Toffoli intima BC e obtém dados sigilosos de 600 mil pessoas; PGR estuda reagir

Iniciativa gera apreensão no governo Bolsonaro; presidente do Supremo diz não poder comentar processo sob sigilo

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Brasília

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, determinou que o Banco Central lhe enviasse cópia de todos os relatórios de inteligência financeira (RIFs) produzidos pelo antigo Coaf nos últimos três anos, tendo obtido, assim, acesso a dados sigilosos de cerca de 600 mil pessoas —412,5 mil físicas e 186,2 mil jurídicas.

O pedido de Toffoli, obtido pela Folha, é do último dia 25 de outubro e foi no âmbito de um processo no qual, em julho, o ministro suspendeu todas as investigações do país que usaram dados de órgãos de controle —como o Coaf e a Receita Federal— sem autorização judicial prévia.

Naquela ocasião, Toffoli concedeu uma liminar (decisão provisória) atendendo a um pedido de Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo PSL-RJ, filho do presidente Jair Bolsonaro e que era alvo de uma apuração do Ministério Público do Rio.

O presidente Jair Bolsonaro, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, durante a posse do novo PGR
O presidente Jair Bolsonaro, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, durante a posse do novo PGR - Pedro Ladeira - 2.out.19/Folhapress

Em resposta à nova ordem de Toffoli, o Coaf, rebatizado de UIF (Unidade de Inteligência Financeira), afirmou em ofício que entre os citados nos relatórios a que Toffoli ganhou acesso existe “um número considerável de pessoas expostas politicamente e de pessoas com prerrogativa de foro por função”.

A UIF apontou que a medida traz uma série de riscos a eventuais investigações que estejam em andamento em todas as instâncias da Justiça pelo país, e fez um alerta por cautela na proteção dos dados.

A justificativa da determinação do ministro é entender o procedimento de elaboração e tramitação dos relatórios financeiros. Toffoli já havia pedido informações dessa natureza antes, mas elas teriam chegado de forma genérica demais.

Ao todo, Toffoli (ou um servidor do Supremo cadastrado por ele) passou a poder acessar, diretamente no sistema eletrônico da UIF, 19.441 relatórios, mencionando quase 600 mil pessoas, que foram produzidos pelo órgão de inteligência financeira de outubro de 2016 a outubro de 2019.

A iniciativa do ministro gerou apreensão no governo —segundo a Folha apurou, há integrantes da família Bolsonaro mencionados em relatórios, entre outras autoridades.

Os relatórios da UIF partem de instituições, como bancos, que são obrigadas a informar ao órgão sobre a existência de movimentações supostamente atípicas. Os indícios não significam que as pessoas tenham cometido algum crime —e nem todas as comunicações feitas à UIF seguem para as autoridades responsáveis por investigações criminais.

A Procuradoria-Geral da República estuda adotar medidas para questionar a determinação do presidente do STF. O procurador-geral, Augusto Aras, deve receber um parecer interno de um membro do Ministério Público Federal que consultou a UIF sobre os riscos da decisão de Toffoli. Esse parecer poderá embasar eventual medida da PGR.

Flávio era investigado sob suspeita de desviar parte dos salários de funcionários de seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa fluminense, prática conhecida como “rachadinha”.

O inquérito sobre o senador se originou de um relatório do antigo Coaf que apontou movimentações atípicas de R$ 1,2 milhão nas contas do ex-assessor Fabrício Queiroz. A defesa de Flávio sustentou ao STF que houve uma verdadeira quebra de sigilo sem controle judicial. O caso foi um dos paralisados por Toffoli.

A paralisação de investigações desse tipo está válida até o plenário do Supremo julgar o processo, no próximo dia 20, que deve definir em quais condições órgãos de controle podem repassar dados ao Ministério Público para fins de investigação penal.

No último dia 25, Toffoli determinou ao Banco Central que encaminhasse à corte, em cinco dias, cópias de todos os RIFs especificando quais foram elaborados a partir de análise interna da UIF, quais foram feitos a pedido de outros órgãos (como o Ministério Público) e, nas duas situações, quais foram os critérios e fundamentos legais.

A resposta do BC veio em 5 de novembro, quando o presidente da instituição, Roberto Campos Neto, enviou ofício junto com uma nota técnica que esclareceu a Toffoli como acessar os dados sigilosos requeridos.

A nota técnica foi assinada no dia anterior pelo presidente da UIF, Ricardo Liáo.

“Cumpre ressaltar, por dever de ofício, que nessa pasta [à qual foi dado acesso] estão sendo disponibilizados 19.441 RIF [...] com informações cadastrais, pessoais e financeiras, parte delas sujeita a regime legal de sigilo ou restrição de acesso, de quase 600 mil mencionados, dentre estas, um número considerável de pessoas expostas politicamente e de pessoas com prerrogativa de foro por função”, afirmou.

“Há, ainda, informações relacionadas a casos que certamente tramitam sob segredo de justiça nas mais variadas instâncias [...], além de relatórios enviados a autoridades competentes responsáveis por investigações que ainda podem estar em curso”, continuou Liáo.

“Faz-se o presente alerta para que a autoridade judicial destinatária [Toffoli] possa avaliar e adotar as medidas de tratamento da informação e de restrição de acesso que considerar cabíveis, de acordo com a legislação própria.”

Nesta quarta (13), um grupo de trabalho da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), após visita ao Brasil, manifestou preocupação com a decisão de Toffoli e a aprovação da lei do abuso de autoridade.

Segundo o grupo, as medidas podem significar retrocessos no combate à corrupção.

Procurado pela reportagem, o presidente do Supremo disse que o processo que discute o assunto corre sob sigilo e que, por isso, não pode se manifestar.

Ao pedir para o STF suspender a investigação que corria contra Flávio no Rio, a defesa do senador pegou carona em um recurso extraordinário que já tramitava no tribunal e que discutia o compartilhamento de dados da Receita —não do Coaf— com o Ministério Público.

Quando atendeu o pedido, em julho, Toffoli estendeu a discussão sobre o compartilhamento de dados a todos os órgãos de controle.

“Só não quer o controle do Judiciário quem quer Estado fascista e policialesco, que escolhe suas vítimas. Ao invés de Justiça, querem vingança”, disse o presidente do STF à Folha na época.

ENTENDA O PEDIDO DE TOFFOLI

O que Toffoli pediu ao Banco Central?
Toffoli determinou ao Banco Central que encaminhasse ao Supremo, em cinco dias, cópias de todos os relatórios de inteligência financeira (RIFs )produzidos pelo antigo Coaf (hoje UIF) nos últimos três anos. Ele solicitou também as representações fiscais para fins penais (RFFPs) elaboradas pela Receita no mesmo período. No pedido, o ministro afirma que devem ser especificados quais foram elaborados a partir de análise interna da UIF, quais foram feitos a pedido de outros órgãos (como o Ministério Público) e, nas duas situações, quais os fundamentos legais envolvidos.

Os RIFs envolvem dados de quantas pessoas?
Cerca de 600 mil pessoas (412,5 mil físicas e 186,2 mil jurídicas), muitas expostas politicamente e com foro por prerrogativa de função. Os relatórios contêm dados sigilosos.

Qual a justificativa de Toffoli para solicitar os relatórios?
Entender o procedimento de elaboração e tramitação dos relatórios financeiros. Toffoli já havia pedido informações dessa natureza antes, mas elas teriam chegado de forma genérica demais.

O que são os relatórios a que Toffoli teve acesso?
Os relatórios partem de dados de instituições como bancos, seguradoras e joalherias, que são obrigadas a informar à UIF a ocorrência de movimentações consideradas atípicas. As transações não necessariamente indicam que houve crime, mas podem levantar suspeitas.

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