Lava Jato poupou donos da Odebrecht de medidas drásticas para fechar delação

Procuradores cogitaram obrigar controladores a vender ações, mas descartaram ideia com avanço de negociações, mostram mensagens

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Ricardo Balthazar, da Folha Paula Bianchi, do The Intercept Brasil
São Paulo e Rio de Janeiro

Procuradores da Operação Lava Jato pouparam a Odebrecht e seus principais executivos de medidas drásticas cogitadas durante as negociações do acordo bilionário que assegurou a cooperação da empresa com as investigações a partir de 2016. 

Mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas pela Folha em conjunto com o site mostram que os procuradores pensaram até em obrigar os donos da Odebrecht a vender suas ações na empresa, para que se afastassem completamente dos seus negócios após a delação.

Os investigadores também discutiram a possibilidade de impedir a Odebrecht de pagar os advogados dos delatores e se responsabilizar pelas multas impostas aos executivos, para evitar que preservassem o patrimônio acumulado quando estavam envolvidos com a corrupção na empresa.

Mas os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept indicam que os procuradores deixaram de lado essas medidas com o avanço das negociações, para não inviabilizar o acordo com a Odebrecht, que era um dos maiores grupos empresariais do país e entrou em crise quando foi atingido pela Lava Jato.

Fachada da sede da Odebrecht, na zona oeste de São Paulo
Fachada da sede da Odebrecht, na zona oeste de São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

Três pessoas que participaram das discussões com a empresa nessa época disseram à Folha que os procuradores nunca levaram essas ideias à mesa de negociações e que eles provavelmente teriam tornado o acordo impossível se tivessem apresentado essas exigências e insistido nelas. 

O material obtido pelo Intercept mostra também que o envolvimento da cúpula da Odebrecht com o esquema de lavagem de dinheiro criado pela empreiteira para pagar propina a políticos e funcionários públicos foi mais profundo do que os documentos da delação divulgados até agora sugerem.

Cálculos feitos pelos procuradores na reta final das negociações indicam que o principal acionista da empresa, Emílio Odebrecht, seu filho Marcelo e outros 16 executivos que viraram delatores receberam uma soma equivalente a US$ 167 milhões em contas secretas no exterior, num período de dez anos.

Esse dinheiro equivale a quase metade do valor total dos pagamentos ilegais feitos pela Odebrecht a políticos e funcionários brasileiros de 2001 a 2016, estimado em US$ 349 milhões pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que participou das negociações com a empresa.

Ao decidir colaborar com a Lava Jato, esses 18 executivos concordaram em devolver boa parte dos recursos recebidos ilegalmente no exterior, mas os valores foram mantidos em sigilo, e eles foram autorizados a abater gastos com viagens e outras despesas pessoais na hora do acerto de contas com a Justiça.

As mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept, trocadas pelos procuradores no aplicativo Telegram, mostram que a Lava Jato já tinha muitas informações sobre os crimes praticados pelos executivos da Odebrecht quando seus advogados bateram à porta em busca de um acordo.

Os investigadores já sabiam da existência do Setor de Operações Estruturadas, o departamento criado pela empresa para movimentar dinheiro sujo no Brasil e no exterior, e tinham recebido da Suíça muitas informações sobre as contas usadas para distribuir os recursos. 

Em abril de 2016, quando as negociações ainda estavam num estágio preliminar, o procurador suíço Stefan Lenz informou à Lava Jato que Emílio Odebrecht e outros diretores da empresa não só sabiam do esquema como tinham recebido pagamentos fora do Brasil ilegalmente.

“Emilio e a maioria dos diretores têm contas na Suíça e estão com suas contas diretamente envolvidas no esquema ilegal”, disse Lenz ao procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa à frente da operação em Curitiba. “Então por favor não facilitem muito para eles.”

No início de novembro, quando chegou o momento de discutir as penas dos delatores, Emílio declarou que recebera da empresa R$ 172 milhões no Brasil e R$ 148 milhões na Suíça nos dez anos anteriores e mantinha saldo de quase US$ 9 milhões em suas contas fora do país. 

O empresário aceitava pagar multa equivalente a 40% dos rendimentos que recebera legalmente, mas queria abater R$ 42 milhões que recolhera em impostos ao aderir ao programa lançado pelo governo naquele ano para regularização de ativos mantidos ilegalmente no exterior.

Como a alíquota de Imposto de Renda para os que optaram pelo programa era de 15%, isso significava que Emílio legalizara ativos avaliados em R$ 280 milhões, montante superior aos rendimentos recebidos do Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht.

Mesmo assim, o empresário se dispunha a devolver apenas uma fração do dinheiro, US$ 300 mil, para atender às condições negociadas pela Odebrecht com a Lava Jato. 

“Vejam q piada o cálculo de multa e do perdimento do Emílio”, escreveu o procurador Júlio Noronha no Telegram, ao enviar aos colegas uma planilha com as penalidades em discussão. “Perdeu totalmente o senso do ridículo!!!”, disse a procuradora Laura Tessler.

Ao final das negociações, concluídas duas semanas depois, Emílio aceitou pagar multa de R$ 69 milhões, sem abatimento do imposto, e uma quantia significativamente maior a título de perdimento dos valores recebidos ilegalmente no exterior. 

As mensagens obtidas pelo Intercept indicam que a evolução das conversas criou boa vontade entre os procuradores com Emílio. A poucos dias da assinatura dos acordos, Noronha disse aos colegas que o valor do perdimento poderia ser reduzido de US$ 50 milhões para US$ 21 milhões no seu caso.

O número definitivo ainda depende de acertos que o empresário poderá fazer na Justiça quando chegar sua vez de pagar. Emílio foi condenado em apenas um processo da Lava Jato em Curitiba até agora, mas a sentença ainda está em discussão na segunda instância.

Seu filho Marcelo, que passou dois anos e meio na cadeia antes de ser transferido para prisão domiciliar, pagou R$ 73 milhões de multa e ainda discute na Justiça o dinheiro recebido no exterior. Em agosto deste ano, a Procuradoria-Geral da República rejeitou um pedido dele para que fosse revisto o valor acertado como perdimento no seu caso, US$ 34 milhões.

O acordo da Odebrecht, do qual participaram autoridades dos EUA e da Suíça, foi o maior negociado pela Lava Jato até hoje. Além de revelar crimes e fornecer provas, a empresa concordou em pagar multa de R$ 3,8 bilhões para ter o direito de voltar a fazer negócios com o setor público.

Ao mesmo tempo, 77 executivos da empresa assinaram acordos de delação premiada para cooperar com as investigações em troca de penas reduzidas e outros benefícios. Juntos, eles concordaram com o pagamento de R$ 515 milhões em multas, além dos valores a serem devolvidos a título de perdimento.

Além de pagar as despesas com multas e advogados, a Odebrecht se comprometeu a indenizar os ex-funcionários pela perda de bens confiscados durante as investigações e por danos causados à sua reputação, já que a volta ao mercado de trabalho se tornou inviável para a maioria após a revelação de seus crimes.

Esse procedimento, que se mostrou essencial para garantir a cooperação dos executivos com a Lava Jato, foi alvo de críticas dos procuradores no início das negociações, de acordo com as mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept.

Em junho de 2016, Deltan e outros dois procuradores sugeriram aos colegas que a empresa fosse impedida de assumir as multas. “Executivos devem arcar, na minha opinião”, disse no Telegram. Ele propôs que a empresa fosse punida com a rescisão do acordo se pagasse as penalidades dos executivos.

Mas outros negociadores achavam que seria uma intromissão indevida nas relações entre a empresa e seus funcionários, que poderia afastar os executivos das negociações e até mesmo inviabilizar o acordo. Além disso, havia preocupação com a frágil situação financeira da empresa.

“Alerto: a ode não deve quebrar. Se quebrar, vamos nos deslegitimar”, disse o procurador Marcello Miller aos colegas, em meio à discussão sobre as multas. “O acordo —é assim no mundo— deve salvar empregos. Temos de ter muito cuidado com isso.”

Para o procurador Antônio Carlos Welter, era preciso garantir punições aos que tivessem praticado crimes. “Ninguém quer quebrar a Ode. Mas a pena tem que ser adequada e proporcional”, escreveu. “Tá com peninha do MO, leva para casa”, acrescentou, referindo-se a Marcelo Odebrecht.

Três advogados que acompanharam as negociações com a Lava Jato disseram à Folha que os investigadores nunca procuraram a empresa para discutir a forma de pagamento das multas. 

Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o empresário Emílio Odebrecht, em unidade Braskem Petroquímica
Em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o empresário Emílio Odebrecht, em unidade Braskem Petroquímica - Eduardo Knapp/Folhapress

As mensagens trocadas pelos integrantes da Lava Jato sugerem que Emílio Odebrecht hesitou por algum tempo em se tornar ele mesmo um delator, por temer os danos à imagem da empresa e suas relações com os bancos, mas cedeu depois que os procuradores deixaram claro que não haveria acordo sem ele. 

Entre os benefícios que obteve, Emílio foi autorizado a continuar à frente do conselho de administração do grupo por dois anos para reorganizá-lo antes de cumprir um período de dois anos de prisão domiciliar imposto pelo acordo. Ele deixou a presidência do conselho no ano passado.

Marcelo, que agora cumpre pena de prisão domiciliar em regime semiaberto e pode sair de casa durante o dia, visitou a sede da empresa no último dia 12, de surpresa. O acordo com a Lava Jato proíbe que ele volte a ocupar cargos de direção na Odebrecht e trate de negócios com funcionários públicos.

Pai e filho não se falam desde 2016, quando Marcelo estava preso em Curitiba e o pai liderou o processo que levou à colaboração da empresa.

A ideia de obrigar os controladores da Odebrecht a se desfazer de suas ações foi cogitada em dois momentos das negociações, segundo as mensagens obtidas pelo Intercept. Mas um dos advogados ouvidos pela Folha disse que ela foi ventilada apenas uma vez, durante uma discussão mais acalorada. 

Em outubro de 2016, no início da negociação da multa imposta à empresa, a Odebrecht indicou que não teria condições de pagar mais do que R$ 3,3 bilhões sem pôr em risco sua saúde financeira. Deltan sugeriu aos negociadores que pedissem R$ 12 bilhões e colocassem as ações dos controladores em jogo.

“Vamos tentar alavancar falando de perda das ações das famílias que são donas (ideia do CF)”, disse Deltan aos colegas no Telegram, atribuindo a proposta ao procurador Carlos Fernando dos Santos Lima.

A ideia foi descartada e o acordo foi assinado, mas a Odebrecht não conseguiu superar a crise em que afundou com a Lava Jato. A empresa se desfez de vários negócios, demitiu milhares de funcionários e rolou dívidas com os bancos. Em junho deste ano, entrou com pedido de recuperação judicial para renegociar suas dívidas com os credores.

Força-tarefa diz que descartou medida por falta de previsão legal

A força-tarefa à frente da Lava Jato em Curitiba afirmou na sexta-feira (20) que descartou a ideia de obrigar os controladores da Odebrecht a vender suas ações por falta de previsão legal para a medida e por causa das dificuldades que teria para calcular o valor dos ativos e vendê-los.

Em resposta por escrito a questionamentos da Folha, os procuradores disseram que não haveria “procedimentos seguros para resguardar o interesse público quanto à avaliação e venda de ativos ilíquidos de grande monta” se a medida tivesse sido incorporada ao acordo firmado com a empresa.

A força-tarefa disse que não interferiu na decisão da Odebrecht de pagar as multas impostas aos executivos que se tornavam colaboradores. “A decisão ocorre entre empresa e executivos, em discussão interna”, afirmou, acrescentando que o assunto está em debate numa das câmaras de coordenação do Ministério Público Federal.

Os procuradores não quiseram discutir os critérios adotados no cálculo das multas e nas negociações para restituição de valores recebidos ilegalmente no exterior pelo empresário Emílio Odebrecht, seu filho Marcelo e outros executivos que se tornaram delatores.

“Os acordos de colaboração e leniência visam a angariar informações e provas sobre novos crimes e maximizar a recuperação de valores”, disse a força-tarefa.

“As negociações são complexas e envolvem fatores como comprovação da delação, teor de novidade, probabilidade de os fatos e provas serem obtidos sem acordo, potencial de ressarcimento e outros.”

A Odebrecht afirmou ter assegurado aos seus ex-funcionários “condições para que pudessem colaborar de forma voluntária, ampla, eficaz e contínua com as autoridades, permitindo a celebração dos acordos de leniência da empresa e contribuindo para o combate à corrupção no Brasil e em outros países”.

“Não cabe à empresa comentar as tratativas e o teor final dos acordos de colaboração de pessoas físicas e de leniência da empresa, os quais foram devidamente homologados pela Justiça”, acrescentou a Odebrecht. 

O ex-procurador Marcello Miller, que participou das negociações, disse reconhecer as mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept. “Confrontado com elas, tem a recordação de tê-las enviado”, afirmou. “O tom e a linguagem das mensagens resultam da informalidade do ambiente em que foram enviadas.”

Miller disse que “agiu no regular exercício das funções que então desempenhava” e afirmou manter as opiniões que defendeu nos diálogos com os colegas durante as negociações.

“Encargos financeiros em acordos celebrados pelo Ministério Público devem ser fixados com equilíbrio e preservar a viabilidade econômica das empresas —e isso não haveria de excluir a Odebrecht”, afirmou.

Sobre o pagamento das multas dos colaboradores, ele disse que “a responsabilidade penal é individual, inclusive no plano pecuniário, devendo, em princípio, cada colaborador arcar com os próprios encargos”.

“O sistema de justiça não deve ter compromisso com privilégios ou personalismos no controle ou na administração de empresas, ainda menos a pretexto da centralidade de pessoa determinada para questões tão complexas quanto a gestão e o crédito de uma empresa de grande porte”, acrescentou.

Miller deixou o Ministério Público em 2017 para trabalhar como advogado no setor privado. Ele foi alvo de uma ação na Justiça por causa de sua participação nas negociações da delação dos donos da JBS, quando ainda não se desligara das funções de procurador, mas o processo foi trancado pelo Tribunal Regional Federal da 1° Região na semana passada. 

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