'Nós vamos resistir às Damares', diz Marta Suplicy sobre governo Bolsonaro e direitos das mulheres

Hoje na gestão Covas, ela fala que governo atual é retrocesso histórico e pede adesão de Lula a frente ampla

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São Paulo

Militante feminista desde antes de entrar na política, Marta Suplicy, 75, vê o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) como o revés mais violento para os direitos das mulheres na história recente do Brasil.

"Não importa o quanto resistam ao empoderamento feminino, as mulheres têm uma palavra: resiliência. Nós vamos resistir às Damares", diz ela à Folha, citando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

Hoje secretária de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo, a ex-prefeita, ex-ministra e ex-senadora falou, na primeira entrevista depois da reeleição de Bruno Covas (PSDB), sobre seu apoio ao tucano e sua obsessiva ideia de formar uma frente ampla contra Bolsonaro.

Marta Suplicy, secretária de Relações Internacionais, em seu apartamento - Eduardo Knapp/Folhapress

Ela defende que o ex-presidente Lula (PT), de quem foi colega de partido, deixe de lado o isolamento político e se una a outros nomes do campo democrático para derrotar o bolsonarismo em 2022.

Marta, que deixou o PT em 2015, após 33 anos, flertou com outros postulantes a prefeito da capital no ano passado, mas acabou fechando apoio a Covas, por considerá-lo "o candidato que melhor incorporou a frente ampla". Depois de passar por MDB e Solidariedade, ela hoje está sem partido.

Feminismo e retrocessos

Feminismo é meu tema de vida. A nossa luta por direitos iguais é marcada por constantes “backlash”, cuja tradução é rebote. Quando nós conseguimos alguma coisa, com muita luta, em seguida vem um "backlash", termo usado pela [jornalista americana] Susan Faludi.

Mulher na política

É nas esferas de poder político que o sexismo apresenta os piores índices de mudança. As mulheres não conseguem entrar nos centros decisórios. E, quando entram na política, passam por situações de escracho e ridicularização. O poder do país passa pela mão da política, e a mão da política é o patriarcado.

Tivemos uma presidente [Dilma Rousseff] e foi muito bom que tenhamos tido, mesmo que não tenha caminhado tão bem. Em todas essas transformações, a mulher negra não foi atingida. Isso precisa mudar. Se você não tem diversidade no movimento, o movimento não existe. É pó, ele morre.

Feminicídio e assédio

Atualmente, há duas grandes questões para a mulher. O “backlash” do feminicídio, em que houve a conquista da lei [que tipificou o crime], mas um aumento da violência contra a mulher. Estou em pânico, porque acho que, com esse aumento das armas, vai ser um desastre.

A outra coisa é o assédio sexual. Temos como exemplo o caso da Isa [Penna, deputada estadual do PSOL]. Quando você pensa que não vão cassar uma pessoa que se porta com esse desrespeito?

Com o #MeToo [#EuTambém, no Brasil] a coisa tomou outra dimensão, porque ampliou no mundo inteiro a indignação com a situação que as mulheres são expostas.

Damares e o patriarcado

Não importa o quanto resistam ao empoderamento feminino, as mulheres têm uma palavra: resiliência. Nós vamos resistir às Damares. Se você perguntar qual foi o "backlash" mais violento que já presenciei é o que esse governo está fazendo. Um governo guiado pelo retrocesso civilizatório.

Essa senhora que ocupa o ministério foca exatamente no que o patriarcado gostaria, que a gente voltasse para casa e aceitasse o comando masculino. Não adianta, ela pode querer quanto ela quiser, não iremos fazer isso, e Bolsonaro passará.

Eleição de mulheres

Vamos ter que repensar as cotas. Porque mesmo com recurso, agora, nós não conseguimos. Enquanto a gente não chegar às funções de decisão de poder nos partidos, de ser candidato prioritário, nós não vamos a canto algum.

A ex-senadora, ex-ministra e ex-prefeita Marta Suplicy, com máscara para proteção na pandemia - Eduardo Knapp/Folhapress

Diversidade e feminismo em plena crise

O principal nesse momento é as pessoas não morram de fome. E a carga maior da pandemia é sobre as mulheres. Temos um presidente incompetente, psicopata e genocida. Não diria nem que ele é machista, porque teria que ter uma palavra mais violenta para designá-lo.

O mais importante é a luta pela manutenção da democracia. Por isso que prego tanto a questão da frente amplíssima para o 1º e o 2º turno das eleições.

Composição da frente ampla

Deverá ir de Boulos [PSOL] a ACM Neto [DEM], passando por Haddad [PT], Lula [PT], Ciro [PDT], Huck [sem partido], Doria [PSDB]. Não é o momento agora de definir nomes. Essa definição vai ocorrer naturalmente.

Essa frente vai falar da possibilidade de conseguir um acordo para a governança. A tendência é de um perfil de centro, com sensibilidade, habilidade política, capacidade de articulação, uma pessoa agregadora. Um Tancredo [Neves], que pacifique. Como [Joe] Biden.

A reconstrução do Brasil é uma tarefa para muitos. Não é só para um homem. Isso que os candidatos que se colocam têm que entender. Olha, isso parece um sonho de verão? Tanta coisa parece um sonho de verão e a gente acredita.

Todos têm direito de se colocar e são bem-vindos ao debate. Defendo uma frente ampla com três pilares: diminuição da desigualdade social, defesa intransigente da democracia e respeito à diversidade cultural, que é o grande patrimônio brasileiro.

Meu foco agora é apoiar a democracia. É a união de todos por um movimento maior, algo que agregue. Têm que vir todos para decidir o que vamos fazer para tirar o Brasil desse buraco onde esse genocida nos enfiou.

É chegar a uma pauta razoável e, dessa pauta, vai ficar uma pessoa [candidata] e todos vão entender que aquela pessoa é a que simboliza a união, a pacificação e a possibilidade de governança. A saída da pandemia só vai ser possível com um governo de união.

Centrão na frente ampla

Acredito que devamos atrair o centrão para o campo democrático. E acredito que os presidentes da Câmara e do Senado não vão ficar com Bolsonaro até 2022, pela própria questão da sua sobrevivência política.

A economia vai desandar. O centrão não ajuda a carregar caixão. Bolsonaro não vai ganhar a eleição, mas a gente não pode bobear, porque ele tem muito poder. Vai ter uma conta para Bolsonaro no final. Ninguém mata tanta gente impunemente.

Lula

Fiquei muito decepcionada na hora que ele saiu da prisão. Imaginei que ele fosse sair com a bandeira brasileira, com um discurso de pacificação. Ele veio com um discurso muito sectário. Mas tenho uma admiração enorme pelo Lula.

O Lula acabou se isolando. E a eleição municipal de 2020 foi um testemunho desse isolamento, porque acabou de uma forma muito ruim para o PT. Espero que ele dê sinais dessa frente ampla. Vejo pipocando dentro do PT que tem gente que apoia [a frente]. Se o PT desse esse passo, seria extraordinário.

O Lula foi injustiçado. A Lava Jato agiu com parcialidade. O [Sergio] Moro deverá ser julgado. A maioria das pessoas está percebendo isso e ficando indignada. Acho que ele vai ter resgatada a sua liberdade.

Impeachment de Bolsonaro

Eu li o jornal hoje [sexta-feira, 5], me deu tanta raiva que peguei a caneta e escrevi. “Existe uma relação que está sendo trabalhada por Bolsonaro entre a crise sanitária e a democracia, e tudo indica que a estratégia fria, mortífera, é criar o desespero, o caos econômico, para poder impor um estado de emergência.” É isso. Como as pessoas não veem?

“Neste momento, a nossa indignação é tão grande que pede para esse genocida ser retirado do poder". Essa é a raiva que me deu, mas sou uma pessoa racional, então continuei. “Entretanto, a especificidade da situação que vivemos, com a correlação de forças, dificultará enormemente e aprofundará a crise. As manifestações de rua, que poderiam acelerar a perda desse apoio popular, sofrem um receio do vírus e das armas agora abundantes.”

Ele tem uma estratégia. Em vez de ficarmos defendendo uma bandeira que acho que dificilmente vai ser viabilizada, a gente tem que começar a se dedicar à construção de uma frente ampla. Impeachment é enxugar gelo.

Futuro na política

Não vou entrar em partido e não sou candidata a nada. Temos que entender que nosso adversário é a ameaça do autoritarismo, é o risco institucional, é o desequilíbrio de um facínora cruel, que tira a vida de milhares de pessoas e diz que é mimimi. O panorama é democracia e racionalidade versus caos e loucura brava.

Se as pessoas não entenderem a dimensão do que estamos vivendo e ficarem pensando na sua própria candidatura, no fortalecimento do seu partido, nós corremos risco. A polarização não é mais entre PT e PSDB, que são partidos democráticos. A polarização é contra o autoritarismo.

Apoio a Bruno Covas

Sinto, como política, a responsabilidade de construir unidade democrática. É isso que me move. E apoiei o Bruno [Covas] porque percebi que tinha condição de mostrar, com a minha adesão, a construção para 2022. Estou contente de ter dado esse passo.

Não dei a mínima [para o apoio de Celso Russomanno, candidato de Bolsonaro, a Covas no segundo turno]. Não significava nada. A minha entrada era muito mais forte.

Eu conhecia pouco o Bruno. Foi uma gratíssima surpresa. Ele tem sensibilidade social, é um político habilidoso e agregador. E tem escuta. Quando ele me convidou para ser secretária, não tinha nada negociado previamente.

Secretaria de Relações Internacionais

Quero ajudar o Bruno a deixar um legado. O Itamaraty está de braços cruzados. O Bruno hoje tem um papel de colocar São Paulo em uma centralidade mundial na preservação do meio ambiente e da agenda climática. Falo com o BID, com o Banco Mundial, por exemplo para obras de saneamento básico. Estou animadíssima.

Diálogo com secretarias

[Não estou agora no papel de prefeita], mas eu sempre sou a Marta Suplicy. Isso significa que eles dão todo o apoio [risos]. O tratamento que o Bruno me dá é muito delicado e gentil, de tapete vermelho para trabalhar. E todos percebem. Então, é uma conversa muito igualitária. Preciso que eles me indicam o que eles precisam, e vou ajudar, buscando recursos.

Mulheres no secretariado

É muito difícil [ter mais mulheres]. Eu já fui prefeita e tentei fazer 50%, mas é muito complicado. Na prefeitura tem um ônus a mais: é o salário [baixo]. É uma coisa dura. O Bruno tem essa percepção e realmente tentou.

Agenda da diversidade

O mais importante que o prefeito falou [para a minha atuação na secretaria] foi o saneamento básico. Depois, da minha cabeça, sugeri que São Paulo seja o farol do combate ao racismo estrutural, e o Bruno gostou muito.

Vamos fazer um webinário com as professoras da rede municipal sobre feminismo e racismo estrutural. Para deixar legado, temos que agir por quatro anos e com o professorado. O professor tem que introjetar esses valores.

Ida para MDB e apoio a impeachment de Dilma

Eu tinha trabalhado pelo "volta, Lula" [em 2014] porque achava que era a possibilidade de a gente dar um salto do que a Dilma estava fazendo, que considerei completamente inadequado, sem a capacidade de agregar o Congresso. Não dava para continuar. Eu já percebia que não ia dar certo.

Depois, tudo o que aconteceu... Faz parte, né? Eu era senadora pelo maior estado, tinha que ir para um partido [MDB] que me desse a possibilidade de fazer a intervenção, atuar em prol do Brasil. A convicção que tenho é que os partidos estão superados.

Quando saí da política, foi porque não queria mais enfrentar aquelas coisas absurdas, xingamentos no plenário, sem agregar ideias. A polarização estava em um nível altíssimo e depois se acentuou. Acho que estou fazendo muito mais fora.


Raio-X

Marta Suplicy, 75
É secretária de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo, após apoiar a reeleição de Bruno Covas (PSDB) em 2020. Foi deputada federal, ministra do Turismo no governo Lula (PT) e da Cultura no governo Dilma Rousseff (PT), prefeita de São Paulo e senadora. Filiada ao PT desde 1981, foi para o MDB em 2015 e apoiou o impeachment de Dilma. Em 2018, anunciou a desfiliação e o fim da carreira política. Em 2020, se filiou ao Solidariedade, mas logo deixou o partido para apoiar Covas na eleição


Marcos do feminismo e sua participação, segundo Marta

1932 Mulheres obtêm direito ao voto, mas somente as casadas e donas de patrimônio
Reação Dizia-se que isso iria destruir os lares e os casamentos

1962 Acaba a tutela dos maridos sobre as esposas, que podem trabalhar ou viajar sem autorização

1972 Rose Marie Muraro convida Betty Friedan, ícone do feminismo americano, a dar entrevista ao jornal O Pasquim
Reação Foi um desastre, deram um carimbo ao movimento feminista: lésbicas, "sapatões" e feias

Anos 1970 Grupo pequeno de mulheres intelectuais, o FNM (Fenemê), discute feminismo. Com Marta, Ruth Cardoso, Eva Blay e outras. Marta busca a revista Claudia para pedir que mulheres não sejam retratadas como perfeitas, mas que se fale da mulher de verdade, exausta de tarefas

1980 Marta fala de direitos da mulher e sexualidade no programa TV Mulher, na TV Globo, quebrando tabus sobre prazer e orgasmo. Por meio de cartas de telespectadoras, percebe o Brasil profundo do machismo
Reação Quando encontrou Roberto Marinho, ele perguntou à sexóloga: “A senhora é a que destrói os lares?”

1988 Organizadas e fortalecidas, mulheres conseguem direitos plenos na Constituição
Reação Não se conseguia mais espaço para falar e escrever sobre feminismo. Havia o questionamento: “Vocês já conseguiram tudo, o que querem mais?”

1995 Na 4ª Conferência Internacional da Mulher, em Pequim, Marta ouve falar de cotas na política e resolve propor um projeto de lei como deputada. Foi aprovado na Câmara, mas Senado tirou a obrigatoriedade
Reação Homens afirmam que mulheres querem seus lugares, e mulheres dizem que competentes não precisam de cotas

Era da internet Negras, lésbicas e transexuais começam a se manifestar no feminismo. Há turbulência, porque movimento estava em jaula heterossexual e branca, mas novidade trouxe oxigenação e mostrou a importância da sororidade

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