Ex-colega de Dilma fala em livro de vida na prisão da 'torre das donzelas', na ditadura

Ana Maria Ramos Estevão, ex-líder estudantil, aborda convivência na cadeia e culpas em "Torre das Guerreiras"

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São Paulo

Décadas se passaram até que a professora universitária Ana Maria Ramos Estevão conseguisse vir a público expor o que viveu durante o regime militar.

O relato pessoal dela de perseguições, companheirismo na cadeia e torturas durante o auge da repressão está no livro "Torre das Guerreiras e Outras Memórias", lançado pela editora 106.

Ana Maria, hoje com 73 anos, foi colega de cela no presídio Tiradentes, em São Paulo, da ex-presidente Dilma Rousseff e de outras militantes. Dilma ficou presa no local por quase três anos. Ana Maria esteve lá detida por sete meses, entre 1970 e 1971.

Foto em preto e branco de pessoas segurando cartazes no lado de fora de uma prisão
Protesto de familiares de presos políticos no lado de fora do presídio Tiradentes, na região central de São Paulo, em 1968, ainda antes do AI-5 - Folhapress

O título do livro ironiza o apelido "torre das donzelas" dado por presos homens à ala feminina do presídio, tido pela autora como conotação machista.

Nordestina, de origem pobre, aluna do curso de serviço social, a autora tinha atuação, dentro do movimento estudantil, no apoio logístico a integrantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), um dos principais grupos da luta armada no período.

As descrições das torturas sofridas logo após a prisão estão entre as partes mais impactantes do relato. Ana Maria diz que sofreu choques elétricos por períodos em que não consegue dimensionar por ter perdido a noção de tempo. "Deus não existe na tortura, ficamos sós, completamente. Solidão pior que a da morte."

Em um dos trechos, expressa a culpa que a afligiu por anos pelo fato de ter mencionado em interrogatório uma amiga. Mas entende que é "cruel e perverso" esperar atitude heroica de quem foi submetido a tal sofrimento.

No depoimento, diz que reconheceu em uma das ocasiões o à época major Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe de uma das unidades da repressão, frequentador da Igreja Metodista, assim como ela. O oficial, que morreu em 2015, voltou ao noticiário político nos últimos anos ao ser elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro, que é capitão reformado do Exército.

Foi Ustra, diz Ana Maria, quem deu a ordem para que uma sessão de pau de arara cessasse porque a torturada era fraca e "não resistiria". Os militares perceberam posteriormente, segundo a autora, que havia outros alvos com potencial de informações muito maior.

O livro também menciona o caso do ativista Márcio Toledo, que foi morto por companheiros de guerrilha na época em que ela já estava presa, e diz que a atitude foi enfaticamente criticada pelos demais militantes.

A justificativa dada para a morte, conta ela, eram "questões de segurança", por Toledo cogitar abandonar a luta armada.

"Não deveria ter sido difícil aceitar que algumas pessoas não tinham estrutura emocional para militar daquela maneira e que elas podiam mudar de ideia, simplesmente reconhecer suas limitações."

Ela conclui: "De todas as culpas que carregamos, essa é a pior porque é coletiva, não tem perdão". Antes da prisão, Ana Maria havia convivido com Carlos Eugênio Sarmento da Paz, conhecido como Clemente, um dos líderes da ALN e que morreu em 2019.

Outro ponto alto do depoimento é a descrição do dia a dia dos presos políticos na "torre", quase todas jovens na faixa dos 20 e poucos anos. O presídio, antiga cadeia de escravos fugitivos no século 19, foi demolido nos anos 1970.

Ana Maria fala de revistas nas celas feitas de surpresa de madrugada, da preocupação com colegas grávidas e do envio de recados, para visitantes, escondidos em peças de artesanato produzidas pelas detentas.

Diz que havia o hábito de cantar o tempo todo. "Por tristeza, para avisar das novidades, quando alguém chegava, quando alguém saía".

Recorda também de intensa "conversa" com os homens da ala vizinha graças a uma parede nos banheiros na qual trocavam mensagens em código Morse.

Ao falar da convivência com as companheiras de cela, lembra que uma delas, Heleny Guariba, sumiria meses depois e hoje é considerada desaparecida política do regime.

Mulher de óculos dá entrevista com fundo preto
A professora universitária Ana Maria Ramos Estevão, autora do livro "Torre das Guerreiras" e ex-colega de Dilma Rousseff - Reprodução Youtube

A ex-presidente Dilma aparece esporadicamente nos relatos. É descrita como estudiosa e com bom humor para inventar apelidos para todas as integrantes da ala. "Seu tom de voz era invariavelmente professoral e de comando, mesmo quando a gente não estava discutindo política."

No prefácio, Dilma afirma que a ex-colega conseguiu encontrar pequenas alegrias e motivos para acreditar na humanidade "quando a rotina era a banalidade do mal".

O vínculo formado com as companheiras foi tal que, diz a autora, em "ironia das ironias", ela se sentia protegida e feliz na cadeia. Uma das colegas se tornaria sua orientadora em mestrado na USP.

Ana Maria voltou a ser presa em duas ocasiões, em 1972 e 1973. Sentindo-se ameaçada, imaginando que seria novamente alvo da repressão por seus muitos contatos entre militantes de esquerda, passou um período na Europa graças a uma bolsa de estudos.

Parte do relato também analisa as sequelas das situações dramáticas que viveu. Conta a autora que sofria "ataques de mudez" e que por anos rejeitava ter qualquer conversa sobre política. "Uma dor congelada e não enfrentada permanece doendo", diz no livro.

Torre das Guerreiras e Outras Memórias

  • Preço R$ 52,90 - (192 páginas)
  • Autoria Ana Maria Ramos Estevão
  • Editora 106
Reprodução
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