Bolsonaro atropela lei com farra de distribuição de bens e serviços em ano eleitoral

Gratuitas ou em troca de produtos como mandioca, doações oficiais desequilibram disputa entre candidatos pelo país

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São Paulo

De graça ou em troca de mandioca, ovos ou peixes, o governo Jair Bolsonaro (PL) distribuiu milhares de equipamentos, máquinas, veículos e serviços no ano das eleições, violando a lei eleitoral e a Constituição, ao desequilibrar a disputa entre os candidatos pelo país.

A Folha analisou dezenas de documentos de doações e encontrou desde casos mais flagrantes de violação à legislação até situações em que as bondades com o dinheiro público acabam beneficiando indiretamente pessoas previamente escolhidas e indicadas com nome e CPF.

Só na Bahia, em 2022, a estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) entregou mais de 5.000 caixas d’água a entidades e associações apadrinhadas por políticos autores de emendas parlamentares.

Veículos e máquinas agrícolas armazenados em terreno de campus de universidade federal em Mossoró (RN)
Veículos e máquinas agrícolas armazenados em terreno de campus de universidade federal em Mossoró (RN) - Jair Molina Jr

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmaram que as entregas ilegais e inconstitucionais podem desestabilizar o jogo eleitoral, e os políticos favorecidos, ter a candidatura ou o mandato cassados.

A legislação impede a distribuição gratuita de bens e de serviços nos anos eleitorais, exceto nas situações de emergência ou de programas sociais em andamento. A realização das doações está turbinada por bilhões de reais recebidos pela Codevasf por meio de emendas de relator no governo Bolsonaro, repartidas por critérios políticos e que permitem a congressistas mais influentes abastecer seus redutos eleitorais.

Só neste ano, os empenhos em equipamentos pela estatal já beiram R$ 300 milhões, mais do que todo o valor empenhado de 2010 a 2018, antes da era Bolsonaro. Em 2021, o total foi de R$ 942 milhões.

Ao analisar as distribuições, a Folha encontrou situações em que as doações foram gratuitas e por isso descumpriram a lei eleitoral. Nesses casos também chamam a atenção o fato de a Codevasf ter se voltado a entidades assistenciais, apesar de sua vocação histórica ser a de desenvolver projetos de irrigação no semiárido brasileiro.

Em Sergipe, apesar de ser beneficente, uma instituição do município de Carira (112 km de Aracaju) ganhou uma máquina pesada e implementos agrícolas cujos valores somam R$ 710 mil.

A Associação Beneficente Aroaldo Chagas recebeu uma pá carregadeira, dois tratores, três grades, duas plantadeiras e um subsolador em março e formalmente não deu nenhuma contrapartida.

O presidente da entidade é o político Arodoaldo Chagas, conhecido como Negão, que foi prefeito de Carira por duas vezes. O pai, a mãe e a mulher dele também já foram prefeitos do município.

Em Minas Gerais, a Codevasf realizou um serviço de perfuração de poço e entregou um reservatório, uma bomba e um quadro de comando para o Asilo São Vicente de Paulo, em Jaíba (721 km de Belo Horizonte). Neste caso, também nenhum encargo foi previsto.

As doações desse tipo acabaram destoando de uma estratégia adotada pelo governo para burlar a lei eleitoral em 2022. Como a Folha mostrou, um projeto de iniciativa do Planalto na Câmara inseriu na legislação um artigo que autoriza a entrega de bens pelo poder público, nos anos de eleições, desde que o beneficiado dê uma contrapartida.

Em paralelo, em 2022 a Codevasf passou a incluir nos documentos de doação uma cláusula criando uma obrigação para quem recebe, o que coincide com o "encargo" previsto no novo texto legal.

Assim, a documentação das doações estabeleceu que associações ou entidades favorecidas devem pagar ou fazer algo em troca, como entregar mandioca, peixes ou ovos a instituições assistenciais.

Há casos em que é exigido o pagamento de apenas 1% do valor do veículo, máquina ou equipamento.

No Rio Grande do Norte, uma associação de pecuaristas recebeu em março um caminhão no valor de R$ 200 mil da estatal, inicialmente sem dar qualquer contrapartida ao poder público. Posteriormente, a estatal adicionou uma contrapartida, mas de somente cerca de R$ 3.000, ou seja, 1,5% do valor do bem.

A beneficiada é a Associação Norte-Rio-Grandense de Criadores (Anorc), cujo site destaca a realização da Festa do Boi em Parnamirim (RN) em outubro. Segundo o site, a associação possui "uma das melhores e mais completas estruturas para promoção de feiras e exposições".

Nas redes, a entidade agradece ao deputado federal Benes Leocádio (União-RN) e ao ex-ministro do Desenvolvimento Regional Rogério Marinho (PL-RN), candidato bolsonarista a senador, porque os dois "fizeram com que esse presente chegasse num momento tão importante".

Nas imagens, o caminhão já aparece com o adesivo comemorativo dos 60 anos da Festa do Boi.

Com reduto no estado, um dos senadores que se opôs à regra que permitiu doação em ano eleitoral, Jean Paul Prates (PT-RN), diz que a mudança abriu espaço para se fazer benesses ao distribuir equipamentos com critérios subjetivos e pouco transparentes.

"Montaram um esquemão de doações para repassar equipamento público. Isso é uma quebra total da ordem legal das coisas. Se a moda pega, qualquer entidade vai sair comprando coisas e entregando para entidades privadas", diz Prates.

No caso do Rio Grande do Norte, ele cita que a situação é potencialmente mais delicada por envolver um ex-ministro que é candidato e poderia ser beneficiado eleitoralmente. Anteriormente, o ex-ministro já negou à Folha ter interferência na estrutura da Codevasf e disse que seu estado não foi favorecido.

No Tocantins, há casos de distribuição que têm como encargo a prestação de serviços de preparo da terra para pessoas indicadas previamente.

Em Alvorada (303 km de Palmas), a contrapartida a ser dada por uma entidade, em troca de um trator de R$ 170 mil, foram 20 horas de preparação do solo, "beneficiando igualmente quatro diferentes propriedades relacionadas às famílias previamente selecionadas". Os nomes e os CPFs dos favorecidos constam expressamente na documentação.

O ex-diretor da Faculdade de Direito da USP e advogado Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto afirma que as doações da Codevasf com os "encargos'' em 2022 são inconstitucionais.

"O objetivo da lei eleitoral é garantir a isonomia entre candidatos, pois quem está no poder tem recursos que o desafiante não tem. A lei também busca impedir que a escolha do eleitor seja influenciada pelo benefício que recebe, ou seja, tenta evitar a compra de votos."

Para Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional Brasil, a prática das distribuições pela Codevasf em ano eleitoral "feudaliza o poder".

"Quem está lá tem recursos absolutamente desproporcionais e ilegais para se manter no poder, o que prejudica ainda mais a democracia", diz.

Michael Freitas Mohallem, advogado especialista em processo legislativo e anticorrupção, diz que o "encargo" nas doações "parece ter sido inserido para que não ficasse ainda mais escandalosa a abertura de exceção a uma importante regra que impede em parte que recursos públicos sejam utilizados com orientação política".

Já tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade para declarar a inconstitucionalidade da lei relativa ao "encargo". O PT também fez uma denúncia ao TCU (Tribunal de Contas da União) cobrando investigação do assunto.

Codevasf diz que doações estão em sua linha de atuação

Procurada, a Codevasf afirmou que as doações não violam a lei. No caso da Anorc, a estatal afirmou que a doação está alinhada a sua missão de promover o desenvolvimento regional".

"O bem poderá ser empregado na limpeza de áreas rurais, no apoio à produção agropecuária e no suporte a eventos que movimentam a economia local com participação de produtores de pequeno, médio e grande portes".

No caso da Associação Beneficente Aroaldo Chagas, a Codevasf diz que enviou à entidade documentos para recolhimentos de encargos e que os bens deverão ser empregados em apoio a pequenos agricultores. Sobre a perfuração de poço ao asilo em MG, a entidade afirma que "providências estão sendo tomadas" para o recolhimento de encargo e que se trata de ampliar a segurança hídrica.

A respeito das doações no Tocantins, que citam como contrapartida o preparo da terra, a entidade também negou irregularidades e disse que os encargos podem estar "relacionados a prestação de serviços, a ações comunitárias, a benefícios à comunidade".

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