Autoritários: como Donald Trump estimulou teorias conspiratórias nos EUA

Podcast mostra de que maneira o ex-presidente atuou para minar a democracia americana e quais os riscos de um eventual segundo mandato

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São Paulo

Eram 7h da manhã e o turno do policial Daniel Hodges estava começando. Ele faz parte da Polícia Metropolitana de Washington, capital dos Estados Unidos. O pelotão dele tinha sido mandado para a frente da Casa Branca, onde milhares de apoiadores do então presidente Donald Trump se juntaram para contestar a vitória de Joe Biden na eleição de novembro de 2020.

Naquele 6 de janeiro de 2021, o Congresso americano iria se reunir para certificar o resultado, como acontece em toda eleição. Mas aquela não tinha sido uma eleição normal, e Trump se negava a reconhecer a derrota. O ex-presidente incentivou os manifestantes a marchar até o Capitólio, prédio do Congresso, e disse que estaria lá com eles.

O ex-presidente Republicano Donald Trump - Reuters

Hodges e os colegas entraram nas viaturas da polícia, pegaram equipamentos de proteção, como capacetes, e dirigiram para o Capitólio. Ele diz que os manifestantes estavam com raiva e xingavam os policiais de traidores. "Primeiro eles me chutaram e me derrubaram, até que eu fiquei com as mãos e os joelhos no chão", afirma. "Eu pensei bom, não dá para ficar mais vulnerável do que isso."

O quarto episódio de Autoritários conta as histórias de vítimas da invasão ao Congresso americano e mostra como Trump insuflou seus apoiadores ao espalhar falsas acusações de fraude eleitoral. O podcast também entrevista um ex-seguidor da teoria conspiratória do Qanon, que fala sobre um estado profundo no qual integrantes da elite Democrata e celebridades idolatrariam Satanás e se envolveriam em atos de pedofilia. Os seguidores do grupo acreditam que o republicano salvaria o país do mal.

Trump tem chances de voltar à Presidência nas eleições deste ano, e o cientista político Steven Levitsky fala ao podcast sobre os riscos à democracia norte-americana caso isso aconteça. "Ele leu a cartilha autoritária. Ele sabe que precisa preencher cargos estratégicos no governo com pessoas absolutamente leais a ele. E o partido Republicano vai aceitar qualquer coisa que ele fizer."

A série narrativa em áudio da Folha conta em sete episódios o processo de crise democrática que está em curso no mundo. Cada um deles se debruça sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua).

Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.

Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).

A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.

Os episódios são publicados toda semana, às quintas-feiras. Eles podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

AUTORITÁRIOS
quando quintas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

Podcast Autoritários
Podcast Autoritários - Catarina Pignato

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO QUARTO EPISÓDIO

TRUMP E AS TEORIAS CONSPIRATÓRIAS NOS EUA

Ana Luiza Albuquerque: Eram 7h da manhã e o turno do policial Daniel Hodges estava começando.

Ele faz parte da Polícia Metropolitana de Washington, capital dos Estados Unidos. O pelotão dele tinha sido mandado para a frente da Casa Branca, onde milhares de apoiadores do então presidente Donald Trump se juntaram para contestar a vitória de Joe Biden na eleição de novembro de 2020.

Naquele 6 de janeiro de 2021, o Congresso americano iria se reunir para certificar o resultado, como acontece em toda eleição. Mas aquela não tinha sido uma eleição normal, e Trump se negava a reconhecer a derrota. Ele tinha passado os meses anteriores insistindo em acusações falsas de fraude eleitoral e pressionando aliados do partido Republicano a ajudá-lo a reverter o resultado.

Daniel Hodges não tinha recebido nenhuma informação de inteligência de que poderia haver atos violentos naquele dia.

Daniel Hodges (dublado): Mas no meu tempo pessoal eu li mensagens online em que as pessoas estavam planejando a violência. Então eu pensei que isso poderia mesmo acontecer.

Ana Luiza Albuquerque: Os apoiadores de Trump carregavam bandeiras dos Estados Unidos e cartazes dizendo "Trump ganhou" e "Pare o roubo" –principal slogan desse movimento.

Daniel Hodges (dublado): A ordem inicial era para a gente ficar bem visível, para as pessoas saberem que tinha presença policial.

Ana Luiza Albuquerque: Por volta do meio-dia, o então presidente subiu ao palco e falou por uma hora, reforçando a falsa narrativa de que a eleição tinha sido roubada.

Donald Trump: Make no mistake, this election was stolen from you, from me and from the country.

Ana Luiza Albuquerque: Trump incentivou os manifestantes a marchar pela avenida Pensilvânia até o Capitólio, prédio do Congresso, e disse que estaria lá com eles.

Donald Trump: We're going to walk down Pennsylvania Avenue –I love Pennsylvania Avenue– and we're going to the Capitol.

Ana Luiza Albuquerque: Ele também insuflou os apoiadores a lutar mais do que nunca para salvar o país.

Donald Trump: We fight like hell. And if you don't fight like hell, you're not going to have a country anymore.

Ana Luiza Albuquerque: Os trumpistas seguiram o recado e foram para o Capitólio, tentar impedir a certificação do Biden. O comandante que estava em frente ao prédio começou então a falar com os policiais pelo rádio comunicador.

Daniel Hodges (dublado): Eu ouvia o comandante ficando mais e mais agitado. Acho que desesperado é a palavra certa, porque ele estava sobrecarregado. Os manifestantes estavam atacando, até que ele pediu reforço e meu pelotão também foi mandado para lá.

Ana Luiza Albuquerque: Hodges e os colegas entraram nas viaturas da polícia, pegaram equipamentos de proteção, como capacetes, e dirigiram para o Capitólio. Ele diz que os manifestantes estavam com raiva e xingavam os policiais de traidores.

Daniel Hodges (dublado): Eles sentiam que a gente estava fazendo o contrário do que deveria, que por alguma razão a gente tinha que ajudar a atacar o Capitólio.

Ana Luiza Albuquerque: Enquanto eles atravessavam o gramado até o Capitólio, a multidão foi aumentando e ficando mais agressiva: os policiais começaram a ser atacados.

Voices: Multiple capitol injuries! Multiple capitol injuries! Take the building! Fuck you police!

Daniel Hodges (dublado): Primeiro eles me chutaram e me derrubaram, até que eu fiquei com as mãos e os joelhos no chão.

Ana Luiza Albuquerque: Naquela época a Covid-19 ainda tava muito forte, e a máscara que ele estava usando saiu do lugar e acabou tampando a visão dele.

Daniel Hodges (dublado): Eu estava de quatro, cego e cercado por uma multidão raivosa. Eu pensei bom, não dá para ficar mais vulnerável do que isso.

Ana Luiza Albuquerque: Pelo menos 140 policiais foram feridos no ataque do 6 de janeiro, e um morreu no dia seguinte. Outros quatro cometeram suicídio nos meses posteriores. Quatro manifestantes também morreram durante a invasão.

Trump responde a quatro ações criminais, e uma delas o acusa de uma conspiração para alterar os resultados eleitorais e se manter no poder –um processo que culminou no 6 de janeiro. Mas, pela lei americana, mesmo que seja condenado, ou até preso, ele ainda pode concorrer à Presidência neste ano. Em novembro, Trump tem chances reais de voltar para o lugar de onde ele fez de tudo para não sair.

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o quarto episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Ana Luiza Albuquerque: Daniel Hodges foi um dos policiais mais agredidos na invasão ao Capitólio. Em um vídeo que circulou na internet, ele aparece gritando, com sangue na boca, enquanto uma multidão o pressiona contra uma porta entreaberta. Um dos manifestantes tira a máscara de gás que ele estava usando.

Por causa do alcance que esse vídeo tomou, Hodges foi um dos policiais que testemunharam no comitê do Congresso que investigou o 6 de janeiro. Foram também essas imagens que me levaram a pedir uma entrevista com ele em Washington. Eu mandei uma mensagem no Twitter e ele aceitou me encontrar num café perto do Capitólio.

A primeira coisa que o Hodges disse –e ficou claro que foi uma orientação de cima– foi que ele estava expressando um ponto de vista pessoal, não da polícia. Aí ele começou a detalhar o que aconteceu naquele dia. Ele foi cercado por trumpistas em um dos túneis subterrâneos que dão acesso ao Capitólio.

Daniel Hodges (dublado): No túnel, quando eu estava sendo esmagado e agredido com meu próprio cassetete, aquilo poderia ter acabado de um jeito muito diferente. Bater com um cassetete na cabeça de alguém é considerado usar força letal. Eu sabia que se meu agressor conseguisse me atingir mais de uma vez, especialmente no mesmo lugar, teria um risco grande de me causar uma sequela permanente ou de me matar.

Algumas vezes ao longo do dia eu achei que fosse acabar desfigurado ou morto.

Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que o efetivo policial daquele dia era insuficiente –algo em torno de um agente para cada 50 a 75 manifestantes. Os invasores faziam ameaças graves. Eles defendiam aos gritos o enforcamento do vice-presidente Mike Pence, que também era presidente do Senado e responsável pela sessão para certificar os votos. Eu perguntei para o Hodges se em algum momento ele pensou em fugir dali, e ele respondeu que isso nem passou pela cabeça dele.

Daniel Hodges (dublado): Se eu fugisse, não teria ninguém para proteger os parlamentares eleitos e o vice-presidente. A gente gostando ou não, foram eles que escolhemos. E devemos a eles e ao resto do país dar o nosso melhor para defendê-los e nos defender. Se eu fugisse, quem iria proteger meus colegas?

Ana Luiza Albuquerque: O Hodges não esquece os sons daquele dia. Além dos xingamentos contra os policiais, ele lembra dos manifestantes gritando "lute por Trump" e "pare o roubo". Tinha também um alto-falante grande, transmitindo mensagens que diziam que os invasores não eram permitidos ali e que tinham que sair imediatamente –o que obviamente foi ignorado.

Daniel Hodges (dublado): E no túnel estava super barulhento, estava todo mundo gritando. Era uma sobrecarga sensorial.

Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que teve mais sorte que alguns colegas, e que conseguiu se recuperar bem: física e mentalmente.

Daniel Hodges (dublado): Mas de vez em quando as lembranças voltam, sabe, testemunhar sobre aquele dia ou ver filmagens, o coração dispara. Pode te pegar de surpresa, mas você segue em frente. Você faz o que tem que fazer e continua falando sobre isso porque tem muita desinformação por aí.

Ana Luiza Albuquerque: Nos dias e semanas seguintes à invasão, boa parte dos parlamentares do partido Republicano condenou o ataque e tentou se distanciar de Trump. Mas conforme a poeira foi baixando, o tom mudou. Republicanos, ativistas e jornalistas conservadores passaram a minimizar a gravidade do 6 de janeiro. Apoiadores do agora ex-presidente também começaram a difundir uma teoria da conspiração de que a invasão tinha sido planejada por supostos infiltrados da esquerda.

Um deputado republicano do estado da Georgia disse, por exemplo, que era uma mentira chamar o 6 de janeiro de insurreição. Ele falou que os manifestantes mantiveram a ordem, e que só tiraram fotos e vídeos. Andrew Clyde disse também que se alguém assistisse às imagens do dia, sem saber do que se tratava, pensaria que aquela era uma visita turística.

Andrew Clyde: If you didn’t know the TV footage was a video from January the 6th, you would actually think it was a normal tourist visit.

Ana Luiza Albuquerque: O mesmo deputado aparece em fotos ajudando a montar uma barricada para tentar impedir que os apoiadores de Trump invadissem o plenário da Câmara. Ele sabe que o 6 de janeiro não foi um protesto normal. Mas o ex-presidente é muito popular entre as bases do partido Republicano, e comprar uma briga com ele tem um custo político alto.

As pesquisas indicam que boa parte dos eleitores conservadores não está muito preocupada com o que aconteceu. Um levantamento do portal americano Politico de dezembro de 2022 mostrou que só 16% dos republicanos diziam que os eventos do 6 de janeiro teriam um impacto grande no voto deles nas eleições presidenciais de 2024. 65% disseram que não teria impacto algum.

Até agora, mais de 1.200 pessoas envolvidas no ataque foram acusadas de crimes como conspiração, agressão e destruição de propriedade governamental. Mais de 700 foram condenadas. Líderes de milícias de extrema-direita, como os Proud Boys e os Oath Keepers, receberam as penas mais longas.

[reportagem AFP] Enrique Tarrio, ex-líder do grupo de extrema-direita Proud Boys, foi condenado a 22 anos de prisão nesta terça-feira. A sentença, a mais dura relacionada ao ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, foi proferida por um tribunal de Washington.

Ana Luiza Albuquerque: O comitê que investigou o 6 de janeiro no Congresso concluiu que as tentativas de Trump de mudar o resultado eleitoral e as mentiras que ele propagou sobre a suposta fraude nas eleições incentivaram os apoiadores a invadir o Capitólio.

O comitê, que atuou como uma espécie de CPI, trabalhou por 18 meses, do fim de junho de 2021 ao começo de janeiro de 2023. Os trabalhos envolveram mais de 1.000 entrevistas e a análise de trocas de e-mails, mensagens e registros de chamadas telefônicas.

O relatório final diz que aquele dia não teria acontecido sem o Trump. E aponta evidências de que o ex-presidente cometeu quatro crimes –obstrução de um procedimento oficial, conspiração para fraudar os Estados Unidos, conspiração para fazer uma declaração falsa e incitação de insurreição.

Mas, assim como as CPIs no Brasil, o comitê tem o poder apenas de recomendação –cabe ao sistema judicial acusar e julgar Trump. A Procuradoria acusou formalmente o ex-presidente de ter tentado alterar os resultados eleitorais, mas não seguiu o comitê na sugestão de acusá-lo de incitar os manifestantes no 6 de janeiro.

Bem antes disso tudo que a gente está tratando, em dezembro de 2019, a Câmara votou a favor do impeachment do Trump pela primeira vez. Ele foi acusado de abuso de poder e obstrução do Congresso.

[reportagem Globo] Os deputados ouviram depoimentos, avaliaram documentos e concluíram: Donald Trump suspendeu uma ajuda militar de quase 400 milhões de dólares para a Ucrânia. Em troca do dinheiro, pediu um favor ao presidente ucraniano: que investigasse o filho de Joe Biden.

Ana Luiza Albuquerque: O segundo processo aprovado pela Câmara veio uma semana depois do 6 de janeiro. Trump foi acusado de incitar a insurreição. Assim como a primeira tentativa de impeachment, essa também não foi aprovada no Senado.

Nos Estados Unidos, um grupo de deputados é escolhido para apresentar o caso para os senadores –eles são chamados de gerentes do impeachment, na tradução literal. O democrata Jamie Raskin, que liderou esse grupo, começou a escrever rascunhos do impeachment um dia depois da invasão do Capitólio.

Eu encontrei com o Raskin em setembro do ano passado, no gabinete dele. As paredes estavam cheias de pôsteres e quadros. Um deles listava os primeiros sinais de alerta do fascismo. Outro tinha uma frase do filósofo francês Voltaire, que o deputado citou no processo de impeachment: "Aqueles que fazem você acreditar em absurdos podem fazer com que você cometa atrocidades".

Ele compara os trumpistas com uma seita, e diz que o ex-presidente tem um efeito sobre os seguidores que parece um feitiço.

Jamie Raskin (dublado): Você realmente tem que ler sobre cultos religiosos e políticos para entender o que está acontecendo. São as sementes do fascismo e do autoritarismo.

Ana Luiza Albuquerque: O deputado defende que Trump é legalmente responsável pela invasão ao Capitólio.

Jamie Raskin (dublado): Obviamente havia forças estruturais maiores envolvidas, mas o papel que ele teve em orquestrar o que aconteceu foi central. Não foi suficiente, outras pessoas participaram. Mas ele foi o principal instigador.

Ana Luiza Albuquerque: Ele diz que o ex-presidente não acreditava de verdade que as eleições tinham sido fraudadas.

Jamie Raskin (dublado): Ele perguntava para as pessoas: você consegue acreditar que eu perdi para esse cara?

Ana Luiza Albuquerque: O Raskin lembra de um áudio vazado em que o Steve Bannon, aliado e antigo estrategista político do Trump, dizia que ele declararia a vitória antes do fim da contagem dos votos.

Steve Bannon: He’s gonna declare victory. But that doesn’t mean he’s the winner. He’s just gonna say he’s the winner.

Ana Luiza Albuquerque: Trump fez exatamente isso. A eleição aconteceu no dia 3 de novembro; nas primeiras horas do dia 4, com o resultado ainda em aberto em vários estados, ele anunciou que tinha ganhado.

Ana Luiza Albuquerque: Donald John Trump nasceu em Nova York, em 1946. Ele é o quarto dos cinco filhos de uma família rica –o pai dele era um magnata do ramo imobiliário. Depois de se formar na Wharton School, uma faculdade renomada de administração e finanças, Trump assumiu a empresa do pai aos 25 anos.

Ele expandiu os negócios, desenvolveu um império de hotéis e cassinos e se tornou uma figura emblemática em Nova York. Na 5ª avenida, fica a Trump Tower, um arranha-céu imponente onde funciona a sede da Trump Organization. Em 2022, o ex-presidente foi alvo de uma ação civil e a Justiça apontou que ele cometeu fraudes e enganou bancos e seguradoras enquanto construía esse império. Ao longo dos anos, algumas das empresas dele decretaram falência. E segundo a imprensa americana, Trump deve mais de 1 bilhão de dólares, principalmente para bancos —o patrimônio líquido dele é estimado em 2 bilhões e meio.

Antes desses contratempos, pouca coisa abalou a fama dele como essa figura meio mítica em Nova York. A partir dos anos 90, Trump chegou a fazer algumas pontas em filmes e séries, em geral interpretando ele próprio.

Carrie Bradshaw: Samantha, a Cosmopolitan and Donald Trump. You just don't get more New York than that.

Ana Luiza Albuquerque: Tipo nesse episódio da segunda temporada de Sex and The City, quando uma das personagens, a Samantha Jones, vai a um restaurante e encontra o Trump lá.

Donald Trump: I gotta go. But think about it. I’ll be in my office in Trump Tower.

Ana Luiza Albuquerque: No final da década ele enveredou pelo ramo do entretenimento, e em 2004 lançou um reality show que foi um sucesso de público –e ganhou uma versão brasileira.

Donald Trump: You’re all fired. All four are fired.

Carlos Poggio: O momento que ele ganhou uma grande projeção nacional, inclusive alguns dizem que foi o que salvou as finanças dele, foi quando ele participou do reality show O Aprendiz.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais na universidade americana Berea College. Ele diz que a figura de Trump era restrita a Nova York, mas que depois do programa ele conseguiu alcançar o resto do país.

Carlos Poggio: O Trump sempre foi uma marca que representava a opulência, a riqueza, que são questões que têm muito apelo para o americano médio.

Ana Luiza Albuquerque: Na política, Trump mudou de partido várias vezes desde os anos 80. Ele já fez parte do Democrata, do pequeno partido da Independência de Nova York e do Republicano –com idas e vindas.

Carlos Poggio: Ele não é alguém que tenha uma ideologia, digamos assim, muito concreta. E que mudou, inclusive, muitas das posições dele. A questão do aborto, por exemplo, é um tema muito claro em que ele foi alterando a sua posição apenas para fins políticos.

Donald Trump: I’m very pro choice.

Donald Trump: Very simple, pro life.

Ana Luiza Albuquerque: A primeira declaração, quando ele diz que é a favor da escolha da mulher, é de 1999. A segunda, quando ele fala que é a favor da vida, é de 2015, um ano antes de ser eleito presidente.

Trump cogitou concorrer à Presidência algumas vezes, mas foi só em 2015 que ele bateu o martelo e anunciou que disputaria as primárias do Partido Republicano.

Donald Trump: We will make America great again!

Ana Luiza Albuquerque: As primárias são um mecanismo tradicional da política americana, quando os eleitores de cada partido votam para decidir qual candidato vai concorrer pela legenda.

Carlos Poggio: Todo mundo do partido pode votar. Não é que nem aqui no Brasil ou como foi nos Estados Unidos até meados da década de 60, onde um partido se reunia a portas fechadas e escolhia o seu candidato.

Ana Luiza Albuquerque: No começo, Trump não foi levado muito a sério. Nem pelos líderes do partido, nem pela imprensa, nem pelos analistas políticos.

Nicholas Lemann (dublado): A nata do establishment Republicano estava concorrendo, e Trump era considerado meio que um candidato marginal, excêntrico

Ana Luiza Albuquerque: O Nicholas Lemann é professor de jornalismo na Universidade Columbia e repórter da revista New Yorker, com décadas de experiência na cobertura política. Ele também orientou o meu trabalho final no mestrado, então essa foi meio que a décima vez que eu fui na sala dele falar de líderes autoritários como o Trump.

O Lemann lembra que, no primeiro debate entre os Republicanos, pediram para os candidatos levantarem a mão se estivessem comprometidos a apoiar a indicação do partido para a corrida eleitoral, qualquer que fosse. Trump foi o único que não levantou.

Nicholas Lemann (dublado): Ele estava dizendo para os eleitores republicanos: eu sou muito diferente desses outros caras. Eu não sou parte do establishment. Eu sou o cara para você se você quer algo muito diferente do partido. E funcionou. Surpreendeu todo mundo, foi um verdadeiro choque.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2016 Trump concorreu com uma plataforma populista e, segundo alguns críticos, racista, prometendo uma caçada aos imigrantes ilegais e medidas protecionistas como o aumento dos impostos sobre os produtos chineses. Ele prometeu, inclusive, construir um muro na fronteira com o México —e disse que os próprios mexicanos pagariam por ele.

Donald Trump: I will build a great wall and nobody builds walls better than me, believe me.

Ana Luiza Albuquerque: E disse que os próprios mexicanos pagariam por ele.

Donald Trump: And I will have Mexico pay for that wall. Mark my words.

Ana Luiza Albuquerque: Com isso o Trump tentava falar diretamente com a classe trabalhadora –principalmente com quem tinha perdido o emprego ou que tinha medo de ser demitido, e que culpava a automatização, a globalização e os imigrantes por isso.

Carlos Poggio: Tem uma crescente desigualdade econômica nos Estados Unidos, particularmente a partir de 2008, quer dizer, onde você começa a ter claramente aqueles que são os perdedores da globalização.

Ana Luiza Albuquerque: Aqui o Carlos Poggio de novo.

Carlos Poggio: Então você tem uma certa elite que se beneficia desta globalização, mas você tem uma certa classe econômica que não tem esse benefício, que, pelo contrário, perdeu, por exemplo, empregos em fábricas de automóveis, digamos assim, que se viram atraídos por um discurso isolacionista do Donald Trump, protecionista, um discurso que não era muito forte em nenhum candidato dos Estados Unidos.

Ana Luiza Albuquerque: Trump também disse que garantiria programas de seguridade social, como o Medicaid, que ajuda pessoas de baixa renda a ter acesso ao sistema de saúde. Essas promessas fugiam da tradição dos Republicanos, historicamente alinhados com o livre mercado. Isso ajudou o Trump a conquistar eleitores conservadores nas questões morais, mas que não se viam representados nas políticas que agradavam Wall Street.

Carlos Poggio: Tem algumas vantagens para o Partido Republicano, que acabou capturando aí um grupo de eleitores que estava um pouco distante, o eleitor de baixa escolaridade, de zonas rurais. Esse eleitor se distanciava um pouco do partido, que falava muito sobre livres mercados, globalização, acordos comerciais, etc.

Ana Luiza Albuquerque: O Lemann diz que a piora na desigualdade social no país depois da crise financeira de 2008 deu abertura para candidatos populistas que prometiam enfrentar as elites, como o esquerdista Bernie Sanders e o próprio Trump.

Nicholas Lemann (dublado): Muitos eleitores americanos sentiam que não tinham sido convidados para a festa e ficaram chateados com isso. Tem um sentimento em parte da população de que eles foram deixados para trás. Que as elites não se importam com eles, que fazem piada sobre eles, que acham que eles são toscos.

Ana Luiza Albuquerque: Trump disputou as eleições de 2016 com a democrata Hillary Clinton, muito associada ao establishment político e econômico. E o republicano, conhecido pelas falas misóginas, não poupou ataques a ela.

Hilary Clinton: What we want to do is…

Donald Trump: Such a nasty woman.

Ana Luiza Albuquerque: Trump soube falar com as bases republicanas como ninguém, e assim ele tomou conta do partido. O cientista político Steven Levitsky, coautor do best-seller Como as Democracias Morrem, diz que o ex-presidente entendeu que os eleitores conservadores estavam com raiva e tinham se radicalizado.

Steven Levitsky (dublado): Ele entendeu que a base queria alguém que desse um soco no estômago da elite. É por isso que ele ganhou as primárias e é por isso que, sempre que tem um conflito no partido, a base apoia o Trump.

Ana Luiza Albuquerque: É comum ouvir que o Trump sequestrou o partido Republicano, mas o Levitsky diz que foi mais uma tomada amigável.

Steven Levitsky (dublado): Sequestro sugere uma tomada forçada. Eles o trouxeram a bordo. Eles amaram o Trump.

Ana Luiza Albuquerque: Na Presidência, Trump endureceu leis migratórias, continuou a atacar a mídia e a promover desinformação nas redes sociais e tirou o país de acordos multilaterais, como o de Paris, que tenta mitigar as mudanças climáticas. O republicano também pôde indicar três ministros para a Suprema Corte, o que garantiu uma maioria conservadora no tribunal —que acabaria banindo as ações afirmativas e em 2022 revogando o direito constitucional ao aborto.

[reportagem Globo] Hoje, por 6 votos a 3, os juízes tiraram das mulheres e deram aos estados o poder de decisão. Quase metade dos estados americanos vão fechar as clínicas que realizam o procedimento.

Ana Luiza Albuquerque: Durante o governo Trump, a polarização política atingiu níveis recordes, segundo o Pew Research Center. Ao fim do mandato, em 2020, ele contava com a aprovação de 77% dos Republicanos, mas de só 6% dos Democratas.

As tensões raciais também se aprofundaram, e logo no começo do governo, em 2017, supremacistas brancos fizeram uma grande marcha em Charlottesville, uma cidadezinha no estado da Virginia. Eles protestavam contra a decisão de retirar de um parque local uma estátua do general Robert Lee, comandante de forças contrárias à abolição da escravidão na Guerra Civil americana. David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan, disse à imprensa que o protesto era um ponto de virada e que eles cumpririam as promessas de Trump.

David Duke: We’re determined to take our country back, we’re gonna fulfill the promises of Donald Trump.

Ana Luiza Albuquerque: Manifestantes antirracistas e antifascistas fizeram um protesto contrário naquele mesmo dia em Charlottesville e houve confronto com os neonazistas.

[reportagem Globo] Um júri popular dos Estados Unidos condenou à prisão perpétua o protagonista de uma cena de ódio que indignou o mundo. James Fields atropelou e matou uma mulher que protestava contra uma marcha de nacionalistas brancos e neonazistas no estado da Virginia. Ele deixou outros feridos no local e fugiu.

Ana Luiza Albuquerque: Trump condenou os supremacistas brancos, mas disse que havia pessoas boas na marcha, que tinham o direito de protestar contra a retirada da estátua.

Donald Trump: You also had people that were very fine people. On both sides.

Ana Luiza Albuquerque: Ele também falou que os dois grupos foram responsáveis pela violência.

Em 2020, a questão racial ficou ainda mais no centro do debate público. Naquele ano, cenas chocantes do assassinato de George Floyd circularam por todo o mundo. Floyd, um homem negro, foi sufocado por um policial branco que pressionou o joelho contra o pescoço dele, o que disparou os protestos do Black Lives Matter.

Voices: No justice, no peace!

Ana Luiza Albuquerque: Cientistas políticos como o Steven Levitsky defendem que a vitória de Trump foi principalmente uma reação negativa à tentativa de construção de uma democracia multirracial nos Estados Unidos.

Steven Levitsky (dublado): Sempre que uma hierarquia racial é desafiada, os que estão no topo reagem. Muitos eleitores do Trump sentem que o país em que cresceram está sendo tirado deles. Eles cresceram num país em que os cristãos brancos estavam no topo da hierarquia econômica, social, política, cultural, por 200 anos. Todos os presidentes, todos os CEOs das grandes empresas, todos os generais militares, eram homens brancos. E só nos últimos 30 anos isso começou a mudar.

Ana Luiza Albuquerque: Para muitos analistas, Trump usa essa animosidade racial como motor político.

Ana Luiza Albuquerque: Trump é um exemplo do encontro entre populismo e autoritarismo –isso acontece quando ele usa a retórica do povo contra as elites para angariar apoio em torno de aspirações autoritárias.

Carlos Poggio: Um presidente, principalmente um presidente norte americano, ele não é um ditador. Pelo contrário, ele tem que se submeter às questões do Congresso, do Judiciário, da própria sociedade civil americana, que é muito ativa, né?

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Carlos Poggio, professor de RI, outra vez.

Carlos Poggio: E o Trump como líder populista e personalista, ele tem dificuldade em lidar com essas instituições. Então ele tenta falar diretamente ao povo, sem o intermédio de instituições.

Ana Luiza Albuquerque: Trump fez isso, por exemplo, no discurso que antecedeu a invasão ao Capitólio.

Donald Trump: But just remember this: you’re stronger, you’re smarter…

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse aos apoiadores que eles eram o povo de verdade, o povo que tinha construído a nação, e os incentivou a lutar pelo país –o que, na prática, significava lutar pelo golpe.

Donald Trump: And you're the real people, you're the people that built this nation. You're not the people that tore down our nation.

Ana Luiza Albuquerque: O Nicholas Lemann, repórter da New Yorker, diz que o autoritarismo de Trump se reflete na persona pública dele e no desrespeito a outros pontos de vista.

Nicholas Lemann (dublado): Ele tem meio que uma persona arrogante, que comunica que ele não acredita numa sociedade plural, em tratar as pessoas com respeito e trabalhar para atingir objetivos comuns. Em vez disso, ele debocha da oposição e usa uma retórica de crise e urgência que demanda que ele continue no poder.

Ana Luiza Albuquerque: O auge do autoritarismo de Trump foi, é claro, quando ele tentou reverter os resultados das eleições.

Nicholas Lemann (dublado): Esse é o teste número um para checar se um líder é democrático ou autoritário.

Ana Luiza Albuquerque: Depois da derrota, a campanha do republicano tentou contestar o resultado entrando com uma série de ações judiciais nos swing states –como são chamados os estados pêndulo, onde não há uma preferência clara por nenhum dos partidos. Como os pedidos foram rejeitados, Trump passou para a estratégia seguinte.

Nos Estados Unidos, os votos são certificados em duas esferas, e esse processo é conduzido por funcionários dos partidos. O ex-presidente e aliados dele passaram então a pressionar Republicanos envolvidos na certificação nos swing states, tentando fazer com que eles contestassem a vitória de Joe Biden.

Dias antes da invasão do Capitólio, a rede americana ABC News publicou um áudio em que o Trump pressionava o secretário de estado da Georgia, um republicano, a encontrar 11.780 votos –o número que ele precisava para vencer ali.

Donald Trump: I just want to find 11.780 votes, which is one more than we have, because we won the state.

Ana Luiza Albuquerque: Essa tentativa de interferência resultou na abertura de um processo contra Trump na Georgia, além da ação a que ele responde na Justiça federal.

Trump e aliados também pressionaram o então vice-presidente Mike Pence. Eles queriam que Pence se recusasse a reconhecer a vitória na sessão do Congresso –ainda que ele não tivesse poder pra isso. Antes do ataque ao Capitólio, Trump disse aos apoiadores que esperava que o vice fizesse a coisa certa.

Donald Trump: If Mike Pence does the right thing we win the election.

Ana Luiza Albuquerque: E, finalmente, quando todas essas tentativas deram errado, os trumpistas radicalizados invadiram o Capitólio. Mesmo depois desse episódio, sem precedentes na democracia americana, as pesquisas mostram que Trump continua sendo de longe o candidato favorito na base do partido dele.

Carlos Poggio: O Trump não está nem aí pro Partido Republicano. Ele usa o Partido Republicano como um meio, como um veículo para este movimento, que é uma coisa meio que inédita na história dos Estados Unidos, que é um movimento com um nome de uma pessoa.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Carlos Poggio de novo. Ele diz que na América do Sul a gente está acostumado com movimentos personalistas, como o varguismo no Brasil, o peronismo na Argentina… Mas que isso não era comum para os americanos –até a ascensão de Trump.

Carlos Poggio: O Trump é o primeiro político, o primeiro presidente norte americano a liderar um movimento, esse movimento de trumpistas. As pessoas que apoiam o Trump, ele pode ir para o partido Democrata, Liberal, Republicano, qualquer partido… As pessoas vão continuar seguindo o Donald Trump.

Ana Luiza Albuquerque: O cientista político Steven Levitsky defende que se a maioria dos conservadores tivesse condenado as tentativas de Trump de reverter os resultados eleitorais, o 6 de janeiro não teria acontecido.

Steven Levitsky (dublado): Se todos os republicanos tivessem feito isso, o Trump teria ficado reclamando num canto, que nem uma criança de 2 anos fazendo birra. Ele teria ficado isolado politicamente e seria muito mais difícil levar adiante o 6 de janeiro.

Ana Luiza Albuquerque: O Levitsky diz que nunca imaginou que algo do tipo pudesse acontecer nos Estados Unidos.

Steven Levitsky (dublado): Tem dois fatores que os cientistas políticos sabem sobre as democracias. O primeiro é que as democracias ricas nunca morrem. E as democracias antigas também não. Nenhuma democracia com mais de 50 anos se desfez. Então ninguém poderia imaginar uma crise democrática desse tipo. A gente superestimou a estabilidade da democracia americana.

Ana Luiza Albuquerque: Um dos aspectos mais importantes para a radicalização dos eleitores americanos e para a crise democrática foi a disseminação de teorias da conspiração –especialmente a partir da campanha de 2016. A primeira delas foi o Pizzagate: a ideia absurda de que a Hillary Clinton e a elite dos Democratas estavam liderando um esquema de tráfico sexual de crianças em uma pizzaria em Washington. A teoria se espalhou em fóruns como o 4chan e o 8chan e foi o embrião do Qanon.

O Qanon é quase uma seita.

Os seguidores acreditam que existe um estado profundo –o deep state– onde integrantes da elite Democrata, como Hillary Clinton e Barack Obama, e celebridades, como Oprah Winfrey e Tom Hanks, idolatram Satanás e se envolvem em atos de pedofilia.

[reportagem CNN Brasil] O Trump seria uma espécie de salvador da pátria, um messias, que iria acabar com todo este mal dentro da grande organização Legislativa, Executiva e até do departamento de segurança dos Estados Unidos.

Ana Luiza Albuquerque: Esse momento de glória que chegaria pelas mãos de Trump eles chamam de "The Storm" –a tempestade.

O movimento ganhou força em fóruns online e nas redes sociais. Tudo começou em 2017, quando um usuário anônimo que usava o codinome Q, Q em inglês, fez uns posts no 4chan dizendo que a Hillary Clinton seria presa. Ele alegava ser um alto funcionário do governo, que tinha acesso a informações privilegiadas sobre a luta de Trump contra o tal grupo de pedófilos satanistas.

O Q fez mais de 5 mil posts até a derrota do ex-presidente, em 2020, e depois meio que desapareceu. Até hoje não se tem certeza sobre quem era ele. Rolaram suspeitas sobre duas pessoas –o administrador de um dos fóruns onde as teorias eram postadas e um desenvolvedor de software. Os dois negaram terem feito as publicações. Chamadas de Q drops, elas eram dicas meio codificadas e deixavam os seguidores obcecados, tentando entender as pistas.

Sim, é bem bizarro que alguém possa acreditar numa história assim. Mas às vezes as pessoas estão vulneráveis, buscando algum sentido ou querendo fazer parte de algo. Foi o caso do Jitarth Jadeja, um australiano que morou nos Estados Unidos e que acompanhou de perto as teorias do Qanon por mais de um ano.

Jitarth Jadeja (dublado): Eu sinto que tem sempre um evento traumático na vida da pessoa antes de ela cair nesse buraco. Alguém morreu, ela perdeu o emprego, alguma coisa.

Ana Luiza Albuquerque: O Jitarth entrou em contato com o Qanon pela primeira vez no fim de 2017, uma época em que ele estava se sentindo muito perdido. Quando o Jitarth começou a mergulhar nas teorias, ele passou a falar sobre elas com o pai, com quem morava, mas tinha uma relação difícil. Pela primeira vez, ele sentia que o pai tinha interesse por ele.

Jitarth Jadeja (dublado): Eu explicava as coisas para ele, ele ouvia, e eu estava sendo respeitado pelas coisas que eu dizia. Eu procurava coisas novas para contar só para ganhar o respeito dele.

Ana Luiza Albuquerque: O Jitarth compara as mensagens do Q a uma droga na qual ele ficou viciado.

Jitarth Jadeja (dublado): Era a melhor coisa, não vou mentir. Era maravilhoso. Todo dia tinha uma atualização, um drama rolando. Eu ficava esperando pela próxima dica, aí você tinha que decodificar, era meio que uma atividade. Às vezes ele não postava por semanas e eu ficava tipo "Meu Deus, eu preciso da minha dose. Me dá a dica logo e me deixa injetar isso direto na veia".

Ana Luiza Albuquerque: Nessa época ele estava disposto a acreditar em qualquer coisa –tipo na teoria de a Angela Merkel ser filha do Hitler e o Justin Trudeau, do Fidel Castro. O Jitarth estava obcecado.

Jitarth Jadeja (dublado): Você recebe tanta informação aleatória, inútil, que quando você tenta falar com alguém aquilo simplesmente sai da sua boca. Eu não conseguia evitar. Eu via as pessoas ficando entediadas, e eu tentava calar a boca, mas não conseguia.

Jitarth Jadeja (dublado): Até que ele começou a perceber que as coisas que o Q dizia não se concretizavam. A gota d’água foi quando um integrante do fórum disse para o Q pedir para o Trump falar em alguma ocasião, como um aceno ao grupo, a expressão "tippy-top shape", algo como "nos trinques". Se o Trump dissesse isso em público, seria uma confirmação de que o Q tinha uma relação com o então presidente e que todo o resto também era verdade. Quatro meses depois, o Trump falou exatamente aquelas palavras para se referir à Casa Branca.

Donald Trump: We keep it in tip top shape. We call it sometimes tippy-top shape.

Ana Luiza Albuquerque: Mas aí o Jitarth encontrou uma compilação no Youtube das várias vezes em que o ex-presidente tinha falado isso. Ou seja, era só uma expressão que o Trump costumava usar para elogiar alguma coisa, e que o Q sabia que ele provavelmente usaria de novo. Era uma armação.

Jitarth Jadeja (dublado): Foi como se o tempo e o espaço tivessem colapsado sobre mim. Foi muito bizarro. Eu sentia como se estivesse parindo a mim mesmo. Aí eu saí de casa, eu não sabia o que fazer. Eu não sabia para onde olhar, o que pensar. Eu não confiava nos meus pensamentos, nem no que eu sentia. Eu estava fumando um cigarro no quintal e pensando "Meu Deus, cara. Eu estava muito errado".

Ana Luiza Albuquerque: Depois disso, ele decidiu contar no Reddit, outro fórum online, como ele tinha sido enganado pelo Qanon e como tinha conseguido acordar daquela espécie de transe.

Jitarth Jadeja (dublado): Eu queria contar o que tinha acontecido, mas eu também queria ser punido. Me destrua, diga as piores coisas sobre mim, por favor. Eu mereço isso. Eu estava buscando autoflagelação. Mas eles foram muito legais. Todos eles, cada um dos comentários.

Ana Luiza Albuquerque: O Jitarth costuma contar a história dele para tentar ajudar outras pessoas que estão passando pela mesma experiência. Não existe uma estimativa oficial de quantas pessoas acreditaram (ou ainda acreditam) no Qanon, mas uma investigação de 2020 do jornal britânico The Guardian mostrou que grupos e contas ligadas à conspiração tinham mais de 4 milhões e meio de seguidores no Facebook e no Instagram. As teorias também chegaram, em alguma medida, a outros países, como o Brasil.

Trump nunca desmentiu essas ideias delirantes, e ainda fez vários acenos ao Qanon. Em 2020 ele disse à imprensa que não sabia muito sobre o grupo, além do fato de que gostavam muito dele, e falou que os seguidores amavam o país. Aí uma repórter mencionou a teoria de que ele estaria salvando o mundo de uma elite pedófila e satanista. O ex-presidente respondeu que não tinha ouvido falar disso, e rebateu, nas palavras dele: Mas isso é uma coisa boa ou ruim? Se eu puder salvar o mundo dos problemas, eu estou disposto.

Trump não fez nada para desradicalizar os seguidores dele. Pelo contrário, ele compartilhou várias vezes nas redes sociais publicações de contas que apoiavam o Qanon. Depois do 6 de janeiro, o ex-presidente foi banido pelo Facebook, Instagram e Twitter –que ainda não tinha sido comprado pelo Elon Musk– e criou uma nova rede, a Truth Social. Nela, em 2022, Trump postou uma imagem dele usando um broche com a letra Q. Embaixo estava escrito "A tempestade está vindo", em referência ao dia em que, segundo o Qanon, ele triunfaria sobre o mal.

São muitos os relatos de famílias destruídas e de crimes cometidos pelos seguidores do grupo, de sequestros a assassinatos. Em 2019, o FBI classificou o Qanon como uma potencial fonte de terrorismo doméstico.

Seguidores da teoria participaram do ataque ao Capitólio e foram presos. Entre eles estava o Jacob Chansley, que ficou conhecido como xamã do Qanon. Você deve lembrar da figura –aquele homem sem camisa que usava um capacete com chifres e pele de animal e tinha as cores da bandeira dos Estados Unidos pintadas no rosto. Antes e durante a invasão, apoiadores do Qanon postaram a hashtag The Storm nas redes sociais e em fóruns. Eles achavam que a tempestade finalmente tinha chegado.

Ana Luiza Albuquerque: No dia 6 de janeiro de 2021, a deputada democrata Norma Torres chegou cedo ao Capitólio porque estava preocupada com protestos que podiam rolar contra a certificação de Joe Biden.

Norma Torres (dublado): Eu lembro de passar pela segurança, abaixar a janela do carro e perguntar para o policial: "Vai ficar tudo bem hoje?" E ele responder: "Eu acho que sim. Eu não sei o que te dizer, mas acho que sim." Então eu disse "ok, vou rezar por você e te vejo por aí".

Ana Luiza Albuquerque: A Norma estacionou o carro, passou numa lojinha de donuts e subiu para o gabinete.

Norma Torres (dublado): Eu ainda não consegui voltar a comer um donut com creme desde aquele dia.

Ana Luiza Albuquerque: Nascida na Guatemala, ela imigrou para os Estados Unidos quando tinha 5 anos. Norma foi integrante do Legislativo no estado da Califórnia e agora está no 5º mandato no Congresso.

Como a pandemia da Covid-19 estava num momento crítico, naquele dia os parlamentares foram divididos em dois grupos. Alguns ficaram no plenário da Câmara e outros, como a Norma, foram para a galeria. Quem está na galeria vê o plenário de cima.

No começo da tarde ela começou a receber alertas no celular que diziam que um dos prédios do complexo do Capitólio tinha sido invadido.

Norma Torres (dublado): A gente sabia que tinha muita gente do lado de fora porque a gente ouvia as vozes. Dava para ouvir as pessoas gritando.

Ana Luiza Albuquerque: A Norma precisou ir ao banheiro uma hora, e percebeu que o clima estava muito tenso. Os policiais perguntaram de um jeito agressivo o que ela estava fazendo. Então a Norma voltou rápido, e assim que ela entrou de novo na galeria veio um anúncio. O Capitólio tinha sido invadido e eles precisavam se proteger e ficar em silêncio.

Norma Torres (dublado): Imagina aquelas portas pesadas de madeira, com tipo 3 metros de altura, sendo fechadas com força. E as fechaduras sendo trancadas. Você ouvia o barulho, ouvia o eco. Era aterrorizante.

Ana Luiza Albuquerque: Uma das portas ficou aberta, e os parlamentares gritaram para o policial: fecha! Fecha! Ele gritou de volta dizendo que não tinha a chave. Aí eles juntaram alguns móveis para fazer uma barricada.

Depois disso, os parlamentares foram orientados a remover qualquer identificação de que eram congressistas.

Norma Torres (dublado): Eu nunca pensei que teria que esconder minha identidade no Capitólio. A gente está nos Estados Unidos. Eu nasci na Guatemala, onde coisas assim acontecem. Isso não pode acontecer aqui.

A única arma que a gente tinha eram lápis e canetas. A gente sabia que se eles entrassem, a gente teria que lutar. Então a gente se preparou para isso.

Ana Luiza Albuquerque: Enquanto isso, os congressistas que estavam no plenário começaram a ser retirados dali pela segurança.

Norma Torres (dublado): Eles estavam olhando para a gente como se dissessem: O que vai acontecer com vocês?

Ana Luiza Albuquerque: Ela preferiu não ler as redes sociais, não se informar com detalhes sobre o que estava acontecendo. A Norma não sabia que os manifestantes estavam armados, nem que tinham atacado as forças de segurança.

Daí os policiais pediram que os parlamentares deitassem no chão e ficassem em silêncio. Eles também foram orientados a colocar máscaras de gás. Os policiais estavam tentando achar um jeito de tirar os congressistas dali. E aí um dos agentes começou a gritar para que eles corressem.

Alguns, como a Norma, olharam para trás e viram que outros colegas precisavam de ajuda, então voltaram.

Norma Torres (dublado): Eu não sabia que a gente perderia o timing de fugir, e que a gente teria que se proteger atrás das barricadas de novo.

Ana Luiza Albuquerque: As coisas foram ficando ainda mais tensas. Eles escutavam os manifestantes jogando móveis contra a parede e quebrando vidros. Até que ouviram um tiro.

Norma Torres (dublado): A gente perguntou um para os outros: isso foi um tiro? E tinha sido. Aí eu percebi que a gente estava em sério perigo.

Ana Luiza Albuquerque: Nessa hora ela olhou lá de cima e viu que os apoiadores do Trump tentavam quebrar o vidro das portas do plenário.

Os policiais estavam lá dentro, com armas apontadas contra os invasores.

Norma Torres (dublado): Eu disse Meu Deus, vão atirar neles. Com a gente de testemunha aqui em cima.

Ana Luiza Albuquerque: Daí os policiais se prepararam mais uma vez para tirar os políticos dali. A Norma e os colegas da galeria foram os últimos congressistas escoltados.

Norma Torres (dublado): A gente correu pela porta. Eu lembro que a gente viu um grupo de homens brancos correndo na nossa direção. A gente começou a gritar porque não sabia quem eles eram. Aí eles disseram: está tudo bem, nós somos da segurança. E a gente não conseguia acreditar. Era difícil acreditar.

Ana Luiza Albuquerque: Eles foram levados para uma sala, onde ficaram por mais ou menos 5 horas. Ela diz que os Republicanos se recusaram a usar máscaras e que depois disso vários deputados pegaram Covid. Nesse tempo em que eles estavam no cômodo, a ameaça foi controlada e os policiais finalmente liberaram os congressistas.

Norma Torres (dublado): Alguns de nós nos juntamos e dissemos: a gente vai voltar para o plenário. E eles precisam ligar as câmeras para que os eleitores vejam que a gente está aqui e vai fazer nosso trabalho e certificar as eleições. A gente vai ter uma transferência pacífica de poder, não importa o que aconteça.

Ana Luiza Albuquerque: Os votos foram enfim certificados e, no dia 20 de janeiro, Biden tomou posse como o 46° presidente dos Estados Unidos.

Depois da invasão, os cerca de 25 democratas que estavam na galeria naquele dia criaram um grupo para trocar mensagens e lidar com o trauma.

Norma Torres (dublado): Nosso compromisso uns com os outros era que se alguém se sentisse mal, tivesse um ataque de pânico, essa pessoa mandaria uma mensagem e alguém responderia. O que a gente não esperava era que quando uma pessoa mandasse mensagem, todo mundo respondesse.

Ana Luiza Albuquerque: A Norma diz que eles se falam até hoje, e construíram uma rede de apoio que nem as famílias conseguiram prover. Ela conta que se desentendeu com o marido depois do 6 de janeiro. Ele ficou ressentido porque ela não ligou para ele durante a invasão, e ela ficou chateada porque ele não ligou para ela.

Norma Torres (dublado): No meio do trauma, você começa a atacar as coisas que são seguras para você, né? Nossas próprias famílias. Então para evitar isso a gente decidiu que naquele grupo a gente poderia derramar o que estava sentindo. Era um lugar seguro.

Ana Luiza Albuquerque: Dois anos depois da invasão do Capitólio, um roteiro parecido se desenrolou no Brasil.

Vozes: Invadimos essa bosta! Invadimos essa merda!

Ana Luiza Albuquerque: O antropólogo David Nemer, professor na Universidade da Virginia, acompanha grupos bolsonaristas nas redes sociais desde 2018 —especialmente no WhatsApp. Ele diz que logo depois do 6 de janeiro os apoiadores do Bolsonaro já falavam em reencenar a invasão no Brasil.

David Nemer: Essa ideia de invasão dos prédios públicos já circulava. Começa a circular depois do dia 6 de janeiro, com falas do tipo se o Bolsonaro não vencer, nós faremos o mesmo. Nós não vamos aceitar, nós somos patriotas, vamos invadir o STF e fechar o Congresso. Começa a se especular.

Ana Luiza Albuquerque: A importação de práticas da direita americana não é mera coincidência. A família Bolsonaro buscou uma aproximação com Donald Trump e aliados dele na campanha de 2018, e isso se intensificou quando os dois políticos estavam na Presidência.

O principal ponto de contato é o estrategista político Steve Bannon, que é conhecido por espalhar desinformação. Segundo o grupo de pesquisa Brookings, Bannon tem o podcast político que mais divulga informações falsas nos Estados Unidos.

Em 2022, a Justiça americana condenou o aliado de Trump a 4 meses de prisão por desacato ao Congresso. Bannon se recusou a entregar documentos e a depor ao comitê que investigou a invasão do Capitólio. As apurações apontaram que o estrategista e outras pessoas do entorno do ex-presidente se reuniram em um hotel em Washington um dia antes do ataque para discutir a tentativa de reverter o resultado eleitoral. E o Bannon disse no podcast dele: "o inferno vai acontecer amanhã".

Steve Bannon: Just understand this, all hell is going to break loose tomorrow.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2018, o deputado federal Eduardo Bolsonaro pediu ajuda do Bannon para a campanha do pai. Como estava interessado na criação de uma rede mundial da direita, o americano aceitou se encontrar com Eduardo e discutiu com ele estratégias para as redes sociais de Jair Bolsonaro.

David Nemer: Muito se especulou de que o Bannon trabalhou como um conselheiro informal ali, junto com os filhos de Bolsonaro, já que muita coisa do que aconteceu na campanha de 2016 de Trump a gente viu acontecendo em 2018 na campanha de Bolsonaro, muito que tinha a ver com o pânico moral. Em 2018 ficou famoso o kit gay ou a mamadeira de piroca como essa questão em que as escolas estavam envenenadas pelo marxismo cultural, reforçando a chamada ideologia de gênero. Essas foram estratégias implementadas tanto na campanha de Trump quanto na de Bolsonaro em 2018.

Ana Luiza Albuquerque: Bolsonaro se reuniu com Trump pelo menos quatro vezes durante o mandato.

Donald Trump: So we're gonna have a nice dinner, talk about different things.

Tradutora: Vamos ter um jantar excelente, falar de coisas diferentes.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2020, eles jantaram juntos em Mar-a-Lago, o resort do americano na Flórida.

Tradutora: E o Brasil realmente agora está fazendo as coisas muito, muito bem, deu uma virada.

Bolsonaro: Alguma coisa inspirada nele.

Ana Luiza Albuquerque: Eduardo Bolsonaro, que capitaneou a formação de laços com a direita internacional, também encontrou Trump em agosto de 2021. No dia 4 de janeiro daquele ano, dois dias antes da invasão do Capitólio, Eduardo esteve na Casa Branca com a esposa e a filha, e se reuniu com a Ivanka, filha de Trump. Segundo levantamento da Agência Pública, o filho de Jair teve pelo menos 77 encontros com representantes da direita americana entre 2017 e 2022.

David Nemer: Ele sempre fez essa ponte com a família Trump. Esse link sempre foi do Eduardo e ele também é sempre quem tinha mais contato com o Steve Bannon.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2018, o Bannon lançou o The Movement, uma tentativa de conectar a direita populista mundial. No ano seguinte, Eduardo foi apontado como líder do grupo na América do Sul.

Se você está com a gente desde o começo desse podcast, já me ouviu falar que o Eduardo Bolsonaro também foi responsável por trazer para o Brasil a CPAC, uma conferência conservadora americana, na qual políticos de direita de todo o mundo formam redes e trocam informações.

A proximidade de aliados de Trump com a família Bolsonaro levou a Polícia Federal a interrogar dois americanos que tinham participado de uma edição da CPAC no Brasil. O depoimento foi tomado no aeroporto, quando eles deixavam o país, no dia 7 de setembro de 2021.

Um deles era Jason Miller, ex-assessor de Trump e fundador da rede social de direita Gettr; o outro, o empresário Gerald Brant, uma das conexões de Bolsonaro com os conservadores americanos. No mesmo dia, o então presidente dava uma mostra do autoritarismo dele em um discurso agressivo na avenida Paulista, quando chamou o ministro do STF Alexandre de Moraes de canalha e disse que não respeitaria mais as decisões dele.

Jair Bolsonaro: E não vamos mais admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a açoitar a nossa democracia e desrespeitar nossa Constituição. Como agora há pouco, interceptou um cidadão americano para ser inquirido sobre atos antidemocráticos. Uma vergonha para o nosso país.

Ana Luiza Albuquerque: Miller e Brant foram ouvidos no inquérito das milícias digitais no STF. Naquele mesmo ano, a Polícia Federal tinha dito em um documento enviado ao Tribunal Superior Eleitoral que os bolsonaristas que espalhavam desinformação sobre as urnas eletrônicas repetiam a estratégia de comunicação trumpista, usada nas eleições americanas de 2016 e creditada a Bannon.

Na véspera das eleições brasileiras de 2022, Trump gravou um vídeo de apoio a Bolsonaro.

Donald Trump: The people at Brazil, you have a great opportunity to reelect a fantastic leader, a fantastic man.

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse que os brasileiros tinham a oportunidade de reeleger um líder fantástico, um dos maiores presidentes do mundo.

Donald Trump: So I strongly endorse president Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Mesmo antes da derrota do Bolsonaro, trumpistas como Bannon repetiram a narrativa falsa de que as eleições seriam fraudadas para beneficiar Lula. Quando apoiadores do ex-presidente começaram a protestar depois da vitória do petista, Bannon disse no podcast dele que aquela poderia ser a primavera brasileira, em referência à primavera árabe de 2010. Nos meses seguintes, a hashtag "brazilian spring" se espalhou no Twitter, o que reforçou as conexões entre as direitas americana e brasileira.

O jornal americano Washington Post noticiou que, depois da derrota, Eduardo Bolsonaro se reuniu com Trump na Flórida e também conversou com aliados americanos. Segundo o jornal, Bannon aconselhou Bolsonaro a contestar o resultado da eleição.

No 8 de janeiro de 2023, o americano chegou a compartilhar na Gettr uma notícia sobre a invasão do Congresso, com a legenda "Lula roubou as eleições dos brasileiros".

Mesmo derrotado e fora do poder, Bolsonaro foi ovacionado na CPAC americana, em março do ano passado. Ele foi apresentado por Trump como um "homem muito popular".

Donald Trump: Former president of Brazil, president Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Trump também disse que era amigo de Eduardo, que estava ao lado do pai.

Donald Trump: And his son, who’s a friend of mine, [from] Brazilian Chamber of Deputies, Eduardo Bolsonaro.

Ana Luiza Albuquerque: Trump e Bolsonaro têm muita coisa em comum –da retórica populista à disseminação de informações falsas, que culminaram na tentativa autoritária de alegar fraude eleitoral. Mas enquanto o brasileiro foi considerado inelegível pelo TSE, o americano segue no jogo, com chances reais de vitória, apesar dos processos judiciais.

No começo do episódio, eu disse que o Trump responde a quatro processos criminais. Dois dizem respeito à tentativa de interferir nas eleições –um na Justiça Federal e o outro na Georgia.

O ex-presidente também responde a outro processo na esfera federal, suspeito de ter retirado da Casa Branca documentos sigilosos, e levado o material para a residência dele na Flórida. E em Nova York Trump é acusado de ter comprado o silêncio de uma atriz pornô em meio à campanha de 2016. Ela diz que teve um encontro sexual com ele.

Em setembro do ano passado eu falei com o advogado Daniel Richman, que foi procurador federal e é professor de Direito em Columbia. Ele me disse que a evolução dos processos contra Trump ainda era muito incerta e que não dava para apontar qual deles era o mais complicado para o ex-presidente.

A gente conversou um pouco sobre os casos, e o Richman falou que os procuradores conseguiram montar uma acusação bem direta contra Trump no processo federal sobre a tentativa de reverter os resultados eleitorais.

Daniel Richman (dublado): Mas eles podem provar? Isso ainda vamos ver. Eles precisam mostrar que Trump e o entorno dele estavam intencionalmente fazendo falsas acusações sobre as supostas irregularidades nos estados.

Muita gente acha que isso é muito claro, já que não tem evidência de fraude. Mas isso não é suficiente num tribunal. Eles precisam mostrar que Trump realmente tinha consciência que as acusações eram falsas. Como você mostra isso? É difícil.

Ana Luiza Albuquerque: Richman diz que os procuradores vão tentar provar que Trump foi informado por assessores que têm vasto conhecimento das leis que não havia base para as acusações de fraude. Mas, ainda assim, isso pode não ser suficiente para uma condenação.

Daniel Richman (dublado): O argumento dele pode ser: eu não me importo com o que disseram. Eu realmente acreditava nisso, do fundo do meu coração. E eu também ouvi de alguns advogados e pessoas que acompanharam o processo que alguma coisa esquisita estava acontecendo. Eu não tinha certeza. Eu queria proteger os Estados Unidos e garantir que a eleição estava sendo conduzida corretamente.

Ana Luiza Albuquerque: Eu comentei com o Richman que chamou a minha atenção que os procuradores, pelo menos até aquele momento, não tinham acusado Trump de ter estimulado diretamente os apoiadores a invadir o Capitólio. Isso me interessou porque no Brasil Bolsonaro é investigado como autor intelectual do 8 de janeiro.

Daniel Richman (dublado): Tem quem diga que as falas do Trump em frente à Casa Branca foram um esforço calculado para juntar uma multidão que inevitavelmente iria cometer atos de violência no Capitólio. Mas acho que esse argumento pode ser contestado, especialmente quando você está falando de alguém que sempre usa uma linguagem inflamatória. Usar esse tipo de linguagem não é o mesmo que incitar as pessoas a cometer atos específicos de violência no Capitólio.

Ana Luiza Albuquerque: A Constituição americana não impede alguém condenado de assumir a Presidência. Em tese, Trump poderia assumir mesmo que estivesse preso. E o Richman diz que, se ele for eleito, pode usar o perdão presidencial para se livrar dos casos na esfera federal.

Daniel Richman (dublado): E se alguém argumentar que não é possível perdoar a si mesmo, certamente existem maneiras de o presidente fazer com que o procurador-geral arquive acusações contra ele.

Ana Luiza Albuquerque: O Richman acredita que os processos contra o Trump vão se arrastar por muito tempo e que é bem possível que não se resolvam até as eleições, em novembro desse ano.

Daniel Richman (dublado): É bem possível que as eleições aconteçam sem a resolução dessas acusações, e que os americanos acabem decidindo não só quem vai ser o presidente, mas qual vai ser o resultado desses processos. Alguns podem dizer que isso é problemático. Outros que é apropriado. E esse é o mundo em que a gente está vivendo.

Ana Luiza Albuquerque: O cientista político Steven Levitsky diz que o contexto que permitiu a vitória de Trump em 2016 ainda é o mesmo. Até aqui, as pesquisas mostram que a disputa deve ser acirrada entre ele e Biden. Mais da metade dos americanos desaprovam o mandato do democrata, segundo pesquisa da Reuters/Ipsos.

Levitsky defende que um segundo mandato de Trump seria muito perigoso para a democracia americana. Ele diz que em 2016 o Republicano no fundo não achava que iria ganhar. Que naquela época ele não tinha um plano, experiência ou equipe, e que ainda não controlava totalmente o partido, o que limitava o poder dele. Agora, o cenário é outro.

Steven Levitsky (dublado): Ele ainda não é muito organizado, não é muito inteligente. Ele não é o Viktor Orbán ou o Hugo Chávez, mas ele sabe o que quer fazer. Ele leu a cartilha autoritária. Ele sabe que precisa preencher cargos estratégicos no governo com pessoas absolutamente leais a ele. Ele vai fazer isso. E o partido Republicano vai aceitar qualquer coisa que ele fizer.

Ana Luiza Albuquerque: No Brasil, em 2022, Bolsonaro perdeu a chance de continuar no poder. Mas, mesmo com ele inelegível, o bolsonarismo não está morto —e pode definir os rumos políticos do país.

Locutor: Jair, Jair, Jair Messias Bolsonaro!

Jair Bolsonaro: Meu Deus, esse povo brasileiro não merece estar vivendo por esse momento, onde tão poucos causam tão mal a todos nós.

Ana Luiza Albuquerque: No próximo episódio, a gente vai discutir os danos que o ex-presidente causou para a democracia brasileira e o que a gente pode esperar para o futuro.

Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários. Se você gostou do episódio, avalia a gente e segue o podcast na sua plataforma preferida para não perder os próximos.

A edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.

Na dublagem você ouviu as vozes de Thiago Amâncio, Fabio Zanini, Paulo Passos, Alex Sabino, Lucas Breda, Gabriela Mayer e Walter Porto.

O episódio usou áudios de Global News, CNN, AFP, TV Globo, USA Today, HBO, NBC, Bloomberg, C-SPAN, NBC News, CNBC, Wall Street Journal, ABC News, Time, UOL, Poder 360 e SBT News.

Até semana que vem.

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