'Punição exemplar de deputado assediador é uma questão civilizatória', dizem articuladoras de campanha

Escritora Beatriz Bracher e gestora cultural Mari Stockler defendem cassação de Fernando Cury e avaliam que caso de Isa Penna diz respeito a todas as mulheres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Em carta endereçada a deputados paulistas, a premiada escritora Beatriz Bracher, 59, expressou a indignação de muitas mulheres diante do rumo que tomou o caso de assédio registrado pelas câmeras do plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) em dezembro passado.

Foi quando o deputado Fernando Cury (Cidadania) importunou sexualmente a deputada Isa Penna (PSOL). Passar a mão no corpo alheio sem permissão é crime previsto em lei (13.718/18), com pena de um a cinco anos de prisão.

Mas o Conselho de Ética da Casa, composto por sete homens e duas mulheres, decidiu abrandar a punição a Cury inicialmente proposta, trocando um afastamento não remunerado de seis meses por uma suspensão de 119 dias. Foram 5 votos a 4.

“Foi muito chocante”, desabafa a escritora.

A escritora Beatriz Bracher (à esq.), fundadora da Editora 34, e a gestora cultural Mari Stockler articularam a campanha Por Uma Punição Exemplar do deputado Fernando Cury (Cidadania) que importunou sexualmente a colega Isa Penna (PSOL) em ação ocorrida no plenário da Alesp e registrada em vídeo
A escritora Beatriz Bracher (à esq.), fundadora da Editora 34, e a gestora cultural Mari Stockler articularam a campanha Por Uma Punição Exemplar do deputado Fernando Cury (Cidadania) que importunou sexualmente a colega Isa Penna (PSOL) em ação ocorrida no plenário da Alesp e registrada em vídeo - Eduardo Knapp/Folhapress

A reviravolta na sanção foi liderada pelo deputado e pastor Wellington Moura (Republicanos) numa sessão tumultuada que terminou com pedidos de desligamento do Conselho de dois parlamentares favoráveis à cassação de Cury.

Nas próximas semanas, quando a decisão do Conselho for a plenário, os deputados da Alesp terão a oportunidade de dizer que “não aceitam que homens apalpem e encoxem mulheres”, escreveu Bracher na carta.

A tramitação do caso coincide com campanha publicitária da Alesp no horário nobre na TV sobre valores da Casa.

Não se trata de um caso da deputada Isa Penna, mas de todas as mulheres do Brasil, principalmente das trabalhadoras que andam de transporte público”, avalia Bracher, que diz já ter sofrido esse mesmo tipo de importunação.

Quase todas as brasileiras (97%) com mais de 18 anos dizem já ter sofrido assédio em meios de transporte, segundo levantamento dos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão.

Bracher se aliou à gestora cultural Mari Stockler, 55, para formarem um grupo de ação, que inclui ainda a diretora Daniela Thomas, o advogado Rafael Poço, a designer Julia Mariani e a administradora Maísa Diniz, cofundadora do Vote Nelas, iniciativa pró-mulheres na política.

O resultado é a campanha Por Uma Punição Exemplar, cujo site (porumapunicaoexemplar.com) permite o envio de mensagens para pressionar os deputados da Alesp pela cassação de Cury.

Bracher é da família fundadora do Banco BBA, incorporado ao Itaú, e mantém rotina de dedicação à escrita. Ela conta que o ativismo político não estava nos seus planos. “Agora, por exemplo, parei de escrever porque essa coisa está me tomando muito", admite.

À iniciativa somaram-se outras organizações, como 342 Artes, Update, Elas no Poder, Girl Up, Vamos Juntas e o próprio Vote Nelas, que assumiu a organização das ações.

“Se os deputados acham que estão ali, encastelados, onde um crime foi filmado, e que isso vai passar batido, é importante eles saberem que não vai passar batido”, diz Stockler. “Eles precisam entender que não tem mãozinha boba. Isso não existe mais.”

Como surgiu a campanha Por Uma Punição Exemplar?
Beatriz Bracher - Quando eu assisti ao vídeo, no final do ano passado, me deu uma coisa de enjoo mesmo, sabe? A indignação veio antes do estômago do que na cabeça (risos). Eu já vivi isso. Parecia que aquilo era comigo. Mas o cara pegou 119 dias! Isso me tocou de um jeito... Porque eram os homens da Alesp dizendo: “Danem-se, vocês. A gente não se importa. Os caras fazem isso com vocês e tudo bem”. Foi muito chocante, e foi quando nos unimos.

Mari Stockler - O regimento da Casa está sendo usado para perpetuar esse tipo de comportamento com uma punição branda. “Punir o deputado de maneira exemplar ou dar uma punição branda é uma questão de civilização ou de barbárie.”

Os deputados que votaram pelo abrandamento da pena são ligados a igrejas e à segurança pública. Há conservadorismo?
BB Então, isso é louco. A pessoa é conservadora e defende alguém que encoxa uma mulher? Deveria ser ao contrário, né? Mas a gente está confiando muito que o novo presidente da Casa, Carlão Pignatari, que é do PSDB, vai tomar consciência de quão ruim vai ser pra Alesp defender uma pessoa assim ali dentro.

MS E importunação sexual é crime e ponto final. Cury foi protegido pelos colegas, mas essa é uma pauta civilizatória.

E se cassação ou punição menos branda não ocorrerem?
BB Essa iniciativa nossa está criando pontes com deputados, criando estratégias com juristas, porque a ideia é judicializar o caso. E trabalhar nas bases dos deputados, a té junto aos apoiadores de campanha deles. Pedimos que os deputados se manifestem a favor da cassação. Os que não se manifestarem, a gente vai atrás.

MS Eles são representantes do povo, numa casa do povo, pagos pelo povo. Eles precisam realmente entender que não tem mãozinha boba. Isso não existe mais. Não faz parte do mundo de hoje. O que as mulheres conquistaram não tem volta. A gente simplesmente não vai deixar que isso aconteça. Os homens vão ter de se comportar de maneira civilizada.

Já viveram algo parecido?
MS Várias vezes. Já acordei num ônibus de viagem com a mão de um cara entre as minhas pernas cruzadas. E eu não fiz um escândalo! Tirei a mão dele e me afastei. Essa importunação sexual foi naturalizada pela minha geração, por mais desagradável que fosse. Isso não cabe mais.

BB Na adolescência, eu pegava transporte público em horário de pico e esse assédio da encoxada era muito comum. E ainda é. Naquela época, a gente fazia cara feia e ia para outro lugar. E é tão bom hoje em dia essa mulher poder gritar “Para! Vai embora!”.

Se o Fernando Cury perder o mandato, mais meninas vão saber que elas podem gritar e denunciar. Se ele não perder o mandato, elas vão achar que tem mais é que ficar quietas.

A política ainda é um meio hostil para mulheres?
BB Completamente. E eu acho que cada vez que tiver mais mulher, vai ser mais hostil. Porque ameaça. O que aconteceu ali, a meu ver, é uma misoginia muito grande, uma raiva dessa mulher, que é Isa Penna. Ela leu aquele poema [“Sou puta, sou mulher”, de Helena Ferreira], e isso é muito agressivo pra esses deputados. Daí eles exercem o poder deles, que ainda é muito maior que o nosso.

Como se tornaram ativistas?
MS Eu só pensava em artes plásticas, em cinema. Era cidadã só na hora de votar. Desde o impeachment [de Dilma Rousseff] passei a me dedicar quase que exclusivamente a isso por achar que não fazia sentido para mim estar em outro lugar. Estamos vivendo um processo bastante delicado no Brasil. Temos uma democracia que está sob ameaça. E eu sou cidadã hoje como eu nunca fui antes.

BB Eu sou cria do Bolsonaro como ativista. Ele criou um monte de ativistas (risos). Depois que minha mãe morreu, em 2015, eu herdei um dinheiro bom e resolvi que precisava fazer algo. Como eu sou escritora, e ninguém pede pra escrever livro, se eu não me organizo, não escrevo. E nunca pensei em me tornar uma filantropa ou uma ativista, por causa disso: não tenho como ter duas coisas. Não consigo. Agora, por exemplo, parei de escrever porque essa coisa está me tomando muito.

Decidi apoiar três coisas: o saneamento, a Justiça e a democracia. Eu e amigas criamos o Instituto Água e Saneamento (IAS). Passei a apoiar organizações como a Conectas e a Redes da Maré. E criei com meu irmão, Carlos [Bracher, arquiteto] o Instituto Galo da Manhã, que também atuou na emergência da pandemia.

A escritora Beatriz Bracher e a galerista Mari Stockler, em entrevista remota à Folha
A escritora Beatriz Bracher (de preto) e a galerista Mari Stockler, em entrevista remota à Folha - Eduardo Knapp/Folhapress

Vocês são da elite brasileira, vista como majoritariamente fisiológica e predatória. Como o ativismo se encaixa nessa história?
MS Existem pessoas bacanas nas elites. Mas a aprovação do [ministro da economia Paulo]Guedes e do próprio Bolsonaro no empresariado é uma piada. A gente precisa entender que existe uma responsabilidade dessas pessoas de terem apoiado esse tipo de liderança.

BB A elite é como o resto do país. E o resto do país está apoiando o Bolsonaro... Eu acho que a maior parte da elite brasileira é muito egoísta, tacanha, e com uma visão muito prejudicial pra ela mesma. Mas se a elite é só vista como ruim, você perde a possibilidade de construir pontes. Eu não estou sozinha neste lugar. Há outras famílias e pessoas, como a Maria Alice Setubal, com as quais vale a pena fazer alianças.

Eu sou radicalmente de centro. E isso me torna uma pessoa não muito bem vista em lugar nenhum.
Não quero passar por uma pessoa legal de esquerda porque eu não sou isso. Essas pautas —feminismo, antirracismo ou mesmo a igualdade social e econômica— são civilizatórias. E a direita deixar essas pautas pra esquerda é uma idiotice. Sou muito radical no respeito ao ser humano.
Se a gente não resolver a questão da desigualdade social, a gente não vai a lugar nenhum.

O Brasil não tem tradição de filantropia. Por quê?
MS A ideia de cidadania é pouco elevada no Brasil.

BB Tem algo que talvez explique um pouco e que é muito duro. É uma coisa classista e racista. De alguma maneira, a elite, que é predominantemente branca —e, se não é, se sente como branca—, não vê as pessoas pardas, negras ou pobres como seres iguais a elas.

Você ajuda o seu irmão, mas aquela pessoa não é vista como irmão, no sentido cristão da palavra. Estou falando de algo profundo, de uma falta de identificação. Como se a vida fosse assim: pobre é pobre, rico é rico. Um classismo, que tem a ver com o racismo.

Como a pandemia mexeu com isso?
BB Não à toa, na pandemia teve muito auxílio. Porque, no medo de morrer, estávamos juntos. E essa coisa da cultura é importante, de ver que outros estão fazendo. É tem aquela coisa bem clichê: é muito maravilhoso você ajudar o outro. Dá uma sensação muito boa. Todo mundo que fez, sentiu isso.

As pessoas também começaram a enxergar a questão do público. O SUS é importantíssimo, o Ibama é muito importante, e as pessoas não sabiam. Então acho que isso vai mudar bastante: não só a filantropia, mas a relação com o que é público e que precisa ser bom para que todo mundo seja atendido.

Raio-X

Beatriz Bracher, 59
Escritora paulista, é autora de livros premiados como “Anatomia do Paraíso”, “Antônio” e “Meu Amor”, todos lançados pela Editora 34, da qual é cofundadora. Formada em letras e oriunda da família que fundou o banco BBA, é cofundadora dos institutos Água e Saneamento e Galo da Manhã

Mari Stockler, 55
Cenógrafa, fotógrafa, figurinista, diretora de arte e galerista, participou da criação do Instituto Sergio Rodrigues e foi diretora da Carpintaria, espaço carioca da galeria Fortes D’Aloia & Gabriel. É autora do livro de fotografia documental “Meninas do Brasil” (Cosac Naify)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.