Artigo: Brasília, o mito da construção
Diante das câmeras de Vladimir Carvalho em "Conterrâneos Velhos de Guerra" (1991), Lucio Costa negou que as condições dos trabalhadores da construção civil durante a construção de Brasília tivessem qualquer importância. "Para num deserto construir uma cidade, não pode ser um minueto de cavalheiros" foi o que disse o arquiteto do plano piloto, questionado sobre a revolta de candangos desesperados com as condições dos canteiros de obras da construtora Pacheco Fernandes. O desfecho da revolta, segundo o documentário, foi trágico: os candangos foram duramente reprimidos e mortos.
A construção de Brasília expõe o outro lado da moeda da arquitetura que se destaca "branca, como que flutuando na imensa escuridão do planalto" como escreveu Oscar Niemeyer. Existe algo de absurdo na ideia de se construir uma cidade inteira em três ou quatro anos e esse absurdo não foi conquistado sem sacrifício. As máquinas não podiam parar, as jornadas de trabalho eram longuíssimas, a comida, racionada e os alojamentos ofereciam péssimas condições de salubridade. Um grande exército de reserva de trabalhadores vindos, sobretudo do Nordeste do país, foi responsável por executar essa parte suja da construção.
Não eram apenas esses os grandes inconvenientes. A construção da cidade gerou um imenso desequilíbrio econômico e, numa parte da história que raramente é contada, os gastos públicos com cimento e aço, provocaram endividamento, seguido de uma forte pressão inflacionária no Brasil. Os efeitos da construção de Brasília para a economia brasileira foram catastróficos e sentidos até hoje.
Diante dessas questões, para justificar a construção de uma cidade inteira, Juscelino teria que recorrer não apenas a explicações lógicas como também mitológicas. E não foi a força anônima do trabalho dos candangos que foi lembrada, mas sim a força bruta colonizadora dos bandeirantes através da poesia de Vinicius na Sinfonia da Alvorada: "Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato, / Vós fostes os heróis das primeiras marchas para o oeste, / Da conquista do agreste / E da grande planície ensimesmada!".
Brasília então continua a história colonial do Brasil. Lucio Costa já desenvolve esta ideia no memorial descritivo do plano piloto, "Nascida de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz". Tal gesto primário de Lucio não é o traço do arquiteto sobre o papel, extraindo a poesia de toda uma cidade, mas o gesto primário da colonização; de tomar posse, dominar, sequestrar. Invoca-se assim a imagem das bandeiras, que, a partir da construção histórica do mito fundador do país, tomam posse do território. Os ângulos retos primários de Brasília são os ângulos retos desenhados pelo arruador colonial na América.
Os bandeirantes, de forma sugestiva, deram também nome a um símbolo do que se anunciou como o grande problema da capital e que em nada se diferenciava, apesar de ter sido planejada, do problema urbano de todo país: a periferização e favelização. O Núcleo Bandeirante foi o nome dado para uma "Cidade Livre", onde não se cobrava impostos, construída para atender os trabalhadores da construção de Brasília. A cidadela, inicialmente comercial, foi delimitada fora do plano piloto e não demorou para se tornar um aglomerado precário de construções. Nos anos seguintes, depois da inauguração, os candangos insistiam em invadir o espaço que construíram próximo das superquadras e a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) foi organizada para a manutenção dos espaços livres do plano. Juntavam-se assim ao Núcleo Bandeirantes outras precárias cidades satélites, entre elas uma que, ironicamente, foi chamada de Ceilândia.
Muito antes de ser inaugurada, Brasília já tinha sua periferia, sua história de opressão e seu mito fundador. Resta até hoje ainda um rabo de dúvida. Por que em um deserto construir uma cidade a sangue e dívidas, e retirar a capital federal do centro do Rio de Janeiro, junto das massas que poderiam se manifestar e participar da vida política do país? Ou, como já se perguntava em 1957 o crítico Mario Pedrosa, "A Brasília de Lúcio Costa é uma utopia, mas terá algo a ver com a Brasília que Juscelino Kubitschek quer edificar"?
GABRIEL KOGAN é arquiteto e urbanista formado pela FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo)
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