Liberação de verba política teve picos em negociações-chave para Lira e Bolsonaro

STF suspendeu execução das emendas de relator sob argumento de falta de transparência nos repasses bilionários

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Brasília

A distribuição de verbas ligadas às emendas de relator teve picos durante negociações estratégicas para o governo Jair Bolsonaro e para o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Cerca de metade dos R$ 19 bilhões reservados para essas emendas em 2020 foi empenhado no último mês daquele ano, quando avançou a articulação para a eleição de Lira para presidente da Câmara, apoiado por Bolsonaro.

Em 2021, o governo já empenhou —reservou a verba para o gasto, no jargão orçamentário— mais de R$ 9 bilhões dos R$ 16,8 bilhões desse tipo de emenda. A autorização das despesas se concentrou no fim de junho e durante o mês de julho, e também de meados de outubro até a primeira semana de novembro.

Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Arthur Lira, em Brasília - Cleia Viana-9.ago.21/Câmara dos Deputados

No último intervalo o governo se esforçava para aprovar a PEC dos Precatórios, medida prioritária para bancar o Auxílio Brasil e conseguir melhorar os índices de aprovação de Bolsonaro no ano eleitoral, na expectativa do Palácio do Planalto.

Apenas nas duas semanas que antecederam a votação foi distribuído R$ 1,4 bilhão.

A execução dessas emendas, chamadas de RP-9, está suspensa desde o dia 5 por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Relatora de ação sobre o caso, a ministra Rosa Weber defende que não há transparência nos repasses dessas verbas, entre outros problemas. A decisão foi seguida por 8 dos 10 atuais membros da corte.

A decisão do Supremo impede novos empenhos, além de pagamento das emendas feitas em 2021, mas não barra desembolso para quitar as indicações de recursos apresentadas em 2020.

É o relator-geral do Orçamento de cada ano que tem o poder de indicar essas verbas. Na quase totalidade dos casos, porém, ele funciona apenas como um preposto dos interesses da cúpula do Congresso e do governo, que define quem ganha e quanto ganha, a partir de suas conveniências políticas.

A lógica é diferente das emendas individuais, em que cada parlamentar pode indicar, neste ano, até R$ 16,3 milhões de emendas ao Orçamento, de forma equânime.

As emendas representam o principal capital político da maior parte do Congresso, já que patrocinam obras e aquisições para seus redutos eleitorais. Historicamente, também estão ligadas a escândalos de corrupção, como o dos Anões do Orçamento, nos anos 1990.

No primeiro ano de execução, as emendas de relator privilegiaram ações do MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), comandado por Rogério Marinho, com R$ 8 bilhões. A verba foi aplicada principalmente em obras e na compra de maquinários.

O Ministério da Saúde tem a maior parcela (R$ 7,5 bilhões) de gastos autorizados em 2021 com essas emendas.

A pasta empenhou R$ 4,6 bilhões até agora. Quase todo o valor foi direcionado para ampliar limites de gastos de estados e municípios com a saúde. O fundo municipal de São Gonçalo (RJ), o mais beneficiado com esse tipo de repasse, recebeu R$ 64 milhões.

Dentro dos recursos da Saúde, há também R$ 200 milhões liberados para estruturação de hospitais. O repasse mais alto, de R$ 20 milhões, é para levantar uma unidade em Autazes (AM), a pedido do deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), ex-coordenador da bancada evangélica.

Em maio, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o presidente da Câmara, Arthur Lira, direcionaram R$ 277 milhões e R$ 144 milhões, respectivamente, das verbas de RP-9 da pasta comandada por Rogério Marinho em 2020. Os valores estavam registrados em ofícios enviados ao MDR.

Outros documentos registrados no site do Desenvolvimento Regional mostram que parlamentares da oposição também foram beneficiados, mas em menor escala.

Lira e o Congresso trabalharam na distribuição de emendas e cargos para a eleição a presidente da Câmara. No fim do ano passado, o Congresso aprovou a abertura de crédito suplementar de quase R$ 6,1 bilhões a oito ministérios. Esse valor foi repassado aos líderes de partidos da base, que distribuíram entre os congressistas.

O empenho desses recursos foi feito às pressas, nos últimos dias do ano passado, no limite do fechamento daquele exercício. Em 2021, as verbas de RP-9 voltaram a ser encaminhadas somente em maio, pois o Orçamento da União demorou a ser aprovado.

Além dos esforços para eleger Lira e o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para a presidência do Senado, técnicos do Congresso afirmam que o período final de ano já apresenta uma sazonalidade de alta no empenho das emendas.

A equipe técnica legislativa do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) aponta que isso decorre de má gestão, que acarreta uma correria nos últimos dias do ano para executar as emendas que não saíram do papel.

Por outro lado, os técnicos apontam que o pico visto entre outubro e novembro está diretamente ligado com a construção de maioria para aprovar itens de interesse do governo. Citam a votação da PEC do Voto Impresso —que acabou derrotada— e a PEC dos Precatórios.

"Toda troca de vantagens por voto é corrupção e deve ser repelida. O orçamento secreto permitia essa troca sem nenhuma transparência", afirma Vieira.

Na votação dos precatórios, a Folha colheu o depoimento reservado de vários parlamentares de que Lira e governistas usaram a liberação de verba para essas emendas como moeda de troca pelo apoio ao projeto.

O prefeito de Belford Roxo (RJ), Waguinho (PSL), chegou a publicar vídeo nas redes sociais afirmando que Lira "garantiu mais recursos" para o município a pedido de sua mulher, a deputada Daniela do Waguinho (MDB-RJ). A parlamentar contrariou orientação do partido e votou a favor da PEC.

A distribuição de verbas de emendas do relator gerou briga entre o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e Lira. O general disse a aliados que foi pressionado, mas que se recusou a direcionar verbas por critério político, e ligou a sua demissão a pedidos negados por "pixulé", quando deixou a pasta, em março.

O deputado Luís Miranda (DEM-DF) disse à Polícia Federal que Pazuello lhe relatou ter sofrido pressão de Lira. O general e o presidente da Câmara negam a disputa.

Parte das verbas de RP-9 também acaba sendo aplicada para gastos ordinários de órgãos ou em ações que não atendem ao interesse específico de um parlamentar.

Em 2020, por exemplo, a Fiocruz recebeu R$ 260 milhões das emendas de relator para ações de combate à Covid-19. ​Já o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) tem R$ 350 milhões em verbas de relator incorporados ao seu orçamento de 2021.

Em manifestações enviadas ao STF no processo que trata das emendas, Câmara e Senado reconheceram o poder das negociações políticas na distribuição desses recursos de RP-9.

"A definição das razões ou da motivação do relator-geral para fazer uma emenda representa o próprio mérito da atividade parlamentar e dos instrumentos para a formação da coalizão governamental", afirmou a Advocacia do Senado.

Já Lira disse ao Supremo que não há como vincular esse tipo de repasse a um parlamentar. "As indicações, tomadas em sentido amplo, de sugestões para decisão sobre atos administrativos, podem inclusive ter origem fora do Parlamento, não se limitando às emendas parlamentares", declarou o deputado no processo.

As distorções sobre volumes distribuídos de RP-9, porém, ficam expostas nos benefícios dados aos próprios relatores do Orçamento.

Em 2020, Tauá (CE), de cerca de 60 mil habitantes, esteve entre as cidades que mais receberam recursos —R$ 150 milhões. Trata-se de município comandado pela mãe de Domingos Neto (PSD-CE), relator daquele ano.

Ministros do governo e outras autoridades também se beneficiam desses valores.

Documentos do Ministério do Turismo sobre a execução de emendas RP-9 mostram indicações de verbas para a pasta feitas por Tereza Cristina (Agricultura), Rogério Marinho (MDR) e pelo ministro Gilson Machado.

O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), também sugeriu aplicação de verbas para ações em Olinda. Os documentos não deixam claro o valor empenhado a pedido das autoridades.

Uma importante liderança do governo nega o relato de dezena de parlamentares e diz, sob reserva, que o pico de liberação dos recursos acontece duas a três vezes por ano por entraves da própria burocracia dos ministérios e que pouco teria a ver, em suas palavras, com a votação de propostas importantes ao Planalto.

Contrapondo a visão disseminada de que seria compra de votos, ele argumenta que mesmo parlamentares da oposição conseguiram emendas para suas bases por meio desse mecanismo.

Procurado, o Ministério da Saúde, principal beneficiário das emendas RP-9 de 2021, não se manifestou sobre a decisão do STF.

O MDR disse que 2.198 contratos de repasse e 375 convênios tiveram o pagamento suspenso, no montante de R$ 2,5 bilhões. "Outras cerca de duas mil propostas, que estavam em análise por este ministério, não serão contratadas", afirmou a pasta, em nota.

O Ministério da Economia disse que ainda depende de uma decisão final do Supremo para "se manifestar sobre seus potenciais impactos". O mérito da ação contra as emendas de relator ainda não foi analisado pela corte.

Em entrevista dada em Portugal, Lira defendeu as emendas e afirmou que o Congresso deverá aprovar projeto para dar transparência ao mecanismo.

Como a Folha mostrou na quinta-feira (11), o texto da proposta já está pronto e foi distribuído a parlamentares. Apesar de ampliar a transparência, não trata das emendas distribuídas em 2020 e 2021 nem das regras que permitem ao governo e à cúpula do Congresso dividir as bilionárias verbas estritamente de acordo com as suas conveniências políticas.

A intenção da cúpula do Congresso é a de, a partir da aprovação de regras mais transparentes, convencer o STF a liberar a execução das emendas.


ENTENDA O QUE SÃO E COMO FUNCIONAM AS EMENDAS PARLAMENTARES

A cada ano, o governo tem que enviar ao Congresso até o final de agosto um projeto de lei com a proposta do Orçamento Federal para o ano seguinte. Ao receber o projeto, congressistas têm o direito de direcionar parte da verba para obras e investimentos de seu interesse. Isso se dá por meio das emendas parlamentares.

As emendas parlamentares se dividem em:

  • Emendas individuais: apresentadas por cada um dos 594 congressistas. Cada um deles pode apresentar até 25 emendas no valor de R$ 16,3 milhões por parlamentar (valor referente ao Orçamento de 2021). Pelo menos metade desse dinheiro tem que ir para a Saúde
  • Emendas coletivas: subdivididas em emendas de bancadas estaduais e emendas de comissões permanentes (da Câmara, do Senado e mistas, do Congresso), sem teto de valor definido
  • Emendas do relator-geral do Orçamento: As emendas sob seu comando, de código RP9, são divididas politicamente entre parlamentares alinhados ao comando do Congresso e ao governo

CRONOLOGIA

Antes de 2015
A execução das emendas era uma decisão política do governo, que poderia ignorar a destinação apresentada pelos parlamentares

2015
Por meio da emenda constitucional 86, estabeleceu-se a execução obrigatória das emendas individuais, o chamado orçamento impositivo, com algumas regras:

  • a) execução obrigatória até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior;
  • b) metade do valor das emendas destinado obrigatoriamente para a Saúde
  • c) contingenciamento das emendas na mesma proporção do contingenciamento geral do Orçamento. As emendas coletivas continuaram com execução não obrigatória

2019

  • O Congresso amplia o orçamento impositivo ao aprovar a emenda constitucional 100, que torna obrigatória também, além das individuais, as emendas de bancadas estaduais (um dos modelos das emendas coletivas)
  • Metade desse valor tem que ser destinado a obras
  • O Congresso emplaca ainda um valor expressivo para as emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento: R$ 30 bilhões
  • Jair Bolsonaro veta a medida e o Congresso só não derruba o veto mediante acordo que manteve R$ 20 bilhões nas mãos do relator-geral

2021
Valores totais reservados para cada tipo de emenda parlamentar:

  • Emendas individuais (obrigatórias): R$ 9,7 bilhões
  • Emendas de bancadas (obrigatórias): R$ 7,3 bilhões
  • Emendas de comissão permanente: R$ 0
  • ​Emendas do relator-geral do Orçamento (código RP9): R$ 16,8 bilhões ​
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