Há discursos perturbadores que não são de ódio, diz relator na OEA

Para responsável por área de liberdade de expressão da entidade, Justiça precisa ter critérios para enquadrar abuso

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São Paulo

A Justiça precisa saber distinguir declarações perturbadoras, que podem soar irritantes ou chocantes, mas que são protegidas pela lei, de discursos de ódio, afirma o advogado colombiano Pedro Vaca Villarreal.

Ele é relator especial para a liberdade de expressão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).

"A liberdade de expressão é um direito amplo", afirma.

O colombiano Pedro Vaca Villareal, relator especial para Liberdade de Expressão na Comissão de Direitos Humanos na OEA
O colombiano Pedro Vaca Villareal, relator especial para Liberdade de Expressão na Comissão de Direitos Humanos na OEA - Divulgação/Organização dos Estados Americanos

Em entrevista à Folha, ele criticou decisão do Supremo Tribunal Federal de março de bloquear o aplicativo Telegram, revista depois de dois dias, por entender que afetou o direito de todos os cidadãos.

Mas considera que as plataformas estão "em dívida" na sua atuação para solucionar problemas nas sociedades democráticas.

Questionado sobre o panorama da liberdade de expressão no Brasil, Pedro Vaca disse ver uma "atmosfera hostil ao trabalho jornalístico".

Em junho, a Comissão Interamericana divulgou uma nota dura com críticas ao governo Jair Bolsonaro, por ocasião das buscas ao indigenista brasileiro Bruno Pereira e ao jornalista britânico Dom Phillips, na época desaparecidos no interior do Amazonas.

Um dos pontos destacados era declaração do presidente de que os dois estavam em uma "aventura não recomendada". Posteriormente, foi revelado que o indigenista e o jornalista tinham sido mortos durante viagem no rio Itaquaí, no dia 5 de junho.

Para Pedro Vaca, autoridades públicas precisam "ser cuidadosas diante do impacto que as palavras podem ter" na sociedade.

A Comissão de Direitos Humanos da OEA fez uma declaração com palavras muito fortes na época do desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips. Por que foi necessário?
Toda a história do caso de Dom Phillips e Bruno Pereira é uma tragédia na maior acepção da palavra.

O tratamento das informações pelas autoridades não era claro naquele momento de buscas. Advertimos e lamentamos que se julgassem as atividades que os dois estavam desenvolvendo [enquanto viajavam]. Também não havia muita informação sobre as iniciativas governamentais pela busca.

Posteriormente, com um pouco mais de informação, entendemos que há alguns avanços judiciais. De qualquer forma, é importante que se esgotem todas as linhas de investigação.

Ficaram muitas perguntas depois disso. Quais são as garantias para a defesa dos direitos ambientais e dos jornalistas em Brasil? Que mensagem recebe a sociedade?

A nota da comissão criticava especificamente a declaração do presidente Bolsonaro de que os dois estavam em uma "aventura não recomendada". Houve falta de respeito dele?
O sistema interamericano [de direitos humanos, da OEA] apontou em diversas oportunidades que os discursos de pessoas com notoriedade, que tenham autoridade pública, como esse caso, sejam muito cuidadosos, diante do impacto que podem ter no debate público.

Essas palavras creio que não correspondiam à expectativa cidadã que se tinha sobre o que deve dizer o presidente nesse tipo de circunstância. A comunidade internacional estava muito mais ansiosa sobre quais eram os esforços [de resgate]. E creio que está, em um último nível de prioridade, o que pode pensar, a opinião que tiver sobre o que os dois estavam fazendo.

Os termos e as palavras utilizadas, para muitas pessoas, podem dar a entender que os dois buscaram esse destino. E a verdade é que ninguém, em uma sociedade democrática, por fazer jornalismo e defender os direitos humanos, deve temer isso como um destino possível.

O presidente tem um histórico de declarações, por exemplo, na forma como fala de jornalistas. Isso preocupa também? Hoje [quarta-feira, 29] ele foi condenado [por danos morais] por fazer uma insinuação sexual contra uma jornalista da Folha [a repórter Patrícia Campos Mello].
De certa maneira, é um padrão regional. Advertiu-se de que há uma deterioração generalizada no debate público. Isso tem vários ingredientes, e um que é particularmente importante é um certo nível de hostilidade de vozes com responsabilidade pública contra o trabalho dos jornalistas. E há um componente particular no caso de mulheres jornalistas, como é o caso de Patrícia.

A estigmatização, quando vem de lideranças públicas, tem impactos negativos para a democracia.

E aí sempre se faz um chamado para que os funcionários públicos, que exercem cargo de responsabilidade, representantes, que chegaram a posições de poder graças à confiança dos cidadãos, tenham muito cuidado na hora de rotular em meios de comunicação. Lamentavelmente, o Brasil, como vários países, há uma normalização dessa estigmatização da imprensa. É algo que seria muito importante corrigir.

Os ataques às mulheres jornalistas são uma preocupação em especial?
Definitivamente. São mensagens que chegam a determinadas audiências e se amplificam de uma forma que podem acabar sendo dramaticamente aturdidoras.

Fazem sobre as jornalistas um ruído tão perturbador que recebemos vários depoimentos na relatoria inclusive de gente que pensa em deixar o jornalismo. Há jornalistas muito valentes, muito resilientes. Mas é uma situação que nenhuma mulher jornalista deveria passar. E é ainda mais condenável quando a origem dessas mensagens vêm de pessoas que têm uma posição de garantidoras dos direitos humanos, da liberdade de expressão e dos direitos das mulheres.

Fazem sobre as jornalistas um ruído tão perturbador que recebemos vários depoimentos na relatoria inclusive de gente que pensa em deixar o jornalismo

​​Quais são as principais queixas que a comissão analisa hoje em relação à liberdade de expressão no Brasil?
Neste mês, publicou-se o informe anual sobre liberdade de expressão. No capítulo Brasil, um dos temas é o jornalismo e democracia, a atmosfera hostil ao trabalho jornalístico, muitas vezes cercado de vozes com responsabilidade pública que podem estar estimulando esse cenário.

Também se advertiu sobre o aumento das ações judiciais contra a imprensa.

Com enorme preocupação, também vemos processos civis, com sanções muito altas. O caso de Rubens Valente [jornalista condenado junto com uma editora a pagar mais de R$ 300 mil em indenização ao ministro do Supremo Gilmar Mendes] é um que acompanhamos de perto. É delicado em termos de impacto na liberdade de expressão e pode enviar uma mensagem muito forte em relação à tolerância com a crítica que podem ter determinadas autoridades públicas no Brasil.

Uma pergunta que fazemos a todos os países é sobre a autocensura que isso pode estar gerando. Quando determinados jornalistas enfrentam esses obstáculos que estou resumindo, outros jornalistas veem. Quando vão se aproximar de um assunto que já tenha gerado ameaças, situações de estigmatização, violência sexual, podem pensar duas ou três vezes ou simplesmente não cobrir o assunto. O grande sacrifício é que a sociedade recebe menos informação sobre questões de interesse público.

Quando determinados jornalistas enfrentam esses obstáculos que estou resumindo, outros jornalistas veem. Quando vão se aproximar de um assunto que já tenha gerado ameaças, situações de estigmatização, violência sexual, podem pensar duas ou três vezes ou simplesmente não cobrir o assunto

Muitos apoiadores do governo no Brasil se dizem censurados pelo Supremo Tribunal Federal, que por sua vez fala, por meio de alguns magistrados, que há discursos de ódio e ameaças. Quais são os limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio?
Não posso fazer referência a casos concretos. Mas, em uma reflexão sobre o tema, os discursos de ódio, que incitam a violência, não estão protegidos pelo direito internacional. Portanto, os países devem tomar medidas para prevenir a ocorrência e puni-los.

Há discursos que podem ser perturbadores e que não são de ódio. É uma distinção que os países, as autoridades, em particular a Justiça, deve fazer. Porque não podemos aplicar o critério de um discurso "não protegido" [pela lei] a um discurso que pode ser chocante, incômodo, irritante, que não é discurso de ódio.

Que características tem um discurso de ódio? Para analisar, é preciso levar em conta vários aspectos. 1) O contexto social e político em que ocorre. 2) A categoria do orador, se é emitido por pessoas com grandes níveis de responsabilidade —é um ingrediente importante. 3) A intenção de incitar a audiência contra um grupo determinado de pessoas. 4) O conteúdo e a forma do discurso. 5) A extensão da discussão. 6) E a probabilidade de causar danos.

Para se encaixar no critério [de fala de ódio] e para que os Estados estejam autorizados a limitá-lo, precisaria entrar nesses critérios, de acordo com o direito internacional.

Como o sr. vê os riscos que a desinformação traz em processos eleitorais?
É um fenômeno lamentavelmente presente. O jornalismo tem um lugar chave. Está sendo chamado a ser um ponto de referência.

É muito importante que os partidos políticos, as autoridades eleitorais e os candidatos sejam muito leais com o debate democrático.

Qual a sua opinião sobre o comportamento das plataformas nessa situação?
Creio que elas estão em uma dívida na contribuição para a solução dos problemas para a democracia que ocorrem através de suas plataformas.

Estão em dívida para contribuir de maneira proporcional ao poder que detêm. De um lado, há certa disponibilidade das plataformas para participar das discussões. Isso é bom.

Também é certo que possuem uma arquitetura interna tão complexa na qual, lamentavelmente, se dá atenção aos países grandes. Estão muito mais preocupadas do que com países com menor volume de habitantes.

O que as corporações poderiam fazer a mais?
Estamos em um instante em que não podemos dizer que não estão fazendo nada. Há algumas iniciativas em andamento, e temos que ser equilibrados em relação a isso.

Mas é certo que, na iminência de alguns desafios, e com o poder que têm, o que estão fazendo não é proporcional.

Há situações, e isso está ocorrendo em diversos países, em que se pede cooperação a essas plataformas com alguns assuntos, e é uma cooperação que não é homogênea. Algumas participam, outras não, é um setor que em que não é padronizada a cooperação com autoridades locais.

E há outro componente que é a transparência: na tomada de algumas decisões, na informação para entender o fenômeno, nos processos.

O sr. criticou o bloqueio do Telegram no Brasil [determinado pelo Supremo]. Por que considera que foi um erro?
Não foi a primeira vez que foram tomadas decisões desse tipo. São drásticas. O que me chamou a atenção foi ter sido uma decisão que não afetava só o Telegram, mas todas as pessoas que usam o Telegram, incluindo para exercícios legítimos da liberdade de expressão.

Um elemento muito importante é a proporcionalidade. Afetar o menos possível a liberdade de expressão.

A medida foi tão drástica que em bem pouco tempo foi revertida.

O Estado não pode agir de qualquer forma. Aí é muito importante um exercício de ponderação.

Pedro Vaca Villarreal, 35

Advogado colombiano, é desde 2020 o responsável pela área de liberdade de expressão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). É mestre em direito pela Universidade Nacional da Colômbia e foi diretor-executivo da Fundação para a Liberdade de Imprensa

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