Em CPI, secretária erra ao defender aplicativo que recomendava uso de cloroquina; veja checagem

Mayra Pinheiro prestou depoimento à comissão nesta terça; Renan Calheiros aponta 11 contradições

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Marcela Duarte Maurício Moraes Nathália Afonso
Agência Lupa

A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, depôs na CPI da Covid nesta terça-feira (25).

Conhecida como "capitã cloroquina", Mayra obteve um habeas corpus que lhe deu o direito de permanecer em silêncio sobre os fatos ocorridos entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus. Mesmo assim, respondeu quando questionada sobre esses temas, buscando tirar qualquer responsabilidade do Ministério de Saúde pela crise no estado. Ela também defendeu o uso da hidroxicloroquina no tratamento inicial da doença.

Já foram ouvidos pela CPI os ex-ministros da Saúde Eduardo Pazuello, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, além do atual ministro, Marcelo Queiroga. O ex-chanceler Ernesto Araújo também prestou depoimento.

A Lupa verificou algumas das declarações de Mayra Pinheiro. A reportagem contatou o Ministério da Saúde a respeito das verificações e irá atualizar essa reportagem assim que tiver respostas.

Veja a seguir a checagem.

Ele [TrateCov] não foi colocado no ar

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

FALSO

Diferentemente do que afirma a secretária Mayra Pinheiro, o aplicativo piloto TrateCov foi colocado no ar para auxiliar médicos de Manaus, no Amazonas, no diagnóstico de pacientes com Covid-19, como mostra uma reportagem da TV Brasil do dia 19 de janeiro. A plataforma foi lançada em 11 de janeiro no município e a previsão do Ministério da Saúde era expandir para outras regiões. Na reportagem, um médico afirmava ter usado o TrateCov.

A partir do dia 19, reportagens mostraram que o aplicativo indicava a prescrição de remédios sem comprovação de eficácia contra a doença em qualquer caso que houvesse dois ou mais sintomas, incluindo sintomas não específicos como diarreia e fadiga. Na época, a Lupa acessou o aplicativo, hospedado em página do próprio ministério, e simulou diversos cenários.

Poucos dias após o seu lançamento, em 21 de janeiro, o CFM (Conselho Federal de Medicina) solicitou que o TrateCov fosse retirado do ar —medida que foi acatada pelo Ministério da Saúde. Após as críticas, a pasta informou, em nota, que a plataforma não estava funcionando oficialmente, “apenas como um simulador”, o que não é verdade, e que o “sistema foi invadido e ativado indevidamente”.

O que foi feito foi uma extração indevida [do código do TrateCov], na madrugada do dia 20, por um jornalista [Rodrigo Menegat, citado posteriormente]. Ele [Menegat] fez uma cópia da capa inicial dessa plataforma, abrigou nas redes sociais dele e começou a fazer simulações fora de qualquer contexto epidemiológico

Mayra Pinheiro

Em depoimento na CPI

FALSO

Não houve “extração indevida” do site por parte do jornalista Rodrigo Menegat. O código do TrateCov estava acessível a qualquer pessoa que entrasse no link do Ministério da Saúde onde a plataforma estava hospedada. Vários veículos da imprensa acessaram o aplicativo e fizeram reportagens sobre ele. Tanto a Folha de S.Paulo como a Lupa publicaram textos mostrando como funcionava o TrateCov no dia 20 de janeiro, mesma data em que Mayra Pinheiro acusa o jornalista de ter extraído os dados de forma indevida.

O que Menegat fez foi inspecionar a página (algo que pode ser feito por qualquer pessoa clicando no botão direito do mouse), copiar o código e arquivá-lo no GitHub (plataforma usada por programadores para, entre outras coisas, guardar códigos-fonte). Não há nenhuma ilegalidade nesse processo, que pode ser feito em qualquer site na internet e costuma ser usado para fins didáticos em aulas introdutórias sobre programação.

O TrateCov não está mais no ar pelo link do Ministério da Saúde, mas é possível acessá-lo através do Wayback Machine, um site que arquiva versões antigas de páginas na internet. A página segue funcional, e é possível realizar as mesmas simulações feitas por jornalistas na época. Vale notar também que a página estava hospedada dentro do site do ministério, e não nas redes sociais de um jornalista.​

A OMS retirou a orientação desses medicamentos [cloroquina e hidroxicloroquina] para tratamento da Covid baseada em estudos que foram feitos com qualidade metodológica questionável, usando o uso das medicações na fase tardia da doença, onde todos nós já sabemos que não há benefício para os pacientes

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

FALSO

A OMS nunca orientou o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19 e, portanto, não retirou a orientação. Em 1º de março de 2021, a OMS se manifestou contra o uso desses medicamentos no tratamento da doença. Na data, um painel de especialistas da organização emitiu uma “forte recomendação” contra o uso de hidroxicloroquina como prevenção, ou seja, em pessoas que não estão contaminadas. Além disso, os estudos que sustentam a avaliação da OMS não foram feitos com “qualidade metodológica questionável”. Na verdade, ela está baseada nas evidências de seis ensaios clínicos randomizados de alta segurança, envolvendo mais de 6.000 voluntários.

A recomendação clara para que não se faça o uso desses medicamentos saiu apenas neste ano, mas, em 2020, a OMS já havia descartado a eficácia da cloroquina no tratamento de Covid-19 em casos graves da doença. Em 4 de julho do ano passado, a OMS cancelou de forma definitiva ensaios clínicos com hidroxicloroquina no âmbito do Solidarity Trials —uma série de estudos em larga escala com o objetivo de testar diferentes medicamentos para casos graves de Covid-19. Cientistas que participavam dos ensaios verificaram que não havia nenhum benefício clínico no uso do remédio.

Além disso, em junho de 2020, a OMS já havia emitido alertas sobre efeitos colaterais e recomendava o uso apenas no contexto de estudos registrados, aprovados e eticamente aceitáveis.​

Nós garantimos o suporte do oxigênio quando foi necessário

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

FALSO

Embora o Ministério da Saúde tenha enviado cilindros de oxigênio e outros equipamentos para o Amazonas, isso não foi o suficiente para impedir o óbito de pacientes pelo desabastecimento do insumo. Somente no dia 14 de janeiro, 19 pessoas morreram por falta de oxigênio em Manaus, segundo a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A Defensoria Pública do Amazonas contabilizou também 30 mortes no interior do estado. Na época, a grave situação motivou celebridades a doarem cilindros para hospitais amazonenses.

O governo federal foi avisado no dia 8 de janeiro de 2021 que o sistema de saúde de Manaus estava perto de sofrer com a falta de oxigênio. Na ocasião, a empresa White Martins, fabricante de gases medicinais que fornece a substância para hospitais do Amazonas, entrou em contato com o governo para avisar que a procura por oxigênio no estado estava aumentando. Por essa razão, a empresa sugeriu a contratação de uma segunda empresa para fornecer mais cilindros, o que evitaria a falta do insumo.

No dia 10 de janeiro, Pazuello foi até Manaus para analisar a situação no município. Na ocasião, o Ministério da Saúde já afirmava que o governo federal já estava disponibilizando o transporte de 1.500 cilindros de oxigênio para a região. No dia 15, a pasta disse ter encaminhado 5.000 metros cúbicos de oxigênio líquido para o estado. Contudo, a ação do governo não foi suficiente para evitar mortes no estado.

A própria Organização Mundial de Saúde, que recomendou o lockdown, hoje diz que ele pode ser responsável pela fome e pela miséria

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

FALSO

A OMS continua a defender o lockdown como uma das medidas necessárias para o enfrentamento da Covid-19. Não houve mudança de posição da entidade desde o início da pandemia sobre esse tema. Em entrevista coletiva em 30 de março de 2020, o diretor-geral da instituição, Tedros Adhanom Ghebreyesus, já reconhecia que a população pobre poderia ser prejudicada por ficar sem renda durante o isolamento. Ele afirmou, na ocasião, que os governos deveriam criar políticas públicas que garantissem uma remuneração a essas pessoas enquanto perdurasse a restrição.

Na mesma entrevista, o diretor-executivo do Programa para Emergências em Saúde da OMS, o irlandês Michael Ryan, também disse que políticas de lockdown poderiam ser necessárias, dependendo da gravidade da epidemia no local. Ele não defendeu o relaxamento dessas medidas, embora tenha reconhecido que podem causar problemas para uma parte da população. Essa informação falsa começou a circular um dia depois da coletiva de Ghebreyesus e foi desmentida pela Lupa na época.

Em texto publicado no dia 31 de dezembro em seu site, a OMS reafirmou o seu posicionamento favorável ao isolamento social. "Medidas em larga escala de distanciamento físico e restrições de movimentação, frequentemente chamadas de lockdowns, podem reduzir a transmissão da Covid-19 ao limitarem o contato entre as pessoas", disse a entidade. Há somente a ressalva de que isso pode ter um impacto negativo nos indivíduos —especialmente a população pobre, migrantes e refugiados— por paralisar a economia. "Os governos devem aproveitar o máximo do tempo extra garantido pelas medidas de lockdown", destacou o texto.

A nova variante P.1 comportou-se quase como uma outra doença do ponto de vista clínico e de desfechos, e precisávamos de todas as medidas seguras para poder reduzir o caos que ali estava instalado

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

AINDA É CEDO PARA DIZER

Até o momento, não existem estudos que comprovem que a variante brasileira P.1, originária do Amazonas, se comporte como “uma outra doença”, como afirma a secretária. O que as pesquisas indicam, atualmente, é que ele é mais fácil de ser transmitido, infectando mais pessoas com a doença. Em abril, um estudo internacional divulgado na revista Science, com participação do IMT (Instituto de Medicina Tropical) da Faculdade de Medicina da USP, mostrou que a variante P.1 pode ser de 1,7 a 2,4 vezes mais transmissível do que outras variantes do novo coronavírus. Contudo, o estudo não cita nenhuma diferença em relação aos sintomas, à progressão ou à gravidade da doença.

A nota técnica da Fiocruz Amazônia indica que, em dezembro de 2020, os pesquisadores identificaram um possível caso de reinfecção de Covid-19. Eles realizaram o sequenciamento e no dia 13 de janeiro veio a confirmação de que o vírus analisado na amostra era uma nova variante, que foi denominada como P.1. Em março, um levantamento da Fiocruz afirmou que, de 8 estados avaliados pela entidade, apenas 2 não tiveram prevalência do P.1 superior a 50%.

A decisão da OMS em [23 de] janeiro foi de que não se decretasse uma situação de emergência de interesse internacional

Mayra Pinheiro

Durante depoimento na CPI

VERDADEIRO

Em 23 de janeiro do ano passado, a OMS anunciou que o novo coronavírus não era, naquele momento, uma emergência de saúde global. Na ocasião, o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que a situação era uma emergência na China, mas não no resto do mundo. Somente uma semana depois, no dia 30, a instituição considerou que a situação era uma emergência global.

Edição Chico Marés

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