Entenda como interferências de Bolsonaro enfraquecem o combate à corrupção no país

Para especialistas, nomeação de procurador-geral fora de lista e uso do Estado em defesa de familiares afetam democracia

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Mogi das Cruzes (SP) e São Paulo

Para chegar ao Palácio do Planalto, o deputado federal Jair Bolsonaro se vendeu como novo e usou como bandeira o discurso anticorrupção. No cargo, porém, o presidente age no sentido contrário para defender familiares e aliados, tentando interferir na autonomia de instituições e fazendo uma aliança com um grupo de políticos que antes condenava.

Foi ainda no primeiro ano de mandato que tomou a decisão que mais impactou a agenda anticorrupção no país, na avaliação da maioria dos especialistas ouvidos pela Folha.

Para eles, apesar de legal, a indicação de Augusto Aras para o comando da Procuradoria-Geral da República, ignorando a lista tríplice dos procuradores, feriu a independência que o cargo demanda.

Crítico à atuação da Lava Jato, Aras travou diversas quedas de braço com os procuradores de Curitiba, até que, em fevereiro, após um ciclo de desgaste perante à opinião pública e os indícios de parcialidade, a força-tarefa da capital paranaense foi dissolvida sem gerar comoção, como ocorreria em outros tempos.

Escolhido para comandar o Ministério da Justiça, Sergio Moro, um símbolo da operação como juiz federal, deixou o governo acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal.

No vídeo de reunião ministerial de abril de 2020, citada como prova pelo ex-juiz, o presidente fala em “interferir na PF” e diz que não iria esperar "f." alguém de sua família ou amigo dele para poder tomar providências.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança da ponta de linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse.

Em recente entrevista à Folha, o ministro do STF Edson Fachin afirmou que “há um grave problema da naturalização da corrupção de agentes administrativos e portanto isso mostra que a corrupção da democracia está no presente momento associada às forças invisíveis da grande corrupção”.

Entenda como isso afeta a democracia:

Há uma naturalização da corrupção no país atualmente? Antes mesmo da dissolução da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Bolsonaro afirmou que a operação havia acabado porque “não tem mais corrupção no governo”. Para especialistas da área, a declaração não tem fundamento.

“É uma demagogia, uma hipocrisia e algo que torna patente o estelionato eleitoral que ele representa”, afirma Catarina Rochamonte, presidente do Instituto Liberal do Nordeste e colunista da Folha.

"Na cabeça dele, a corrupção acabou. Mas a corrupção não só não acabou como ela não vai acabar nunca. Corrupção não acaba, em nenhum país no mundo, corrupção você controla, é a primeira coisa que você aprende quando estuda teoria da corrupção", acrescenta Rita Biason, cientista política e professora do campus de Franca da Unesp, que vê uma estagnação nessa agenda no governo Bolsonaro.

O diretor-executivo da ONG Transparência Internacional Brasil, Bruno Brandão, afirma que Bolsonaro fez uso do alto grau de voluntarismo anticorrupção presente no país para sequestrar esse discurso sem apresentar nenhum lastro.

“Quando o autoritarismo chega ao poder, a primeira que sofre é justamente a luta contra a corrupção, que depende de órgãos de controle, que por essência limitam e controlam o poder de ocasião e são os primeiros a serem desconstruídos. É justamente o que temos visto no Brasil.”

Para a professora Marjorie Marona, do departamento de ciência política da UFMG, há uma desconstrução da narrativa de que a corrupção é o principal problema do Brasil, feita por membros do sistema de Justiça, veículos de imprensa e representantes de uma elite política a partir da Lava Jato, que antes a criaram.

“Se tornou comum vermos na boca da própria elite política essa ideia de que determinado partido era corrupto, ou de que todo sistema político estava corroído pela corrupção. Nesse contexto político que a gente vive hoje, é menos interessante para uma determinada elite política continuar mobilizando isso tudo."

Quais as metas anticorrupção propostas, defendidas ou barradas por Bolsonaro? Ainda que não haja consenso entre especialistas sobre as medidas defendidas por Sergio Moro, desde o início do governo chamava atenção o fato de o presidente não apoiar as medidas priorizadas por ele, como ao ignorar as sugestões de veto ao sancionar o chamado pacote anticrime, principal bandeira de Moro.

O procurador de Justiça de São Paulo Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, destaca o fato de Bolsonaro não ter apoiado o projeto para punir a prática de caixa dois eleitoral e fazer isso no caso da proposta de mudança na lei de improbidade administrativa.

"É público que o Planalto aplaude e apoia essas mudanças. O presidente já deu várias entrevistas em que ele disse com todas as letras, é necessário mudar a lei de improbidade, porque do jeito que está não está bom."

A professora Rita, da Unesp, defende que o foco da agenda anticorrupção deveria ser em prevenção e controle e vê, na falta de diálogo com organizações da sociedade civil do governo, um dos principais retrocessos.

"Controle é aquele dispositivo que vai permitir acompanhar diariamente, em tempo real, o que está acontecendo dentro de determinado setor. Se isso fosse feito, nós não teríamos passado por questões como os desvios na Petrobras."

Ainda no primeiro mês de governo, o governo Bolsonaro assinou medida que poderia fragilizar a Lei de Acesso à Informação, ampliando o rol de membros da administração federal que poderiam classificar uma informação como sigilosa, mas recuou após pressão pública.

Bruno Brandão afirma que a Transparência Internacional Brasil tem feito denúncias sobre retrocessos em marcos legais.

Segundo ele, “é muito preocupante o risco de estarmos caminhando para um patamar ainda mais grave, de uma verdadeira guarda pretoriana, diz, que pode estar se formando em torno do presidente, seus familiares e aliados".

O risco, completa Brandão, é usar as estruturas de poder estatal não só para proteger aliados, mas para perseguir adversários políticos e intimidar vozes críticas na sociedade, como as ONGs, jornalistas e cada vez mais a academia.

Junto a outros episódios, a falta de transparência do governo atingiu proporções consideradas dramáticas durante a pandemia. O apagão de dados sobre a Covid-19 levou veículos de imprensa, entre eles a Folha, a formar um consórcio para divulgar os dados.

Neste mês, organizações da sociedade civil lançaram uma nota em que avaliam que 70% das informações sobre a vacinação que deveriam ser públicas e acessíveis à sociedade estão incompletas, indisponíveis ou inconsistentes.

O que revela a defesa intransigente de Bolsonaro a seus filhos, inclusive com mobilização de órgãos do governo para auxiliar nas estratégias de defesa de Flávio Bolsonaro? Como Bolsonaro atuou para enfraquecer investigações sobre aliados? A professora da USP, antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz afirma que o presidente evidencia patrimonialismo ao tentar blindar sua família para que as instituições não possam cumprir com seus propósitos.

"Patrimonalismo é o auge na velha política, não é a nova política. E o que é o patrimonialismo? É você usar as instituições públicas de forma privada. Mas qual é a novidade do governo Bolsonaro? Ele não disfarça. Ao não disfarçar, ele naturaliza."

Especialistas citam o inquérito em curso no STF que apura se houve ingerência de Bolsonaro na Polícia Federal, além da indicação de Aras para o comando da PGR, mudanças no Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) —responsável pelo relatório que deu início às investigações sobre prática de “rachadinha” por Flávio Bolsonaro— e tentativas de interferência na Receita Federal. Além disso, o governo mobilizou sua estrutura para ajudar a defesa de Flávio.

Para o pesquisador Bruno Paes Manso, os indícios das práticas de "rachadinha" pela família Bolsonaro contradizem o presidente.

"Você tem, ao mesmo tempo, um discurso que é bem a cara da família dele, que confunde o público com o privado. O dinheiro do gabinete é meu. Esse dinheiro já foi gasto. Ele não via isso como corrupção."

Qual o peso da nomeação de Augusto Aras como procurador-geral da República para o combate à corrupção? A indicação de Aras contrariou a tradição criada a partir do governo Lula, em 2003, e mantida ao longo das gestões petistas e por Michel Temer (MDB), de escolher o procurador-geral da República com base em lista tríplice definida por votação dos procuradores.

“O membro do Ministério Público deve ser uma pessoa independente para cumprir as missões seríssimas que nos são reservadas, que é a defesa da democracia, do Estado Democrático de Direito, dos direitos fundamentais intransponíveis”, diz o ex-procurador-geral Cláudio Fonteles, que exerceu o cargo no governo Lula e considera Aras omisso em relação às condutas do presidente.

Marjorie Marona, da UFMG, vê a mudança da forma de indicação como o principal movimento estratégico de Bolsonaro, que assim consegue um aliado de primeira grandeza.

“Importante não só porque é o procurador-geral que promove a denúncia do presidente da República e de diversas outras autoridades políticas, mas porque ele é chefe do Ministério Público, então tem condições de desarticular uma série de iniciativas que tinham sido montadas desde a base.”

Na avaliação de Samuel Vida, advogado e professor de direito da UFBA, mesmo ações de Aras que podem ser vistas como corretiva de abusos da Lava Jato não indicam o aperfeiçoamento institucional do combate à corrupção.

“Pode significar uma sinalização contrária, reforçada pelo vínculo de subordinação ao atual governo federal e suas práticas abusivas toleradas", diz.

Para Rita Biason, da Unesp, o principal problema da indicação foi a criação de um precedente. "Na medida em que ele não escolhe ninguém da lista tríplice, ele já abre brecha para que os futuros [preisdentes] também não o façam."

Bolsonaro minou a Lava Jato ao nomear Moro como ministro? Em que medida as revelações da chamada Vaza Jato impactaram o legado da operação? Especialistas afirmam que, ao aceitar o convite de Bolsonaro, o ex-juiz colocou em xeque a imagem de imparcialidade como magistrado e cometeu um erro. Rita, da Unesp, diz que a decisão marca o começo do declínio da Lava Jato em Curitiba.

“A Lava Jato se esgotou primeiro, por si própria, pela ação, pela longevidade dela. Ela teve um fim lânguido, esquecida quando decretaram que ela estava encerrada", diz.

O cientista político José Álvaro Moisés, que é coordenador do grupo de trabalho sobre a qualidade da democracia no Instituto de Estudos Avançados da USP, a Lava Jato não se restringe à força-tarefa de Curitiba, mas à mobilização de organismos de controle, como Ministério Público, que ganharam autonomia a partir da Constituição.

"Ao longo da tradição política brasileira, [a impunidade] dizia respeito fundamentalmente ao andar de cima do sistema político, a dirigentes e a governantes que, em um certo sentido, trabalhavam a hipótese de que podiam fazer qualquer coisa exatamente porque a impunidade garantia a sua continuidade no tempo", diz.

Fonteles e Samuel Vida concordam, afirmando que os diálogos vazados expuseram um cenário de ilegalidade.

"A Lava Jato tomou partido pela eleição de Bolsonaro e atuou como força coadjuvante determinante para a sua vitória em 2018. Sergio Moro foi o grande fiador, tendo inclusive sido devidamente recompensado com o ministério", diz Vida.

O procurador Roberto Livianu discorda e critica o uso das mensagens da chamada Vaza Jato. "É fácil que tenha havido qualquer espécie de edição ou adulteração neste conteúdo. Não há segurança jurídica nenhuma no conteúdo, ele não foi periciado."

Já Catarina Rochamonte concorda que há um movimento em curso contra a operação, que está sendo engolida por um “acordão da impunidade”. “O discurso da esquerda e dos bolsonaristas agora se encontraram contra Sergio Moro, Deltan Dallagnol e a Lava Jato de modo geral. É o que chamam de bolsopetismo.”

A aproximação entre Bolsonaro e o centrão enterra de vez a pauta do combate à corrupção no governo Bolsonaro ou mostra que o presidente teve que dar um passo atrás em seu discurso antipolítica? Para Bruno Brandão, da Transparência Internacional Brasil, a aliança do governo com o bloco de parlamentares é sintomática e coerente com o histórico da família Bolsonaro na política. “É uma família que jamais teve uma atuação na luta contra a corrupção e com indícios cada vez mais fortes e numerosos de que adotava práticas dessa forma corrupta de fazer política.”

Marjorie Marona, da UFMG, afirma que não vê o final de uma agenda anticorrupção, pois ela nunca existiu no governo Bolsonaro, ao contrário do que aconteceu em governos do PT, citando investimentos na Polícia Federal, o respeito à lista tríplice para nomeação da PG e mudanças na legislação.

“Negociar ou não com o centrão diz mais do fato de que o discurso antissistêmico encontrou um tipo de ruído e o Bolsonaro precisou dar um passo para trás”, diz.

Para José Álvaro Moisés, a negociação entre partidos faz parte do jogo democrático desde que haja transparência sobre qual é a política pública que vai ser adotada quando uma determinada negociação é feita e uma força que até então se mantinha autônoma ou independente resolve apoiar o governo.

A aliança Bolsonaro-centrão enterrou de vez o discurso do presidente, explorado à exaustão durante a campanha eleitoral, de que não se renderia ao que chamava de a velha política do “toma lá, dá cá”.

"Qualquer presidente que, porventura, distribua ministério, estatais, ou diretorias de banco para apoio dentro do Parlamento está infringindo o artigo 85, inciso II da Constituição”, disse Bolsonaro, por exemplo, no dia 27 de outubro de 2018, um dia antes do segundo turno das eleições.

O trecho citado pelo então candidato define como crime de responsabilidade atos do presidente da República que atentem contra a o livre exercício do Poder Legislativo.

“Se eu, por exemplo, apresento o ministério para um partido com objetivo de comprar voto, qualquer um pode então me questionar que estou interferindo no exercício do Poder Legislativo", disse à época.

Também em 2018, o hoje ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, chegou a cantarolar “se gritar pega centrão, não fica um meu irmão” em um encontro do PSL.

Agora, tudo isso mudou. Para atender o centrão e ajudar na eleição de Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara, o governo faz promessas de liberação de bilhões em emendas parlamentares e chegou a cogitar até a recriação de ministérios, contrariando outro discurso da campanha, o do enxugamento da máquina pública.

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