi encontrada morta por volta das três e meia da tarde deste domingo na porteira da chácara onde costumava comprar leite, no bairro Chácara dos Poderes, em Campo Grande.

Angela: A Neide foi encontrada sozinha em um dos carros dela. A morte da médica, que tava envolvida num caso de repercussão nacional e tinha julgamento marcado, causou espanto em Campo Grande.

O caso foi considerado uma "morte a esclarecer". Por isso, a família não pôde realizar o último desejo da médica.

Glicemia: Ela tinha seguro até para cremar, porque ela queria ser cremada. Ela tinha pavor de pensar em ser enterrada.

Angela: Coube à Glicemia Mota, irmã mais velha da Neide, providenciar o funeral.

A gente encontrou a Glicemia em Campo Grande. Ela contou que, no dia que a Neide morreu, a família pediu pra Justiça uma autorização pra levar o corpo da médica pra São Paulo. Era lá que a Neide tinha dito que queria ser cremada.

Glicemia: Quando foi 18h que ela resolveu dizer que não ia autorizar a cremação que ela vai enterrar.

Carolina: Mas por que?

Glicemia: Por causa que era morte a esclarecer. Vai que surge um fato novo? Teria que fazer a exumação, teria dias, se estivesse queimado ia ter nada, entendeu? Essa foi a alegação da juíza.

Angela: Ela encontrou a gente acompanhada do filho, o Lucas. Os dois quiseram marcar a entrevista em um lugar público e movimentado, que acabou sendo um shopping da cidade.

Carolina: A Glicemia tem cabelo branco e curto. Nas fotos da Neide na época do caso, ela tá com o cabelo longo, liso e bem preto. Apesar disso, dá pra notar de cara a semelhança entre as irmãs. Não só pelos traços parecidos e pelos olhos da mesma cor esverdeada.

O jeito direto da Glicemia falar sobre a irmã lembra muito as descrições que a gente ouviu sobre a própria Neide.

Glicemia: Porque toda a vida ela foi rebelde também, casou antes de formar ela, já no terceiro ano de medicina.

Carolina: A intenção de ser médica vinha desde a infância. As irmãs nasceram e cresceram em Uberaba, no interior de Minas Gerais. Em 1972, a Neide passou no vestibular de medicina da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Glicemia: A gente morava na fazenda. E de vez em quando minha mãe perguntava: O que você quer ser quando crescer? Ela sempre disse que queria ser médica. Sempre, toda a vida.

Carolina: Ela casou com um agente funerário assim que completou 21 anos, que era a idade mínima na época pra poder fazer isso sem a autorização dos pais.

A Neide não ficou muito mais tempo em Uberaba. Ela deixou o marido e foi fazer residência em anestesiologia num hospital do Rio de Janeiro. Nesse meio tempo, a Glicemia também saiu de Minas Gerais, junto com a mãe.

Glicemia: Eu vim primeiro. Eu fui a desbravadora. Nessa época aqui não era nem Mato Grosso do Sul, ainda era Mato Grosso. E que era para a gente vir que aqui iria se tornar a capital e que ia ficar muito bom nessa época. Aí, enfim, a gente veio, eu e a minha mãe.

Carolina: A Neide era muito apegada à mãe. Foi pra ficar mais perto da dona Glicéria que ela se mudou pra Campo Grande, no começo dos anos 1980.

Glicemia: Ela chegou e, como ela já era assim, toda vida mais comunicativa ainda, nunca teve dificuldade. Ela ia chegando e entrando, chegava chegando. Com poucos meses que estava aqui em Campo Grande, já conhecia muito mais do que eu, que já estava há cinco, seis anos, né?

Carolina: A Neide também começou a chamar atenção de Campo Grande pela qualidade do trabalho dela como anestesista.

Glicemia: Começou a surgir o burburinho entre a classe que ela era muito boa e ela era mesmo. Se você chegar na Santa Casa, conversar com os médicos, ela foi a melhor anestesista que teve em Campo Grande.

Carolina: A gente tentou conversar com médicos que conheceram e até foram amigos da Neide, mas eles não quiseram falar.

Glicemia: Ela tocava três salas de uma vez. Ela era muito boa no que fazia e daí eles chamaram ela para o grupo. Foi assim que ela entrou num grupo de anestesia.

Carolina: Foi nessa época que, segundo a irmã, ela começou a fazer abortos clandestinos.

Glicemia: E conheceu lá dentro pessoas que começaram como ela já tinha esse ideal, a levar a ela para fazer as anestesia. Aí foi.

Carolina: Esse ideal que a Glicemia cita é o da legalização do aborto. Segundo os familiares da Neide, a médica fazia o que fazia por convicção pessoal. Em 1989, a médica abriu a própria clínica de planejamento familiar.

Angela: O Ministério Público bateu muito na tecla de que a Neide recebia pelos abortos durante o processo. A acusação era de ela não fazia os abortos por um ideal, mas por motivos financeiros. Na época, a estimativa era de que ela tinha ganhado cerca de R$ 8 milhões com os procedimentos. E ela de fato enriqueceu.

Glicemia: Ela fazia. Era lucrativo? Era. Como qualquer profissão. Ela tinha muito dinheiro? Tinha. Mas isso não quer dizer que era só por isso que ela fazia, porque ela teve muitos casos que ela atendeu de graça. Por conta do que? Da ideologia, de preocupação com aquele ser ali que ali ela sabia que tinha segurança. Entendeu?

Angela: A gente não encontrou nenhum registro de morte relacionado a um atendimento na Clínica de Planejamento Familiar.

A promotoria montou o caso em cima da tese de que mulheres correram riscos com a Neide. A acusação usou por exemplo o relato de uma mulher que teria recebido um medicamento veterinário e que teve complicações.

As fichas das pacientes apontam alguns tipos de procedimento que a Neide fazia na clínica. Os mais caros eram com internação. As pacientes tomavam o comprimido de misoprostol —mais conhecido no Brasil como Cytotec— dentro da clínica. O misoprostol faz com que o feto seja expelido pela vagina da mulher. Ele é considerado um método seguro de aborto pela Organização Mundial da Saúde e pode ser usado até as 12 semanas de gestação.

Outra opção, mais barata, era comprar o comprimido de Cytotec na clínica e usar em casa. Nesse caso, a Neide orientava as mulheres a procurarem o SUS em caso de complicação.

Douglas: A impressão que eu tive em relação a Neide foi isso: ela criou uma clínica chique para atender pessoas abastadas que pudessem pagar.

Angela: Aqui, o promotor Douglas de novo.

Douglas: E dentro desse contexto da ilegalidade acabava não fazendo muita diferença para ela hospedar uma pessoa e cobrar por isso R$ 15 mil, ou dar dois comprimidos pra abortar pra uma outra que possa pagar menos, porque na verdade, o que ela está vendendo efetivamente é aborto.

Angela: O processo menciona apenas um caso em que a clínica teria usado remédio veterinário —o que não é seguro. A médica negou ter aplicado esse medicamento.

Carolina: O aborto não era o único serviço oferecido na clínica. A polícia também apreendeu anticoncepcionais, e a Neide mesmo relatou que fazia inserções de DIU em pacientes, por exemplo.

Outra coisa que a Neide disse na época do processo, durante um depoimento, é que ela só fazia abortos em caso de violência sexual e de risco à vida da gestante. Essa também tinha sido a primeira versão da médica durante a entrevista pra Globo —mas depois ela mesma admitiu que fazia procedimentos não previstos em lei.

A gente descobriu durante a apuração desse podcast que embora a Neide não fizesse só abortos em casos previstos na lei atual, ela fez pelo menos um aborto legal e pelo SUS no começo dos anos 2000.

Em 2008, uma funcionária do Ipas, uma organização internacional de direitos reprodutivos, foi até Campo Grande conversar com a Neide. A gente teve acesso ao relatório desse encontro.

A médica disse que uma vez foi chamada pra Maternidade Cândido Mariano, um hospital do SUS que fica no centro da cidade. A Secretaria de Saúde queria que ela atendesse uma adolescente de 13 anos que tinha sido estuprada e engravidado.

Uma reportagem do site local Campo Grande News, de 2004, confirma esse caso: "Uma menina de 13 anos, vítima de abuso sexual, teve que esperar quase duas semanas para realizar aborto em um hospital credenciado pelo SUS em Campo Grande."

A notícia conta que a família teve que apelar pro Ministério Público pra conseguir o procedimento. O caso foi intermediado por um médico ligado à federação brasileira de ginecologia e obstetrícia. O texto continua: "A menina foi operada por ele e pela médica Neide Mota Machado, já teve alta e passa bem".

Angela: Esse não é o único relato da Neide sobre um aborto legal. Segundo o relatório do Ipas, a Neide disse que teria tratado "dezenas de mulheres que precisavam de aborto por risco de vida ou em casos de estupro". Ela afirmou que as mulheres a procuravam porque não queriam passar pela secretaria de saúde. E uma reportagem sobre o caso publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 2009 diz que não existia serviço de aborto legal em Mato Grosso do Sul na época.

A Neide também disse que a Secretaria Estadual de Saúde encaminhava pacientes pra clínica. Pra pessoas próximas, ela chegou a falar que tinha um acordo verbal com o governo do estado, que na época era comandado pelo Zeca do PT.

Hoje, ele é deputado estadual. Ele negou que esse acordo verbal com a Neide existia —e disse que não sabia nada sobre essa história.

Zeca: Nem conhecimento dessa história, até porque se fosse esse o teu trabalho na saúde, não diretamente comigo. Nunca escutei nada disso, nunca respondi nada a respeito disso. Lembro dessa história que teve uma clínica dessa mulher. Não sei se ela era médica, era enfermeira, que fazia esses procedimentos clandestinamente e depois acho que até teve presa.

Angela: Ele negou ter tido qualquer contato com a médica Neide Mota.

Carolina: Com acordo verbal ou não, fato é que a Neide era muito bem relacionada dentro da alta sociedade sul-mato-grossense. Ela conhecia por exemplo o Nelsinho Trad. Hoje, ele é senador por Mato Grosso do Sul, mas foi prefeito de Campo Grande entre 2005 e 2013.

Ele é parte do clã dos Trad, uma família tradicionalíssima do estado. Além disso, ele é médico.

Carlos: Eles foram amigos por muito tempo, muitos anos. Até depois que aconteceu que ela foi denunciada. Ele recebia, ele falava com ela e tudo mais.

Carolina: Esse é o Carlos Alberto, conhecido como Grilo. Ele foi o último namorado da Neide.

Carlos: Inclusive até levou ela aqui e eu fui junto também no Palácio da Cultura, quando do lançamento do livro do Gilmar Mendes.

Carolina: O senador disse que não podia falar com a gente sobre a médica. O Nelsinho, que é médico, alegou que a Neide foi paciente dele e que por isso não podia quebrar sigilo. O senador disse que essa era a única relação dele com a Neide. Ele também não quis falar enquanto ex-prefeito de Campo Grande, mesmo que todo o caso tenha acontecido durante a gestão dele.

Angela: O Nelsinho Trad não é o único que não quer ser relacionado a esse caso. A médica, que sempre tinha sido uma pessoa muito presente na vida social da cidade, começou a ser encarada como um estorvo.

Glicemia: Ela sempre gostou de ser a estrela.Se ela chegasse logo na festa lá da colônia paraguaia, que todo domingo tem jantar, tem música, tem tudo lá. A doutora Neide chegou.Todo mundo bajulava, todo mundo puxava o saco. Tomar cerveja à custa dela, entendeu?

Aqui, de novo, a irmã da Neide, a Glicemia. Campo Grande tem uma comunidade paraguaia grande por causa da proximidade com a fronteira, e essa é uma festa popular.

Glicemia: E quando ela saiu da cadeia e tudo que sabe, muita gente que vivia puxando saco dela quando ela chegava sem dar boleia, sem destino embora, evitava ficar perto dela.

Angela: Quando a polícia entrou na clínica, a Neide já tava começando a enfrentar outro problema. Apesar de ela ter ganhado muito dinheiro ao longo das décadas…

Glicemia: Então, de tudo o que ela tinha, se ela quisesse jantar lá em São Paulo hoje ela fretava um jatinho aqui, se ela quisesse ela poderia fazer. Ela tinha condição para isso, entendeu? Ela tinha tudo o que ela queria.

Angela: …em 2007, ela tava falida. Em parte porque ela gostava de ter uma vida luxuosa.

Glicemia: Ela não era muito de guardar, não torrava mesmo e até não sei porquê. Eu até penso que talvez até inconscientemente, ela já sabia que não ia viver muito. Eu penso isso. Porque ela vivia o agora e não tinha amanhã. Era outra história.

Angela: Só que esse não era o único motivo dos problemas financeiros da Neide.

Glicemia: Então ela gastava muito e quando ela botou a administradora, a administradora roubou tudo, roubou tudo, roubou muito, dava o dinheiro pra pagar o imposto e não pagava.

Angela: A médica tinha começado a processar uma ex-funcionária por fraude pouco antes de a clínica ser fechada. A Neide acusava a mulher de ter roubado milhares de reais destinados ao pagamento de encargos trabalhistas e outras contas e deixado a médica endividada.

Glicemia: Ela tinha uns lote em alguns lugares aí e tal. Tinha alguns lotes que daí ela começou a ter que ir vendendo pra poder pagar os encargos do pessoal que estava tudo atrasado. E isso ela ainda tava trabalhando na clínica. Ela ficou na clínica depois que ela levou essa rasteira toda eu creio que um ano e pouco, mas não foi o suficiente pra ela se levantar. Ela estava acabando de quitar as coisas, de botar as coisas em ordem para começar a andar de novo. Não deu tempo.

Carolina: Essa disputa judicial entre a Neide e a ex-funcionária virou parte de uma teoria da médica de que ela estava sendo perseguida. Em várias ocasiões, a médica afirmou que tinham armado a reportagem com câmera escondida pra atacá-la por motivos políticos.

O governador com quem ela disse que tinha um acordo verbal tinha acabado de sair do cargo. O André Puccinelli, que tinha assumido o posto, era de um outro grupo político. E a ex-funcionária da Neide tinha ido trabalhar na governadoria. Essa versão inclusive tá registrada no relatório do Ipas, aquela organização americana de direitos reprodutivos.

A ex-funcionária da Neide morreu em 2022 e o Puccinelli não respondeu aos nossos pedidos de entrevista. A nossa pesquisa aponta que a reportagem foi feita por uma decisão da Globo. Como a gente contou no primeiro episódio, eles tinham alugado uma câmera escondida pra fazer uma matéria que não deu certo. E aí, como o equipamento já tava alugado, resolveram ir na clínica onde todo mundo sabia que tinha serviço de aborto.

O Douglas, um dos promotores do caso, tem uma explicação pro estouro da clínica ter acontecido quando aconteceu, mesmo depois de 20 anos da Neide fazendo aborto.

Douglas: A clínica da Neide era uma bolha de ilegalidade. Ela começou pequenininha, foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo. O que é o crescimento dessa bolha de ilegalidade? É o número de gente que ela foi atendendo. Até que chega um ponto em que essa tensão entre a tolerância da sociedade e das forças de segurança pública com a bolha chega num limite que não é mais suportável.

Angela: A Glicemia chegou a ouvir a tese de armação da boca da irmã, mas não acha que seja esse o caso. O que ela contou é que da mesma forma que o jeito expansivo e comunicativo da Neide trazia amigos, ele também trazia desafetos pra médica.

A irmã e o sobrinho, o Lucas, falam que a Neide era bem estourada. O Lucas contou de uma vez que a tia bateu o carro de propósito porque se irritou com um motorista. Ele falou que a Neide tava indo visitar ele e a Glicemia, quando parou num semáforo e o motorista da frente demorou pra sair no verde.

Glicemia: Ela buzinou para o cara sair e o cara fez assim "passa por cima".

Lucas: Isso ela já ligou. "Ó, não vai dar pra mim ir não, que um filha da puta falou pra eu passar por cima dele e eu quase passei. Agora vou ter que resolver aqui".

O Lucas, aliás, era o xodó da Neide. Ela nunca quis ter filhos. Mas a médica e o sobrinho eram tão grudados que a Glicemia, mãe do Lucas, diz que a irmã é a "mãe espiritual" dele.

Glicemia: Primeira vez que ela pegou no colo ele tinha três meses. Daí nunca mais largou. Se apaixonou por esse Lucas aí aí. E os dois brigavam e não se largava de jeito nenhum ela fazia tudo por esse Lucas. Não tinha juízo não. Ela deu um carro, o Lucas com 16 anos, um carro melhor que o meu. O guri bateu o carro num poste e arrancou o poste.

Angela: Durante a crise financeira da tia, o Lucas foi trabalhar na clínica pra ajudar na parte administrativa. Ele chegou a ser denunciado no processo, mas o caso foi arquivado.

Carolina: A primeira vez que a Neide entrou na clínica dela depois da operação policial foi no final de 2007, de acordo com a irmã dela. Ela já tinha sido presa e tava em liberdade aguardando o desenrolar do processo.

A Glicemia diz que a experiência de encontrar o prédio revirado pela polícia foi traumática pra Neide.

Glicemia: eu entrei na clínica primeiro que ela, porque ela estava fugida. Eu tive que ir lá pegar não sei o que, não sei o quê, nem lembro. Eles entraram para quebrar mesmo, não ficou um nada inteiro.

Carolina: Ela contou pra gente que quando entrou na clínica, o chão tava forrado de papéis arrancados das gavetas.

Glicemia: Não ficou uma gaveta num armário, um papel e nada. Jogou e espalhou tudo o que deu pra quebrar. Quebrou. Sabe, não precisava daquilo. E então, depois que saiu da cadeia, que ela foi lá, que viu tudo aquilo lá, tem que começar do zero, sem nada.

Carolina: Na conversa que ela teve com o Ipas, a Neide também acusou a polícia de furtar objetos e dinheiro do prédio. Ela tinha um apartamento no andar de cima da clínica e, segundo a médica, os policiais teriam entrado ali sem permissão judicial. A Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul não responderam às nossas perguntas sobre a acusação da Neide até a conclusão desse episódio.

A Neide era dona da casa onde a clínica funcionava. E começou a procurar alternativas pro espaço.

Glicemia: Logo que ela saiu da casa dela, começou a reformar a clínica para montar a casa de repouso para idosos, a Golden Age. Então fez adaptações lá tudo, ela já estava partindo para esse lado.

Carolina: Só que como o nome da Neide tava muito queimado a essa altura, quem assumiu a frente do negócio foi o Grilo, o namorado dela na época.

O Grilo era repórter policial. Antes, a médica tinha sido casada com o agente funerário de Uberaba. Daí ela morou com um capitão da PM em Campo Grande —vem dessa época a amizade dela com os policiais da cidade. Mais tarde, ela casou de novo, com um vendedor que foi assassinado.

Depois disso, ela ficou um tempão sem um relacionamento sério. Até o Grilo.

A Neide e o Grilo abriram a casa de repouso. A médica transformou também a chácara dela em uma unidade de lazer rural pros idosos internados.

Mas logo veio mais um baque pra Neide. O Conselho Federal de Medicina decidiu pela cassação do registro médico dela.

Angela: Na manhã do dia 30 de novembro de 2009, a Neide pegou o carro e saiu da chácara onde tava morando. O Grilo tinha estado com ela na noite anterior, que era um sábado

Grilo: Aí ela foi para o sítio dela porque ela disse que na parte da manhã ela ia buscar leite porque ela estava com o pessoal lá hospedado com ela. E na parte da tarde ia estar comigo. A gente ia inclusive almoçar o feijão tropeiro que ela começou a dar encaminhamento. Só que ela não apareceu. E às 16h me ligaram. Informando que ela foi encontrada morta no… perto do sítio dela.

Angela: O corpo da Neide foi velado por um dia e meio antes de ser enterrado no cemitério Memorial Parque.

A Glicemia conta que se a imprensa lotava os arredores do velório, poucos amigos se arriscaram a comparecer.

Glicemia: De médico foi dois. Dois médicos, delegado de polícia, capitão sei lá o que, que era tudo amigo dela tudo foi um delegado de polícia lá.

Angela: A gente já falou aqui que a Neide era muito apegada à mãe dela e da Glicemia. A dona Glicéria tava com 83 anos quando a filha mais nova morreu.

Glicemia: A minha mãe até falou assim pra mim. Sabe que eu nem fiquei muito triste mesmo que ela morreu, porque ela estava sofrendo muito. E eu fiquei com dó dela. Ela viu o sofrimento no rosto. Ela era mãe e sentia.

Carolina: A Neide foi encontrada numa área rural de Campo Grande, que não fica longe do centro.

A médica tinha saído da chácara dela de manhã dizendo que ia comprar leite em um sítio próximo. Foram os caseiros da região que acharam o corpo dela dentro do carro no meio da tarde.

A gente foi pra lá esse ano pra procurar esses vizinhos. E usou o boletim de ocorrência da morte pra tentar achar o endereço.

[Angela] Porque o que diz aqui, a gente tem testemunhas. E o Rafael Lourenço da Silva, do sexo masculino, bla bla bla. Carpinteiro. Endereço rua Barra…

Descendo a rua de terra batida, a gente chegou numa casa de esquina. Simples, com tijolos aparentes. Uma parte dela tinha sido transformada numa mercearia, com alguns produtos à venda.

Um senhor de chapéu, bermuda e havaianas tava na porta e se identificou como Rafael.

[Angela] Rafael, desculpa fazer uma pergunta sem parecer invasiva. O senhor é Rafael Lourenço? Ah! A gente é jornalista...

Angela: A gente encontrou o Rafael Lourenço da Silva, uma das testemunhas. O Rafael conhecia a Neide desde 1992, quando ele foi morar naquela casa lá. A chácara dela ficava num bairro próximo, e ia pra lá com frequência.

No dia da morte da Neide, tava chovendo em Campo Grande. A dona da obra em que o Rafael tava trabalhando dispensou ele por causa disso.

Rafael: Aí eu catei um saco de manga e vinha trazendo para minhas crianças. E naquele determinado momento, eu via esse carro parado que era um… CrossFox, um troço assim.

Angela: Um caseiro, chamado José, tava na mesma rua que o Rafael. E viu o carro da Neide chegando. Ele estranhou o jeito que o carro se movimentava.

Rafael:Ele cuidava da chácara aqui e ele tava na beirada da chácara, dando uma olhada. Aí ele viu que o carro vinha tropeçando e parou aqui.

Angela: Como o carro da Neide não saiu mais do lugar e ela também não desceu, eles resolveram ir até lá.

O José, outro caseiro que o Rafael mencionou, falou pra Record sobre o episódio na época em que ela foi encontrada.

[Depoimento do José a TV Record] Nós tentamos conversar com ela, ver se precisava de ajuda, nois levasse ela lá, tudo. Ela falou: ‘Não, tô boa, só tô com sono’.

Os vizinhos se afastaram do carro.

[Depoimento do José a TV Record] Aí depois eu e o menino voltamos ali pro carro, ficamos conversando. Falei "vamo lá ver". Cheguamos lá e ela tava desmaiada. Cheguemo lá e só olhamos. Ela tava caída.

Carolina: Os moradores resolveram chamar a polícia, que constatou que ela tava morta. A perícia passou duas horas revistando o carro. Eles encontraram vários itens pessoais —celular, bijuterias, documentos— e um caderno com anotações.

Também tavam no carro uma seringa e um recipiente vazio de medicamento. O delegado disse pra jornalistas que tavam acompanhando a perícia que a suspeita era de suicídio, mas que tinham que investigar.

Muita gente especulava sobre a morte da Neide. Eles relembravam aquele relato de que a médica quis expor os grandes nomes da sociedade de Mato Grosso do Sul que frequentaram a clínica.

A pesquisadora Fernanda Tussi entrevistou a Neide pra uma dissertação de mestrado, que foi publicada em 2010. A médica declarou o seguinte: "Já me mataram socialmente, moralmente, profissionalmente, financeiramente… Grande coisa me matar fisicamente. Faz-me rir! Tinha que ter matado, não matou no ninho, agora a coisa cresceu muito. Se mata no ninho".

A polícia concluiu no inquérito que foi uma morte por suicídio.

[Jornalista da TV Record] Neide Mota Machado morreu em consequência de uma parada respiratória. Foram três meses de uma minuciosa investigação da coordenação geral de perícia. A hipótese de homicídio está descartada

Angela: A irmã dela, a Glicemia, e o sobrinho, o Lucas, hoje acreditam nisso. Outras pessoas com quem a gente conversou, como o Grilo, o ex-namorado dela, e até gente ligada aos movimentos feministas ainda desconfiam da versão da polícia. Eles acham que pode ter sido um assassinato.

O exame toxicológico não foi feito por falta de equipamento, e as autoridades não souberam explicar o que causou a parada respiratória na médica. Mas várias provas corroboram a conclusão da polícia.

Duas testemunhas, como a gente falou, conversaram com a Neide minutos antes dela morrer. A perícia também não encontrou nenhuma marca que indicasse algum tipo de violência. E as notações achadas no carro tinham um tom de despedida, segundo a polícia.

Se você ou alguém que você conhece pensa em suicídio, o CVV, Centro de Valorização da Vida, pode ajudar gratuitamente, 24h por dia, pelo telefone 188.

Carolina: Além do bilhete, também encontraram um livro no carro da Neide. Um exemplar de "Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo", de um autor inglês chamado Christopher Hitchens. Ele foi publicado em 2007, bem quando o caso das 10 mil começou.

O autor parte de uma constatação de que crenças podem ser hipócritas. "A religião",ele escreve, "tem levado inúmeras pessoas não só a se conduzir pior que outras, mas a lhes conceder permissão pra se comportar de maneiras capaz de franzir a testa de uma dona de bordel ou de um responsável por uma limpeza étnica".

Angela: O debate sobre o aborto tá nesse livro. O autor defende que interromper a gravidez é um conflito de direitos. Que "todas as pessoas pensantes", nos termos dele, "buscam um equilíbrio nesse tema". E que a única ideia inútilnesse debate é a de que um feto tem alma e, portanto, deve ser protegido por lei.

A gente ouve muito essa tese, de que um feto tem que ter direitos como os de uma criança nascida. Nesse podcast, ela já apareceu na boca de parlamentares como o Luiz Bassuma, o deputado que fundou a bancada contra o aborto no Congresso e criou o Estatuto do Nascituro.

Essa defesa dos direitos do feto é a principal linha de argumentação dos grupos contra o aborto. Neste podcast, ela já apareceu na boca de parlamentares como o Luiz Bassuma, o deputado que fundou a bancada contra o aborto no Congresso e criou o Estatuto do Nascituro.

Carolina: A primeira vez que a gente se deparou com esse argumento no caso das 10 mil foi num vídeo anexado ao processo da clínica. O caso contra a Neide foi arquivado com a morte. Mas outras quatro funcionárias dela tavam com data marcada pra ficar diante do tribunal do júri.

Carolina: Eu sou Carolina Moraes e a apresentação, roteiro e produção d’o Caso das 10 mil são meus e da Angela Boldrini.

Angela: A pesquisa foi feita junto com a Isabella Menon e a edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, e a identidade visual é da Catarina Pignato.

Carolina: Este episódio usou áudios da TV Record, TV Globo e TV Escola Unoeste.

Angela: Você encontra a transcrição deste episódio no site da Folha.

Carolina: O próximo episódio sai na quarta-feira que vem. Segue o podcast no seu tocador favorito pra não perder.

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