É atribuído ao pai da unificação alemã, Otto von Bismarck (1815-1898), o alerta acerca de leis e salsichas: para apreciá-las, é melhor não saber como são feitas.
Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial deram um "upgrade" ao conceito, a julgar pelo vídeo da reunião entre eles no dia 22 de abril.
Pois se o objeto do acesso da Justiça à peça, o inquérito sobre a acusação do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) de que o presidente quis interferir na Polícia Federal, ganha densidade com as falas reveladas, o panorama que a gravação apresenta é único na história republicana.
O governo paranoico e em ritmo de guerra que se mostra na gravação crua vai desagradar apoiadores, detratores e os neoaliados arregimentados à base de cargos para evitar a progressão de um processo de impeachment na Câmara contra o presidente.
Claro, os palavrões abundantes, a linguagem chula e desencontrada de Bolsonaro e de alguns ministros podem agradar a parcelas mais fiéis do eleitorado do presidente. É coisa de macho, diriam, coerentes ao ideário da turma.
A mães e pais de família Brasil afora, talvez seja um pouco demais. Não é nada que qualquer repórter de política não tenha ouvido com alguma experiência de campo, mas, evocando Bismarck, ver a produção da salsicha pode ser desagradável.
Para começar por Moro, o vídeo confirma o que as transcrições anteriores insinuavam: sim, Bolsonaro queria interferir em órgãos de inteligência e citou a PF, "e ponto final". Haverá discussão acerca da referência à mexida no Rio, mas os atos posteriores à saída de Moro basicamente comprovam a intenção do presidente.
O mandatário máximo surge como uma figura acuada. Fala ora que está tudo bem, ora que o governo ruma a um iceberg. "Se for para cair, que não seja por babaquice", reclama, citando o caso de seus exames ditos negativos de Covid-19.
De forma preocupante, mantém o morde e assopra no sensível tema da intervenção militar. Diz que é contra, mas lembra com insistência do artigo 142 da Constituição, que permite a Poderes convocarem os fardados a retomar a ordem pública. Para Bolsonaro, "todo mundo quer o 142".
A isso se soma a lembrança de 1964, cujo golpe livrou o país "dessa cambada" que faria a todos "plantar cana". Até aí, zero novidade sobre a cabeça presidencial, mas muito a dizer sobre o eloquente silêncio do vice Hamilton Mourão a seu lado.
Mais grave, contudo, é a parte da conversa em que Bolsonaro faz basicamente a defesa da insurreição armada no país contra governadores e prefeitos que impõem a quarentena devido à Covid-19, uma obsessão do presidente.
"Quero que todo mundo se arme contra a ditadura", diz, seguindo a leitura do porte de armas enraizado na fundação dos EUA, seu país-modelo.
Para isso, ele reforça a derrubada das portarias do Exército para controle de armas e munições, objeto de apuração do Ministério Público Federal. Bolsonaro acaba de adicionar mais uma suspeita de crime de responsabilidade à sua coleção na pandemia.
Chama a atenção o silêncio dos ministros militares e de Moro. O monopólio da força, numa democracia, é dos fardados; fora disso é chavismo, para ficar numa comparação continental.
O trato aos governadores, ríspido e já conhecido, ganha cor com o vídeo. Ainda mais um dia depois de o presidente tratar a todos de forma cordata em reunião feita para gerar um ar de normalidade democrática no país.
O ex-superministro em atividade Paulo Guedes (Economia), por sua vez, colabora para a certeza de quão volátil será a lealdade do centrão, recém-cooptado com cargos para buscar um seguro contra o impeachment.
Num dado momento, ele diz: "Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisas, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles", diz.
De forma utilitarista, completa: "E quando eles cruzam a linha a gente solta a mão e sai andando sozinho. Enquanto eles tiverem no trilho, conosco, no caminho de fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e a gente continua sozinho".
À Folha, um líder de partido em negociação por vagas no governo sublinhou justamente esse ponto a comentar o vídeo. Nada que não soubesse, mas aí vale a citação aos embutidos e à legislação.
Guedes ainda sugere a venda do Banco do Brasil ("Essa p...") e protagoniza a sugestão de transformar o Rio de Janeiro em polo de cassinos, com direito a insinuação sobre exploração sexual, respondendo à ministra Damares Alves (Mulheres).
"Deixa cada um se f... do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se f..., pô!”, afirmou, garantindo que lá não entraria "nenhum brasileirinho desprotegido, entendeu?".
Para a ciência política, há muito a ser mastigado sobre o bolsonarismo na peça. O presidente se apresenta o tempo todo como um perseguido pela imprensa, sobrando impropérios aos "pulhas", como chama os jornalistas a quem seus ministros não deveriam atender.
Bolsonaro lembra que "querem a nossa hemorroida", e distribui palavrões aos desafetos João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), governadores contrários à política oficial de menosprezo à Covid-19, assim como ao prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB).
O motivo da teima em evitar a divulgação de todo o vídeo fica clara quando falam os ministros egressos do bolsonarismo-raiz. O sempre exuberante Abraham Weintraub se sobressai, com sua vontade de botar "esses vagabundos na cadeia, começando pelo STF".
É o "éthos" bolsonarista em estado puro. Weintraub se apresenta como o militante zero, que não se contamina pela política, que se queixa do "cancro de Brasília" e de ter de conversar "com quem a gente tinha de lutar".
Continua Weintraub com imprecações contra os termos "povos indígenas" e "povo cigano", também lembrado por Damares Alves (Mulheres, Cidadania e Direitos Humanos), que por sua vez sugeriu prender prefeitos e governadores por medidas restritivas contra a Covid-19.
Saindo da retórica e indo à prática vem outro ideológico, Ricardo Salles (Meio Ambiente), que também esbarra na improbidade administrativa ao sugerir que é preciso "aproveitar a Covid" para dar uma "baciada de simplificação" de regras em sua área. Ele diz ser possível "passar a boiada".
A doença que hoje colocou o Brasil no centro da pandemia só é tratada com seriedade pelo então recém-chegado Nelson Teich, defenestrado semana passada da Saúde. Ele ressalta que só é possível focar a economia após o coronavírus ser controlado. "É fundamental."
Ele o faz só para ser interrompido por Bolsonaro, se queixando de que o chefe da Polícia Rodoviária Federal havia lamentado a morte de um integrante da força por Covid-19, quando ele tinha várias comorbidades —palavra que o presidente não consegue falar de primeira.
Outro que assume a voz do mestre é Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, que, depois de chiar sobre a "ladroagem do PT, PMDB e PSDB" no órgão, reclama da ideia de deixar funcionários em casa para protegê-los do vírus.
Para ele, trata-se de "frescurada de home office".
A determinação de Celso de Mello ao liberar a peça, de apenas tarjar as claras referências ao temor de que a China esteja espionando os ministérios e críticas pontuais aos asiáticos, mostra algo que já se aferia em Brasília: o decano do Supremo não quer se aposentar sem um último grande ato.
Mais: a liberação veio no dia em que o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) achou por bem ameaçar as instituições com uma nota em que protestava contra um ato protocolar de Mello, enviar para a Procuradoria-Geral da República um pedido para a apreensão do celular de Bolsonaro.
A PGR iria descartar tal ideia mesmo que não fosse tão alinhada a Bolsonaro. Mas o recado de Heleno, emulando de forma menor a famosa advertência do então comandante do Exército ao Supremo em 2018, para que não concedesse habeas corpus a Luiz Inácio Lula da Silva, caiu muito mal na corte.
Não só nela. Na quarta (20), Heleno havia negado a hipótese de intervenção militar em uma "live" divulgada pela Folha, agradando a oficiais-generais da ativa. A imagem se desfez em dois dias.
O vídeo traz elementos novos, para todos os gostos, à crise política. Mas é como retrato de uma época que ganha o ar de documento histórico.
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