Jornalismo reage a ataques e recuo na transparência na gestão Bolsonaro

Organizações manifestam preocupação com risco de escalada da violência no período eleitoral

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São Paulo

Ao longo do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), jornalistas e veículos de comunicação têm enfrentado uma ofensiva constante que fere o direito à liberdade de expressão e a liberdade de imprensa no país.

A escalada teve início ainda na campanha eleitoral de 2018 e seguiu sem trégua no decorrer da gestão bolsonarista.

O comportamento tem sido denunciado por organizações que trabalham na defesa da liberdade de expressão e do jornalismo. Elas reforçam o efeito em cascata nas agressões a partir de tais declarações e o clima de risco para profissionais na cobertura eleitoral.

Bolsonaro com semblante sério falando ao microfone
O presidente Jair Bolsonaro durante evento em Umuarama, Paraná - Isac Nóbrega/PR

Segundo a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Bolsonaro foi responsável pela maior parte das agressões a profissionais da imprensa em 2021, com 147 das 430 ofensivas denunciadas no período, que incluíram episódios de censura (140 casos) e de tentativas de desqualificar a informação (131 casos). Em relação a 2018, quando foram registrados 135 casos, o aumento foi de 218%.

Os dados são coletados anualmente a partir de denúncias feitas à federação e sindicatos e de notícias publicadas em veículos de comunicação.

Quase todos os episódios de censura registrados (98%) foram praticados por dirigentes da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), diz o relatório, que aponta na mesma empresa do governo federal outros três casos de violência contra a organização dos trabalhadores e uma ameaça.

A diretora-executiva da ONG Artigo 19, Denise Dora, diz que o Brasil foi o terceiro país em que a liberdade de expressão foi mais reduzida no mundo no período de 2011 a 2021, atrás de Hong Kong e Afeganistão, dado que deve constar no próximo relatório global da organização.

No levantamento de 2020, o retrocesso já aparecia, com o país registrando 52 pontos na escala de liberdade de expressão usada pela organização, a menor pontuação desde 2010, o que colocou o Brasil no rol de democracias em crise.

Outro levantamento, feito pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) com apoio do Fundo Global de Defesa da Mídia, da Unesco, observou casos de violência cometidos contra mulheres jornalistas e ataques de gênero. Em 2021, foram 119 registros.

A maioria desses ataques (60%) estava associada a publicações de teor político e mais da metade dos 94 agressores identificados eram atores estatais, como membros do Executivo e parlamentares. Bolsonaro lidera o ranking ao lado do deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ), com oito ataques cada um.

A advogada Letícia Kleim, assistente jurídica e coordenadora do programa de proteção para jornalistas da Abraji, diz que, ao adotar discursos estigmatizantes, o presidente estimula a agressão.

"Ele pessoalmente não faz isso, mas os seguidores se empenham em outras formas de ataques ainda mais graves, como as agressões físicas, as ameaças, perseguições e tudo isso a gente têm visto muito como reflexo dessa postura do governo."

Representante no Brasil da ONG americana CPJ (Comitê para a Proteção dos Jornalistas), Renata Neder diz que historicamente o que se vê como padrão no Brasil é que a maior parte dos jornalistas ameaçados, atacados e agredidos atua em cidades pequenas.

"Muitos jornalistas são frequentemente atacados e agredidos e esses casos não têm visibilidade, mas podem estar ganhando força em um cenário em que as autoridades do país atacam abertamente a imprensa e os jornalistas."

Especialistas também chamam atenção para a tentativa do governo de minar a transparência.

Diretora-executiva da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci diz que, embora a estrutura estatal criada nos dez anos da LAI (Lei de Acesso à informação) resista, a posição institucional da alta administração tem afetado a implementação de políticas. Ela cita entre os exemplos o adiamento do Censo do IBGE.

"Tem uma política ativa de desacreditar as instituições e mais do que desacreditar, de desinvestir ou de retirar investimento e promover o sucateamento mesmo dessas estruturas", afirma.

Outra preocupação é como a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) tem sido usada pelo governo para omitir informações de interesse público.

Exemplo disso foi a remoção de dados detalhados do Censo Escolar e do Enem pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

O professor da FGV Ebape (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas) Gregory Michener diz que o primeiro erro foi não colocar a LGPD sob responsabilidade da CGU (Controladoria Geral da União), que monitora a LAI na administração pública federal, o que faz com que a lei seja aplicada mais pelo aspecto da privacidade do que da transparência.

A LGPD é de responsabilidade da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que tem seus diretores nomeados pelo Executivo.

"O problema com populistas em geral, não somente Bolsonaro, mas [o ex-presidente dos EUA Donald] Trump, entre outros, é que eles não gostam de transparência que constranja a sua própria atuação", diz Michener, que também afirma que é preciso reconhecer avanços na gestão Bolsonaro, como submeter as entidades do Sistema S, como Sesc, Sesi e Senai, à LAI.

Para a gerente de projetos da ONG Transparência Brasil, Marina Atoji, o governo vem se notabilizando por dificultar o acesso a informações de interesse público, seja pela aplicação de sigilos, usando a LAI contra ela mesma, ou por meio de decretos.

Só neste ano, o sigilo foi aplicado para impedir o acesso a informações sobre os estoques do Ministério da Saúde, as visitas dos filhos do presidente ao Planalto e a viagem de Bolsonaro à Rússia, em fevereiro.

"Em todos os governos é possível apontar casos em que a LAI foi de alguma forma desobedecida, mas no governo atual a gente vê um movimento de ataque. Uma forma ativa e constante de tentar minar o acesso à informação", afirma Marina.

Em junho de 2020, quando o governo federal ameaçou restringir o acesso aos números da pandemia de Covid-19, veículos de comunicação, entre eles a Folha, formaram um consórcio para garantir a divulgação dos dados.

O projeto reuniu mais de 200 pessoas desde o seu início e cerca de 20 jornalistas de seis empresas trabalham diariamente na coleta de informações das 26 secretarias de saúde estaduais e do Distrito Federal.

"O jornalismo reagiu, somou forças e vem trabalhando desde então para que não falte aos brasileiros o relato fiel e preciso sobre a pandemia", afirma Flávia Faria, editora do Deltafolha.

Assim como o consórcio, especialistas destacam que a fiscalização do poder feita pelo jornalismo profissional e o trabalho de agências de checagem e de comunicadores em municípios de cidades pequenas é essencial para a democracia.

Denise Dora, da Artigo 19, cita o exemplo do consórcio de mídias comunitárias, com grupos que traduziram informações sobre vacinação contra Covid para línguas dos povos originários, combatendo falas do presidente contra o imunizante.

"Teve uma mobilização de reação desde a mídia profissional nacional até a comunicação popular que não permitiu que a estratégia do governo tivesse sucesso", afirma.

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