Sobrevivente, cracolândia desafiará Bruno Covas após vaivém em ações para usuários

Há 25 anos cenário de exclusão social, problemas sanitários e tráfico de drogas se mantêm na região central da cidade

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São Paulo

Reeleito neste domingo (29), o prefeito Bruno Covas (PSDB) terá a 1,7 km de seu gabinete, no edifício Matarazzo, um problema social, de saúde e de segurança pública que se arrasta há 25 anos na região da Luz.

Apesar de o ex-prefeito e atual governador João Doria (PSDB) ter chegado a afirmar em 2017 que a cracolândia não existia mais, após uma ação coordenada entre os governos do estado e municipal, o local onde se reúnem usuários de drogas a céu aberto continua sendo uma chaga bem no coração da cidade.

Após a estratégia de redução de danos adotada pelo programa Braços Abertos, na gestão do petista Fernando Haddad, o modelo foi abandonado por seu sucessor, e medidas como frentes de trabalho e hotéis sociais (estes, alvo de uma série de críticas), deixadas para trás.

Ilustração da série Nós de São Paulo - Cracolândia
Mais de três anos após o ex-prefeito e atual governador João Doria afirmar que a cracolândia havia acabado, o próximo prefeito deve encontrar uma região constantemente conflagrada - Carolina Daffara

Durante os dois anos em que permaneceu à frente da prefeitura, Doria implementou medidas mais restritivas para os dependentes de drogas, baniu o termo "redução de danos" e criou um novo projeto, o Redenção —independente também de outro programa na região a cargo do governo estadual, o Recomeço.

Na gestão do também tucano Bruno Covas, o número de usuários no local, segundo a prefeitura, vem caindo, mas reclamações de truculência na ação da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e os casos de confronto aberto entre os agentes de segurança e os frequentadores da cracolândia se acumulam.

Também houve a retirada de serviços públicos do local, como a unidade Emergencial de Atendimento (Atende 2), um centro de assistência social e de saúde, fechado no início deste ano, em meio à pandemia do novo coronavírus. Em substituição, a prefeitura abriu um Serviço Integrado de Acolhimento Terapêutico (Siat 2), no Glicério, a quase 2 km do território da cracolândia.

Antes do serviço no Glicério, outro Siat havia sido aberto na Armênia, o que foi entendido por ativistas e voluntários que trabalham no local como uma tentativa de esvaziar a cracolândia, levando o problema para um lugar menos visível.

A situação da cracolândia é um dos assuntos da série da Folha "Os nós de São Paulo", que apresenta uma radiografia de desafios em diversas áreas sob responsabilidade do prefeito eleito para comandar a capital paulista a partir de janeiro de 2021. Com discussões que devem ser tratadas na campanha eleitoral, as reportagens poderão ser consultadas em folha.com/nosdesaopaulo.

Imagem de drone da região proxima a estação Julio Prestes, conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo - Bruno Santos/ Folhapress

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Quais os principais desafios que o prefeito deve encontrar na cracolândia? Mais de três anos após o ex-prefeito e atual governador João Doria (PSDB) afirmar que a cracolândia havia acabado devido a uma ação coordenada entre a prefeitura e o estado, o próximo prefeito deve encontrar uma região constantemente conflagrada, em que os confrontos entre usuários de drogas e a Guarda Civil Metropolitana ou a Polícia Militar ocorrem com frequência.

À época, a ação de Doria resultou na dispersão de parte dos usuários, que se espalharam por bairros próximos ao centro e em outras cracolândias menores, como a que fica no túnel que dá acesso à avenida Paulista.

As situações de violência mais comuns na cracolândia ocorrem após ou durante as ações da PM para a prisão de traficantes ou durante as limpezas das ruas, feitas três vezes ao dia com caminhão-pipa, quando a GCM retira os usuários do meio da via e estes são obrigados a desmontar suas barracas.

Em maio de 2019, durante um confronto entre a GCM e dependentes de drogas, uma mulher foi morta com um tiro na cabeça. Usuária de drogas, ela frequentava o chamado "fluxo", local onde se aglomeram os frequentadores da cracolândia.

O psiquiatra e coordenador do programa Redenção, Arthur Guerra, reconhece o clima de tensão instalado no local, mas afirma que não há soluções fáceis para isso, uma vez que a presença do tráfico é grande.

A antropóloga Roberta Costa diz, porém, que muitas vezes o perfil do traficante na cracolândia é aquele que vende para poder usar parte da droga para consumo próprio. “O cara pode até botar banca, mas só de estar ali é claro que ele não está bem. Senão, estaria em outro lugar”, diz.

Roberta estudou a dinâmica da cracolândia em seu mestrado e faz parte do coletivo Craco Resiste, que atua na região, entre outros pontos, promovendo ações de resistência à violência policial. “A presença do Estado aqui se faz sentir dessa forma”, diz a antropóloga.

Além disso, o novo chefe da administração municipal irá encontrar no local uma menor presença de serviços municipais de saúde e de assistência social. Ativistas e voluntários afirmam que, no território da cracolândia, há o crescente interesse do mercado imobiliário para a retirada da cena de uso de drogas a céu aberto.

Novos empreendimentos, como um condomínio com cinco edifícios de moradia popular, já pronto, e o Hospital Pérola Byington, em construção, prometem mudar a cara da região. Os moradores do condomínio, construído pelo governo do estado, porém, reclamam que se tornaram reféns da situação social do entorno e sofrem também com os constantes casos de confronto entre usuários e GCM.

Como a atuação da prefeitura na cracolândia mudou nas últimas gestões? Na gestão Fernando Haddad (PT), foi criado o programa Braços Abertos. Focado no método de redução de danos, o modelo preconizava o resgate da autoestima e da capacidade de se manter dos usuários.

Para isso, foram criadas frentes de trabalho —em que os dependentes podiam trabalhar, por exemplo, na varrição de ruas e jardinagem, em troca de um valor pago por semana e se comprometiam a se tratar.

À época, o município firmou contrato com entidades sociais para administrar vagas em hotéis e pensões na região e tirar os usuários da situação de rua. Essa medida foi alvo de uma série de críticas: os locais foram apontados como pontos de uso e venda de drogas, e sua manutenção nem sempre era a ideal.

Assim que assumiu a prefeitura, Doria implantou um programa, batizado de Redenção, completamente oposto ao do petista.

Sob sua gestão foram preconizadas as internações voluntárias e forçadas em leitos próprios e contratados, o que acabou não prosperando após uma série de protestos de representantes da sociedade civil.

Além disso, houve a defesa de recolocação dos usuários com maior autonomia no mercado de trabalho, por meio de um programa que acabou criando menos de um quarto dos 20 mil postos de trabalho prometidos.

Na gestão de seu sucessor, o também tucano Bruno Covas, apesar de o programa ter sido mantido, ações de redução de danos votaram a ser adotadas, mas não exclusivamente. Atualmente, o usuário pode ser internado caso não se sinta capaz de fazer parte de outro programa terapêutico.

“Hoje, trabalhamos com um modelo em que cada paciente é um. Para alguns a redução de danos vai funcionar, mas há outros que pedem para ser internados, que dizem que precisam parar de usar qualquer droga para conseguir parar com o crack”, diz Arthur Guerra.

O psiquiatra diz que duas unidades dos hotéis sociais também foram mantidas fora do território da cracolândia por terem dado certo.

Para Roberta, a situação do local precisa ser abordada como problema social e de saúde.

“Antes de tudo, o estado e a prefeitura têm que entender o que é a cracolândia. Antes mesmo de o crack chegar ela já estava ali. As pessoas que iam para lá eram aquelas que não podiam acessar outros circuitos e outros lugares da cidade, que eram excluídos. Eram, e são, os ex-presidiários. O cara que sai da cadeia e não tem pra onde ir, não tem casa para voltar”, diz a antropóloga.

Como a pandemia da Covid-19 afetou a população da cracolândia? Uma das principais preocupações no local é que quase tudo se troca ou se compartilha. Cachimbos, cigarros, bebidas e barraca. No meio do chamado "fluxo", local onde se aglomeram os usuários de drogas, atualmente na alameda Cleveland, a vida é comunitária.

A prefeitura afirma que 1.322 novas vagas de acolhimento foram criadas durante a pandemia, sendo 672 em oito equipamentos emergenciais em centros esportivos, 400 vagas em quatro Centros Educacionais Unificados (CEUs) utilizados durante a Operação Baixas Temperaturas e 250 em cinco hotéis (quatro no centro e um na região norte) para hospedagem de idosos em situação de rua já acolhidos na rede socioassistencial.

Além destas, 4.902 vagas foram convertidas de 16 para 24 horas nos Centros de Acolhimento já existentes.

Segundo voluntários e moradores da região, no entanto, por ali não há quarentena ou ações visíveis do poder público contra a disseminação do novo coronavírus. O acesso a água potável para beber ou lavar as mãos costuma ser um problema.

Quantas pessoas tem atualmente o "fluxo", local onde se aglomeram os usuários de drogas na cracolândia? Em agosto deste ano, último dado disponível, de acordo com a Prefeitura de São Paulo, 421 pessoas se reuniam diariamente no fluxo, atualmente situado na alameda Cleveland. Esse número é obtido mensalmente a partir de relatórios diários da Secretaria Municipal de Segurança Urbana, e são elaborados com a análise metodológica de fotos aéreas que são capturadas do local.

Para a antropóloga, esse número é muito maior. “Todo mundo sabe que o fluxo cresce durante a noite, depois que as pessoas saem do trabalho. Muitos vão para lá, passam a madrugada e pegam o último ônibus para ir embora”, afirma.

Segundo ela, esse movimento chega a quase dobrar nos primeiros dias úteis do mês, próximo ao pagamento de salários.

A quantidade de usuários de drogas no fluxo vem diminuindo? De acordo com a prefeitura, sim. A partir do mesmo método de aferição, foi identificado que as médias mensais eram 1.854 pessoas em agosto de 2018 e 469 em agosto de 2019.

Estudo da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), da Unifesp, no entanto, aponta que em 2019 mais de 1.800 pessoas passavam por dia no local.

Quais os principais problemas de saúde dessa população? Os usuários de drogas que se reúnem na cracolândia formam uma população de alta vulnerabilidade.

O consumo excessivo de drogas combinado à situação de rua resulta em problemas de saúde como a tuberculose, além de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), como a infecção pelo HIV, lesões físicas e comorbidades em geral que afetam a população em situação de rua.

Quais os serviços de saúde que a prefeitura oferece no local? Dentro do Programa Redenção, que trata especificamente dos usuários abusivos de álcool e outras drogas em situação de vulnerabilidade ou risco social, há o programa Redenção na Rua —que atua como o Consultório de Rua, triando e encaminhando para outros serviços os usuários com problemas mais urgentes— e o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) 4, na praça Princesa Isabel.

No Redenção na Rua são 25 equipes para atenção, assistência e saúde à população em situação de extrema vulnerabilidade.

As equipes de saúde criam redes e vínculos com os usuários, com o objetivo de garantir o cuidado integral através da inserção na rede de saúde, assistência social e intersetorial destas pessoas em fase adulta, idosa, bem como crianças e adolescentes, acompanhando-os de maneira integral.

A unidade do Atende 2, no entanto, que funcionava no local, foi fechada pela prefeitura. Após ordem judicial, ela teve que ser reaberta, mas apenas com o mínimo de serviços, banheiros químicos e uma pia para que os usuários possam se lavar.

“É muito penoso para a prefeitura fechar qualquer equipamento. Não foi uma decisão fácil, mas ela foi tomada porque a prefeitura já não tinha o menor controle sobre o local”, diz Guerra, referindo-se à presença de traficantes.

O psiquiatra defende a mudança de local e afirma que o ideal é retirar os usuários de um local com tão fácil acesso à droga e a presença do tráfico. “Há 30 anos a ideia é essa”, afirma.

Quais as opções de ressocialização e geração de renda são oferecidas aos usuários de drogas na cracolândia? Em 2017, ainda na gestão Doria, foi criado o programa Trabalho Novo que previa a alocação de usuários de drogas em recuperação e com maior autonomia em empresas cadastradas pela prefeitura.

O objetivo, anunciado pelo então prefeito de São Paulo, eram 20 mil pessoas empregadas no primeiro ano, estimativa da população de rua em 2017. Em abril daquele ano, sua gestão chegou a anunciar 9.090 vagas asseguradas. No início de 2019, no entanto, o termo de parceria entre a prefeitura, Rede Cidadã e Banco do Brasil foi finalizado com 2.600 contratos firmados e 5.300 pessoas capacitadas.

Para dar sequência ao projeto, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social publicou um edital de chamamento público, com uma proposta de capacitação, para atender 360 beneficiários por mês. Atualmente, três propostas estão em análise pelo Programa Nacional de Promoção ao Acesso ao Mundo do Trabalho –Acessuas Trabalho.

O Acessuas é uma iniciativa da Política Nacional de Assistência Social para promover o acesso dos usuários da assistência social a oportunidades no mundo do trabalho. Na cidade de São Paulo, o programa visa a desenvolver ações voltadas para garantir direitos das pessoas em situação de rua a partir do acesso a serviços e da inclusão no mundo do trabalho.

Além de prefeitura, estado, ativistas e voluntários, quem mais atua no local? Há também a presença das ações de igrejas na cracolândia. Além da Igreja Católica, denominações evangélicas e neopentecostais como a Cristolândia atuam no local. O trabalho dos religiosos costuma ser respeitado por usuários e traficantes.

Apesar disso, em setembro contribuiu para o clima tenso no local um vídeo gravado pelo deputado e candidato a prefeito Arthur do Val (Patriotas), em que aparece acusando padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, de ser o responsável pela manutenção da situação no local.

Após o vídeo ser publicado nas redes sociais, o religioso sofreu ameaças na rua e registrou um boletim de ocorrência. Os outros candidatos manifestaram apoio ao padre. O Ministério Público Eleitoral pediu que a Polícia Federal investigue o vídeo.

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