Entenda a crise da Covid no Amazonas e os sinais de negligência do governo que serão investigados na CPI

Questionamentos à atuação da gestão Bolsonaro diante de falta de oxigênio e mortes impulsionam comissão no Senado

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Brasília

O dia 14 de janeiro de 2021 representou para moradores de Manaus o capítulo mais trágico da pandemia do novo coronavírus –e pode ter sido, também, o momento mais crítico e emblemático de toda a crise sanitária no Brasil até aqui.

Nas primeiras horas da madrugada daquele dia, o oxigênio se esgotou em hospitais da capital do Amazonas. Pacientes com Covid-19 morreram asfixiados.

A crise, porém, não começou no dia 14. Em dezembro, o Amazonas já vivia as consequências de uma segunda onda da pandemia, repetindo o fenômeno da primeira, que também se manifestou inicialmente naquele estado, para depois ser replicada no restante do país.

A superlotação dos hospitais da rede pública de saúde, a dificuldade de atendimento a pacientes e a falta de insumos —tudo isso numa gravidade superior à que se verificou na primeira onda, entre abril e maio— ganhavam contornos de criticidade a cada dia, semana após semana, até culminar no colapso em 14 de janeiro.

O Ministério da Saúde foi acionado, ainda em dezembro, diante da iminência do caos. E demorou a agir. O ministro da Saúde na época, o general da ativa Eduardo Pazuello, foi diretamente envolvido na crise.

Pazuello, que será ouvido pela CPI da Covid nesta quarta-feira (19) no Senado, tem uma história com Manaus, viveu na cidade e atuou como militar na região. Tem conexões diretas com autoridades locais. Como ministro da Saúde, tinha responsabilidade direta na tomada de providências dentro do sistema tripartite que é o SUS.

Desde 14 de janeiro, uma série de indícios, elementos, documentos e provas se avolumaram para indicar que Pazuello e seu ministério podem ter sido omissos na crise de escassez de oxigênio. O general e seus auxiliares diretos foram alertados dia após dia sobre o que estava ocorrendo e sobre o que viria a ocorrer.

Pazuello é alvo da Polícia Federal e do MPF (Ministério Público Federal). E os questionamentos ao governo Bolsonaro na crise em Manaus foram o principal motivo para a abertura da CPI da Covid.

O que ocorreu em Manaus? Dados de vigilância em saúde mostravam um aumento exponencial de novos casos e de mortes por Covid-19 em Manaus em dezembro de 2020. No dia 14, havia 399 pacientes internados em UTIs com o novo coronavírus ou com a suspeita de infecção pela doença. No dia 21, já eram 450. No dia 28, 540.

O agravamento da pandemia levou o Governo do Amazonas a editar um decreto com medidas restritivas e de distanciamento social, proibindo serviços não essenciais, em 23 de dezembro.

Insuflados por políticos bolsonaristas, comerciantes protestaram nas ruas contra as medidas. O decreto foi revogado quatro dias depois.

Hospitais da rede pública continuaram recebendo mais pacientes com Covid-19, para além de suas capacidades, e, em janeiro de 2021, já havia um cenário de falta de leitos, inclusive com necessidade de transferência de pacientes para outros estados.

A alta demanda, com maior gravidade dos casos, provocou um aumento exponencial do consumo de oxigênio medicinal.

No pico da primeira crise, entre abril e maio de 2020, o consumo foi de 30 mil metros cúbicos. Em 11 de janeiro de 2021, chegou a 50 mil. No dia 13, 70 mil. E, no dia 14, quando houve o colapso, 76 mil.

Esse consumo continuou crescendo, até se aproximar dos 100 mil metros cúbicos. Faltou oxigênio nos principais hospitais da rede pública de saúde, inclusive no Hospital Universitário Getúlio Vargas, uma unidade de saúde federal.

Pacientes morreram asfixiados. Os primeiros levantamentos de investigações conduzidas pelo MPF em Manaus apontaram de 20 a 30 mortes.

Parentes de pacientes se viram desesperados para comprar cilindros de oxigênio na iniciativa privada. Filas se formaram em busca do insumo.

Quem tinha dinheiro pagou UTIs aéreas para transportar doentes a outros estados. Mais de 500 pacientes em condições de saúde menos graves, sem dependência imediata de uma UTI, foram transferidos paulatinamente a outras regiões, em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira).

O que o governo federal fez antes e depois do colapso? Pazuello e seu secretariado se reuniram para tratar da segunda onda da pandemia no Amazonas em 28 de dezembro de 2020. O ministro determinou que uma comitiva fosse a Manaus somente em 3 de janeiro de 2021.

O objetivo era avaliar a situação. Depois, o próprio ministro foi à cidade, onde permaneceu entre 10 e 13 de janeiro. O colapso ocorreu no dia 14. Ele esteve acompanhado de secretários e assessores diretos.

A pasta providenciou o transporte de cilindros de oxigênio antes do colapso, mas em quantidades ínfimas perto da demanda e do total solicitado. Foram feitas inspeções em espaços de armazenamento e manejo de oxigênio hospitalar.

O ministério distribuiu no estado 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina e 335 mil cápsulas de Tamiflu, ambos sem eficácia comprovada contra a Covid-19.

Depois do colapso e das mortes por asfixia, o governo providenciou o transporte de oxigênio ao estado, por meio da FAB e da Marinha, e transferiu mais de 500 pacientes para fora de Manaus.

Quais são as evidências de omissão do governo federal? O Ministério da Saúde não dimensionou o problema e não calculou quanto seria necessário de oxigênio para evitar o colapso.

O Governo do Amazonas fez alertas prévios sobre a escassez em curso. Um ofício da White Martins, de 7 de janeiro, apontou a gravidade do problema, com um pedido de ajuda. A empresa fornece o oxigênio medicinal à região.

Relatórios da Força Nacional do SUS, enviada a Manaus por determinação do ministro da Saúde, registraram o problema e a iminência do colapso em documentos de 8, 9, 11, 12 e 13 de janeiro, inclusive com previsão exata de quando ocorreria o colapso.

No dia 10, uma cunhada de Pazuello disse diretamente a ele que um irmão estava “sem oxigênio nem para passar o dia”.

No dia 11, num evento público com Pazuello, o governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), relatou que a White Martins havia comunicado a incapacidade de fornecer oxigênio em quantidade suficiente. O governador disse que o relato foi feito no dia 7.

No dia 11, gestores da White Martins enviaram email ao ministério pedindo “apoio logístico imediato” para o transporte de oxigênio, o que não foi atendido. O email foi enviado a um coronel do Exército que auxiliava Pazuello.

Naquele mesmo dia, uma reunião já havia sido feita entre representantes da empresa, Pazuello e outros militares do Ministério da Saúde.

Relatório de ações do ministério, referente ao período de 6 a 16 de janeiro, apontou “gravíssima situação dos estoques de oxigênio hospitalar em Manaus logo no início do período”.

De quem era a responsabilidade pelo que ocorreu? A responsabilidade é compartilhada entre estado e União, segundo o MPF. Ao Ministério da Saúde não cabia apenas repassar recursos e equipamentos, mas também definir, coordenar e executar a vigilância sanitária e epidemiológica, com participação no fornecimento de insumos de saúde.

Ainda era função do ministério oferecer cooperação técnica aos demais entes da federação e acompanhar os serviços de saúde. A previsão legal para essas responsabilidades, segundo o MPF, são a lei nº 8.080/1990 e a Constituição Federal.

Quem investiga o que ocorreu? A PGR (Procuradoria-Geral da República) instaurou um procedimento preliminar e, diante de explicações pouco convincentes de Pazuello, pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) a abertura de um inquérito para investigar o então ministro.

O STF determinou a abertura do inquérito, que passou a ser tocado pela PF (Polícia Federal). Diligências já foram feitas.

Com a demissão do general, substituído em março por Marcelo Queiroga, e a perda de foro especial dele, as investigações foram transferidas para a primeira instância da Justiça Federal em Brasília.

O MPF investiga as omissões do Ministério da Saúde em inquéritos civis, que buscam a responsabilização na esfera cível. O Senado instaurou a CPI para investigar as ações e omissões do governo federal no combate à pandemia, incluindo o que ocorreu no Amazonas.

A CPI EM CINCO PONTOS

  • Foi criada após determinação do Supremo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)

  • Investiga ações e omissões de Bolsonaro na pandemia e repasses federais a estados e municípios

  • Tem prazo inicial (prorrogável) de 90 dias para realizar procedimentos de investigação

  • Relatório final será encaminhado ao Ministério Público para eventuais criminalizações

  • É formada por 11 integrantes, com minoria de senadores governistas

O que de concreto já ocorreu, em termos de investigações? O MPF no Amazonas apresentou na Justiça Federal uma ação de improbidade administrativa contra Pazuello e três de seus secretários, que continuam no Ministério da Saúde na gestão de Marcelo Queiroga.

Também são réus na ação o secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêlo, e o coordenador do comitê de crise no estado, Francisco Máximo Filho.

Os procuradores da República apontam na ação que houve atos de improbidade em cinco situações distintas: atraso do Ministério da Saúde para enviar uma equipe ao Amazonas, omissão no monitoramento de estoques de oxigênio e na adoção de medidas para evitar a escassez, pressão pela cloroquina, demora para transferência de pacientes e falta de estímulo ao distanciamento social.

A PF, na esfera criminal, já colheu depoimentos e busca provas que relacionem as mortes por asfixia à escassez de oxigênio, com identificação dos responsáveis. A CPI começará suas primeiras diligências, com oitivas e requisição de documentos ao Ministério da Saúde.

O que Pazuello e o governo Bolsonaro argumentam diante das acusações? O ex-ministro chegou a mudar uma versão junto ao STF, negando ter recebido aviso da White Martins em 8 de janeiro. O ofício da empresa, ao contrário do que o próprio Pazuello havia escrito em documento entregue ao Supremo, teria chegado ao ministério em 17 de janeiro, três dias depois do colapso.

Além disso, segundo o general, os relatos que teve foram sobre problema no fornecimento de oxigênio, não sobre colapso. Um problema no abastecimento de oxigênio teria sido relatado pelo governador do Amazonas no dia 10, conforme o ex-ministro.

Pazuello sustenta que adotou as providências necessárias, com centralização de ações para fornecimento do insumo pelo ministério, e que não dava para prever a escalada da demanda por oxigênio, diante da agressividade da nova onda da pandemia.

Bolsonaro, por sua vez, afirma que o governo federal não tem responsabilidade pelo que ocorreu em Manaus e que não tinha como antecipar o que iria ocorrer.

O presidente declarou que Pazuello foi um "tremendo gestor" na administração da crise e que recursos públicos federais foram enviados aos estados para lidar com a pandemia.

Principais sinais de omissão na crise do Amazonas:

  • Relatórios da Força Nacional do SUS com registros da escalada da crise entre os dias 8 e 13 de janeiro, até o colapso no dia 14;
  • Email da White Martins, em 11 de janeiro, pedindo a coronéis do Ministério da Saúde “apoio logístico imediato” para transporte de oxigênio;
  • Email da White Martins, em 7 de janeiro, apontando a escalada da escassez de oxigênio. Pazuello disse ao STF que email chegou no dia 8. Depois, gabinete mudou a versão;
  • Relatório de ações referentes ao período de 6 a 16 de janeiro, assinado pelo então ministro, em que diz ter detectado “gravíssima situação dos estoques de oxigênio hospitalar em Manaus”, “logo no início do período”;
  • Visita de Pazuello a instalações da White Martins em Manaus;
  • Reunião do general e de coronéis do Ministério da Saúde com representantes da White Martins em Manaus;
  • Documento de diretor jurídico da White Martins ao MPF no Amazonas, em que aponta ter havido informação e registro da situação “junto às autoridades públicas que estão à frente da questão junto ao estado do Amazonas e ao governo federal”, além de “reuniões periódicas com comitê de crise do governo federal”;
  • Relatório do centro de operações da secretaria-executiva do ministério, referente a ações em 10 de janeiro, com registro sobre “prioridade zero” no suprimento de oxigênio aos hospitais;
  • Chamada telefônica da Secretaria da Saúde do Amazonas ao ministério pedindo ajuda com oxigênio;
  • Plano de contingência com registro de “estrangulamento” no fornecimento de oxigênio;
  • Constatação de uso inadequado de oxigênio por grupos independentes mandados ao Amazonas;
  • Falta de dimensionamento do problema pelo ministério, sem mapeamento prévio da necessidade de volume a ser suprida;
  • Demora em contatar possíveis fornecedores, em requisitar microusinas e em buscar ajuda externa;
  • Relato da própria cunhada do então ministro, em 10 de janeiro, sobre um irmão doente: “Sem oxigênio para passar o dia”;
  • Relato do governador do Amazonas, em evento público no dia 11 de janeiro, com a presença de Pazuello: “Aí a gente começa a viver outro drama. Na quinta-feira [7], a principal empresa fornecedora nos comunicou que não tinha mais capacidade de fornecer oxigênio na quantidade que a gente precisava. Ela nos disse: ‘Parem de abrir leitos.’”
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