Descrição de chapéu

Visita a Aparecida explicita relação desconfortável entre Bolsonaro e bispos católicos

Presidente tem hoje uma Igreja Católica visivelmente refratária à sua Presidência

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São Paulo

Jair Bolsonaro parece saber onde está pisando. O presidente interrompeu sua programação praiana em Guarujá (SP), onde pediu para não ser aborrecido quando jornalistas o questionaram sobre as 600 mil vítimas brasileiras de Covid-19, para acompanhar uma missa nesta terça (12), dia de Nossa Senhora Aparecida, em seu santuário nacional.

Dentro da basílica, ficou a maior parte do tempo de máscara, item que dispensa em tantas das igrejas evangélicas que visita. Não pode agir ali como o faz nas amigáveis terras pentecostais, ao menos não com a complacência dos bispos católicos.

O presidente tem hoje uma Igreja Católica visivelmente refratária à sua Presidência. Não que bispos sejam o sinal trocado dos escudeiros evangélicos do presidente, pastores que pintam uma Guernica moral para convencer fiéis de que votar na esquerda é anticristão. A cúpula católica é um pouco mais sutil em suas críticas. É raro ver um clérigo influente acusando nominalmente Bolsonaro de algo.

Nem precisava. Ele é o óbvio destinatário de repetidas críticas da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). E não foi diferente na passagem por Aparecida (SP), onde horas antes da chegada presidencial o arcebispo local, dom Orlando Brandes, foi na jugular sem jamais citar o nome do líder da nação.

“Para ser pátria amada não pode ser pátria armada”, disse dom Orlando numa missa matinal que precedeu a visita do chefe de Estado que já sugeriu comprar fuzil ao “idiota” que quer feijão. Depois, a jornalistas o arcebispo ainda diria que “nós estamos quebrando a aliança com aquilo que eu falei, com o ódio, com a corrupção”, e esclareceu que ele iria acolher Bolsonaro de máscara.

Seja feita sua vontade. No santuário, o inquilino do Palácio do Planalto cobriu o rosto com o apetrecho que já desmereceu em mais de uma ocasião. Seu desconforto, contudo, era visível. Não conseguia ficar muito tempo sem mexer na máscara. A cena, de certa forma, espelha uma relação pouco cômoda com representantes da fé que a devota Olinda passou ao filho que chamou de Jair Messias Bolsonaro.

O presidente tem esposa evangélica, com quem casou em 2013 sob a bênção do pastor Silas Malafaia, e ao menos dois filhos que se declaram assim, o senador Flávio e o deputado Eduardo. Em 2016, no meio do processo de impeachment contra a petista Dilma Rousseff e já de olho na eleição presidencial que se avizinhava, deixou-se batizar pelo presidente do PSC, seu partido à época, o Pastor Everaldo (que depois viria a ser preso).

Ainda que transite melhor em mares evangélicos, Bolsonaro nunca deixou de se reconhecer como católico. Mas nunca teve, por parte da Igreja Católica, fração significativa de apoio. A má impressão, já perceptível durante a eleição, engrossou depois que seu governo engatou e piorou ainda mais a reboque da pandemia e da crise ambiental.

Em julho, a CNBB divulgou nota cobrando investigações por denúncias de prevaricação e corrupção na compra de vacinas contra a Covid-19. O tema tinha acabado de cair no radar da CPI da Pandemia.

Em dezembro de 2020, quando o Brasil se aproximava das 200 mil mortes pela doença, o presidente da entidade, dom Walmor Oliveira de Azevedo, disse à Folha que “o coro dos lúcidos” é o antídoto contra “desgovernos e politização abomináveis”.

Bolsonaro também nunca nutriu a melhor das relações com o líder máximo da Cúria Romana. Pouco antes da pandemia, Francisco criticou o desrespeito a povos nativos da Amazônia, e o presidente rebateu: “O papa é argentino, mas Deus é brasileiro”.

Aqui vale ressaltar que o azedume com Bolsonaro parte também de bispos sem qualquer corcunda ao canhotismo político. A presidência atual da CNBB, lembra o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, “não é radical, não é sequer mais à esquerda”, a exemplo de quadros clássicos da Igreja que simpatizavam com a Teologia da Libertação, como dom Paulo Evaristo Arns.

Até um nome tido como mais conservador, dom Odilo Scherer, virou alvo após bolsonaristas passarem a ver comunismo em tudo. Contra o cardeal-arcebispo de São Paulo pesaram declarações como esta que deu em abril, no Roda Viva: “Enxergo o risco de uma virada política para uma ditadura, ou então uma tendência a um certo fascismo que se vai afirmando sempre mais”.

Em homilias, dom Odilo costuma lembrar da bíblica “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Sem mencionar Bolsonaro, que fez desse versículo uma tatuagem eleitoral, ele afirma que é preciso ter cautela porque essa frase quem disse foi Jesus.

Mesmo dom Orlando, que fustigou a “pátria armada” bolsonarista neste feriado, foi menos hostil quando o presidente esteve em Aparecida em seu primeiro ano no cargo. Na eleição, ainda que não majoritária, havia mais benevolência com Bolsonaro entre os bispos. “Uma parte deles encarnou aquela coisa de ‘qualquer coisa é melhor do que a esquerda’”, diz Filipe Domingues, o especialista em Vaticano.

Bolsonaro tem aliados na Igreja Católica. A Canção Nova, movimento carismático que espessa a bancada católica no Congresso, irmã menos midiática de seu par evangélico, lhe tem mais apreço. Bolsonaro já ouviu do monsenhor Jonas Abib, fundador da comunidade, que "o Brasil tem o presidente que precisava ter”.

Há ainda vozes radicais que, embora minoritárias, avolumam os decibéis bolsonaristas. Caso do Centro Dom Bosco, entidade formada por leigos (católicos não ordenados pela Igreja), que alveja o que vê como perigos progressistas, do especial de Natal do Porta dos Fundos à organização pró-aborto Católicas pelo Direito de Decidir. Ou ainda o youtuber católico Bernardo Küster, de vídeos como "Cala a Boca, Abortista!" e "Projeto de Ditadura LGBTTQI+@Y123”.

Bolsonaro sabe que, se quer ser viável em 2022, não pode se segurar apenas na base evangélica. Um eleitorado só não faz verão eleitoral.

É verdade que evangélicos, 26% dos entrevistados na mais recente pesquisa Datafolha, costumam viver mais intensamente a experiência religiosa em comparação aos católicos (52% da amostra), muitos deles não praticantes.

Daí a percepção de que é mais fácil apelar ao voto evangélico, como se a vontade política do pastor tivesse mais fluidez —ainda que outro levantamento do instituto, este de 2017, tenha mostrado que só 19% dos brasileiros levam em conta a opinião de seus líderes religiosos quando eles fazem campanha por algum candidato, tendência só levemente mais alta entre evangélicos (26%).

A fé, contudo, é um dos termômetros possíveis para medir os humores do eleitorado. Pois entre os católicos, 61% votam em Lula (PT), e 27% querem Bolsonaro reeleito, segundo pesquisa do Datafolha com 3.667 eleitores em 190 cidades nos dias 13 a 15 de setembro, com margem de erro de dois pontos percentuais.

Quando acabou a missa em Aparecida, uma única voz se levantou pelo presidente entre cerca de 2.500 fiéis —um homem que gritou “mito!” duas vezes. Do lado de fora, uma pequena claque fez o mesmo.

Um pastor que conhece e gosta de Bolsonaro já brincou que, como o presidente é católico, ele pode sempre se apegar à Rita de Cássia, santa das causas impossíveis, para reverter a antipatia dos bispos católicos a ele. Mas é difícil imaginar presidente e CNBB rezando pela mesma cartilha.

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