Em prefácio, Persio Arida narrou convite a Celso Pinto para a equipe do Plano Real

Jornalista, que morreu nesta terça, foi chamado para acompanhar processo e escrever livro

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São Paulo

O economista Persio Arida relembrou o convite para que Celso Pinto participasse da equipe econômica responsável pelo Plano Real no prefácio de um livro de 2007 com artigos do jornalista, morto nesta terça-feira (3).

No texto, Persio explicou a ideia que surgiu em 1994, quando o governo punha em marcha o plano de estabilização: Celso iria testemunhar e registrar todas as reuniões de formulação do Real para escrever um livro "mostrando a política econômica por dentro".

O repórter, no entanto, recusou a proposta. Afirmou que "o envolvimento com o governo, com qualquer governo, afetaria a neutralidade que um jornalista deve ter", conforme o relato de Persio.

Celso Pinto (à esq.), que morreu nesta terça, e Persio Arida, economista que escreveu prefácio de livro com textos do jornalista - Cacalos Garrastazu - 3.jan.2000/Valor/Ag. O Globo e Mathilde Missioneiro - 1º.ago.2019/Folhapress

Celso, que morreu aos 67 anos, começou na profissão em 1974, na Folha. Criador do jornal Valor Econômico, ele foi internado com pneumonia há duas semanas e não resistiu a complicações decorrentes da doença.

A morte do jornalista foi lamentada por profissionais e entidades da área de comunicação, além de líderes políticos e personalidades do universo econômico.

Admirado por colegas de profissão e por fontes, ele era reconhecido como um dos melhores de sua geração. Estava afastado das Redações desde maio de 2003.

O prefácio de Persio foi redigido para uma coletânea de 90 artigos editada pela Publifolha em 2007, "Os Desafios do Crescimento: dos Militares a Lula". A obra reuniu uma amostra representativa do trabalho de Celso, que foi colunista da Folha de 1996 a 2000 e membro do Conselho Editorial do jornal até 2019.

No texto, o economista ressalta ainda qualidades do jornalista, descrito por ele como um repórter que gozava da confiança de todos, "respeitado e admirado por seus pares; tinha gabarito para acompanhar qualquer discussão econômica, mesmo que crivada em tecnicalidades; sua escrita era clara e fidedigna".

Segundo Persio, o convite para que Celso se somasse aos formuladores do Real foi unanimidade na equipe. Ele escreveu que a neutralidade alegada pelo jornalista ao negar o chamado "sempre lhe rendeu acesso aos responsáveis pela política econômica, assim como aos executivos do mundo financeiro e industrial".

Leia abaixo o texto de Persio Arida para o prefácio do livro, uma coletânea que "ilustra bem a excelência de seu jornalismo", nas palavras do economista.

Um jornalista independente

Liguei para a casa do Celso Pinto em Londres, no começo de 1994 para convidá-lo a integrar a equipe econômica responsável pelo Plano Real. O telefonema foi feito em nome da equipe econômica e com a expressa aprovação do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. A ideia era ter alguém que pudesse testemunhar e registrar por escrito, dia a dia, reunião a reunião, a formulação e execução do plano de estabilização.

Ele não seria a interface com seus pares, nem teria que explicar o plano para ninguém; sua função não teria nada a ver com a de um assessor de imprensa. Seu papel seria outro, singular. Teria acesso irrestrito a todas as discussões e documentos para registrar e os prós e contras das várias alternativas, os riscos, o porquê de certas ideias vingarem enquanto outras foram postas de lado.

Mais à frente, escreveria um livro mostrando a política econômica por dentro, um relato tanto do que aconteceu quanto do que poderia ter acontecido. Um relato tanto das limitações impostas pelas circunstâncias vigentes quanto do horizonte de possibilidades que então se abria.
 
O convite ao Celso Pinto tinha sido uma unanimidade. Era o melhor jornalista econômico da nossa geração, respeitado e admirado por seus pares; tinha gabarito para acompanhar qualquer discussão econômica, mesmo que crivada em tecnicalidades; sua escrita era clara e fidedigna; ele tinha a confiança de todos.
 
Celso não aceitou a proposta. A razão, explicou-me, não tinha a ver com logística, por estar morando em Londres, longe do Brasil há alguns anos, nem tampouco porque desconsiderasse a oportunidade que julgava fascinante, mas porque o envolvimento com o governo, com qualquer governo, afetaria a neutralidade que um jornalista deve ter.

Disse que nos desejava boa sorte, que o Plano, se bem-sucedido, seria de extraordinária importância para o país, mas preferia preservar sua independência e ser percebido como um jornalista desvinculado de qualquer projeto político, por melhor que ele fosse. Só assim, longe de qualquer pecha partisan, poderia assegurar que suas matérias tivessem credibilidade.

Independentemente dos méritos ou deméritos da proposta, a neutralidade a que Celso Pinto se referia sempre lhe rendeu acesso aos responsáveis pela política econômica, assim como aos executivos do mundo financeiro e industrial. Não havia quem se recusasse a falar com ele, por diversas que fossem extrações e as visões de mundo. Celso tinha, ademais, o charme das pessoas inteligentes; a conversa era agradável, o entrevistado tinha certeza de que tudo o que dissesse seria reproduzido fielmente e que o off seria sagradamente respeitado.

Celso Pinto cultivava um estilo próprio. Nas suas matérias não se lê a reconstituição do ambiente em que as entrevistas foram feitas. Não há nenhuma observação sobre a psicologia ou a figura do entrevistado, nem sobre a dinâmica da entrevista, se o entrevistado vacilava diante de uma pergunta inesperada ou se respondia de imediato, se a entrevista foi curta ou longa. Nada mais longe dele do que o Novo Jornalismo.

Ele tampouco fazia entrevistas pingue-pongue, perguntas e respostas. Em vez de entrevistar, conversava. Só escrevia quando se assenhoreava do assunto. E sua forma de escrever era característica —frases curtas e articuladas, raciocínio passo a passo, explicação cristalina. O objetivo era transmitir ao leitor o raciocínio das suas fontes, as premissas e informações que utilizavam, para que o leitor pudesse entender o propósito (ou o despropósito) das políticas que viviam a afetá-lo na sua vida cotidiana.

A leitura dos artigos aqui reunidos, uma pequena fração do que ele leu e escreveu, ilustra bem a excelência de seu jornalismo. Neles se revela a obsessão apaixonada com que Celso Pinto seguia os desdobramentos da macroeconomia e os grandes temas do debate nacional. O que o leitor aqui não pode perceber é o impacto de suas matérias.

Na sua trajetória pela Folha de S. Paulo, Gazeta Mercantil e Valor Econômico ele volta e meia escrevia na primeira página do jornal. Fazia sua própria pauta e seu artigo tinha o peso de uma notícia. Nada do que ele escrevia passava despercebido. Seu censo de disciplina, no entanto, fez com que nunca cruzasse a linha divisória entre o jornalista e o especialista e passasse a emitir opiniões como se macroeconomista fosse.

Seu entendimento das questões transparecia de forma apenas oblíqua, na ênfase em determinados assuntos e não em outros, na escolha de quem entrevistava, no tecido das matérias, mas jamais como um comentário idiossincrático. Celso Pinto não se situava na primeira pessoa —em nenhum dos artigos ele aparece como personagem ou cai na tentação de dar um cunho pessoas às matérias que escreve.

Sua carreira como jornalista solo teve uma inflexão decisiva quando foi convidado, pela Folha e pelo Globo, para ser o editor-chefe de um novo jornal, o Valor Econômico. O convite era o reconhecimento de sua competência no jornalismo econômico e, ao mesmo tempo, um extraordinário desafio.

Os acionistas deram-lhe carta branca para escolher o time de colaboradores, definir as linhas mestras de condução do jornal e tocar o dia a dia. Se, de um lado, a carta branca demonstrava confiança, de outro aumentava a responsabilidade. Poderia continuar escrevendo seus artigos, como de fato o fez, mas agora lhe incumbia também o desenho estratégico e a execução de um plano de negócios do novo jornal.

Conversamos bastante nessa ocasião. Ele tinha uma visão do jornalismo impresso como um filtro de qualidade, tão mais necessário quanto mais informações pudessem ser obtidas pela internet. O jornal serviria para organizar o mundo de informações online, no qual a notícia boa convive com a notícia fantasiosa, mal apurada, enviesada, quando não errada por inteiro. O jornalismo impresso atenderia ao interesse público apenas sendo uma imprensa de qualidade e comprometida com a verdade criteriosamente apurada.

Hoje, o Valor Econômico se firma como o mais influente jornal de negócios do país. Celso Pinto, infelizmente, foi abrupta e prematuramente forçado a se afastar da vida profissional. Na última vez em que fui à sua casa ele falou meu nome baixinho e sorriu. Um de seus filhos estava lá. Era o Celso aos vinte e pouco anos. A mesma expressão, o mesmo sorriso, o mesmo modo de falar. Fui tomado por um mundo de memórias —Celso tocando jazz no piano, preparando churrasco, estudando sociologia, discutindo política e, surpreendentemente, jogando tênis. Eu sou um gordo ágil, ele dizia.

Que a leitura de seus artigos sirva de inspiração à nova geração de jornalistas e exemplo de uma carreira exemplar.

Persio Arida

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