Para defender a democracia, o Judiciário está indo longe demais?

Judicialização das eleições em momento de instabilidade pode ajudar movimento antidemocrático

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Jack Nicas André Spigariol
Rio de Janeiro | The New York Times

O grupo no WhatsApp funcionava como uma espécie de vestiário digital para dezenas dos maiores empresários brasileiros. Havia um magnata dono de shopping centers, o fundador de uma marca de roupas de surfe e um bilionário dono de lojas de departamento. Eles reclamavam da inflação, trocavam memes e às vezes compartilhavam opiniões inflamatórias.

"Prefiro golpe do que a volta do PT", disse outro dono de shopping, José Koury, em 31 de julho, aludindo ao partido de esquerda que lidera as pesquisas de opinião para a eleição presidencial. O dono de uma cadeia de restaurantes respondeu com uma GIF de um homem aplaudindo.

Dada a história do Brasil com ditadores e o medo generalizado de que o presidente Jair Bolsonaro se recuse a aceitar uma derrota nas urnas, foi um comentário preocupante.

Mas o que aconteceu a seguir talvez tenha sido ainda mais alarmante para a quarta maior democracia do planeta.

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Alexandre de Moraes, participa de reunião com o Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil em Brasília - Gabriela Biló - 26.set.22/Folhapress

Agentes federais invadiram as casas de oito dos empresários. As autoridades congelaram as contas bancárias deles, os intimaram a entregar seus registros financeiros, telefônicos e digitais e instruíram redes sociais a suspender algumas de suas contas.

A ordem partiu de um juiz do STF (Supremo Tribunal Federal), Alexandre de Moraes. A única evidência citada para embasá-la foram as mensagens do grupo de WhatsApp, que haviam sido vazadas para um jornalista. Nelas, apenas dois dos oito empresários haviam sugerido que apoiariam um golpe.

Foi uma demonstração muito clara de força judicial que veio coroar uma tendência que vem sendo formada há alguns anos: o STF ampliou seus poderes drasticamente para contrapor-se às posições antidemocráticas de Bolsonaro e seus seguidores.

Segundo especialistas em direito e governo, nesse processo o STF acabou enveredando por um rumo repressivo, ele próprio.

Moraes já colocou cinco pessoas na prisão sem julgamento por posts em redes sociais que ele diz que atacaram as instituições brasileiras. Ele ordenou às redes sociais a remoção de milhares de posts e vídeos, deixando pouca margem para apelações. E, este ano, dez dos 11 juízes do Supremo sentenciaram um deputado a quase nove anos de prisão por fazer o que disseram ter sido ameaças a eles durante uma live.

Especialistas legais dizem que a tomada de poder prejudica uma instituição democrática fundamental no maior país da América Latina no momento em que os eleitores se prepararam para escolher um presidente em 2 de outubro. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas há meses, enquanto Bolsonaro vem dizendo à população, sem qualquer evidência, que seus rivais estão tentando manipular a eleição.

Em muitos casos Moraes tem agido de modo unilateral, armado com os novos poderes que o STF se concedeu em 2019 e que em alguns casos lhe permitem atuar simultaneamente como investigador, promotor e juiz.

Dias Toffoli, o ministro do STF que criou esses poderes, disse em comunicado que o fez para proteger a democracia nacional: "O Brasil vive com o mesmo incitamento ao ódio que ceifou vidas na invasão do Capitólio americano, e as instituições democráticas precisam fazer todo o possível para evitar cenários como o 6 de janeiro de 2021, que chocou o mundo".

Lideranças políticas da esquerda e boa parte da imprensa e do público brasileiro têm em grande medida apoiado as ações de Moraes, vendo-as como medidas necessárias para se contrapor à ameaça singular representada por Bolsonaro.

Mas muitos especialistas em direito dizem que as próprias manifestações de força de Moraes, feitas em nome de salvar a democracia, ameaçam empurrar o país por um declive antidemocrático.

"É a história de todas as coisas ruins que acontecem na política", disse Luciano da Ros, professor brasileiro de ciência política que estuda a política do Judiciário. "No começo você tinha um problema. Agora tem dois."

Falando através de um porta-voz, Moraes se negou a comentar.

A crescente influência da corte pode ter severas consequências para o vencedor da eleição presidencial. Se Bolsonaro obtiver um segundo mandato, ele sugeriu que tentaria aparelhar o STF, dando a ele ainda mais controle sobre a sociedade brasileira. Se Lula vencer, ele teria que argumentar com ministros que poderiam complicar sua agenda para um país que enfrenta múltiplos desafios, incluindo fome crescente, desmatamento e profunda polarização.

"Historicamente, quando o Supremo se deu novos poderes, ele não disse depois que estava errado", diz Diego Werneck, um professor de Direito que estuda a corte. "Os poderes que são criados permanecem".

Se nenhum candidato receber mais de 50% dos votos na eleição do dia 2 de outubro, os dois primeiros terão um segundo turno no dia 30.

O STF já era uma instituição poderosa. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte julga entre 100 e 150 casos por ano. No Brasil, os 11 juízes do Supremo e os advogados que trabalham para eles emitiram 505 mil decisões nos últimos cinco anos.

Em 2019, alguns meses depois de Bolsonaro assumir o poder, um documento de uma página expandiu vastamente a autoridade do STF.

O Tribunal estava enfrentando ataques online de alguns seguidores de Bolsonaro. Normalmente, a polícia ou promotores teriam que abrir um inquérito para investigar tais atividades, mas não o haviam feito.

Então Dias Toffoli, o então presidente do STF, emitiu uma ordem autorizando o próprio STF a abrir uma investigação.

O tribunal investigaria as "fake news" –Toffoli usou o termo em inglês— que atacavam "a honradez" do tribunal e seus juízes.

Foi um papel inédito, transformando o tribunal em alguns casos em acusador e juiz, segundo Marco Aurélio Mello, ex-ministro do Supremo que no ano passado atingiu a idade de aposentadoria compulsória de 75 anos.

Mello, que é apoiador de Bolsonaro, acreditava que o tribunal estava violando a Constituição para resolver um problema. "No Direito, os meios justificam os fins, não o contrário", acrescentou.

Antonio Cezar Peluso, outro ex-juiz da Suprema Corte, discordou. As autoridades, disse ele, estavam permitindo a proliferação de ameaças. "Não posso esperar que o tribunal fique quieto", disse ele. "Tinha que agir."

Para comandar a investigação, Toffoli convidou Moraes, 53 anos, ex-ministro da Justiça e professor de direito constitucional que ingressara no STF em 2017.

Em seu primeiro ato, Moraes ordenou que uma revista brasileira, Crusoé, removesse um artigo online que apontava ligações entre Toffoli e uma investigação sobre corrupção. Moraes qualificou o artigo como "fake news".

O advogado André Marsiglia, que representava a Crusoé, considerou a decisão espantosa. O STF havia frequentemente protegido organizações de imprensa contra decisões semelhantes de tribunais de instâncias inferiores. Agora, disse ele, era o STF quem estava praticando a censura. "Não tínhamos a quem recorrer."

Moraes suspendeu a ordem mais tarde, após documentos legais comprovarem que o artigo estava correto.

Com o tempo, Moraes abriu novas investigações e reenquadrou seu trabalho em torno da proteção da democracia brasileira. Bolsonaro estava aumentando os ataques aos juízes, à mídia e ao sistema eleitoral do país.

Moraes ordenou que as principais redes sociais removessem dezenas de contas, apagando milhares de suas postagens, muitas vezes sem dar um motivo, de acordo com um funcionário de uma empresa de tecnologia que falou sob condição de anonimato, para evitar provocar o juiz. Quando a empresa de tecnologia desse funcionário revisou as postagens e contas que Moraes ordenou que ela removesse, descobriu que grande parte do conteúdo não violava suas regras, disse o funcionário.

Em muitos casos, Moraes foi atrás de influenciadores de direita que disseminaram informações enganosas ou falsas. Mas também foi atrás de pessoas de esquerda. Quando a conta oficial do Partido Comunista Brasileiro chamou Moraes de "skinhead" no Twitter e disse que o STF deveria ser dissolvido, Moraes ordenou que empresas de tecnologia suspendessem todas as contas do partido, incluindo um canal no YouTube com mais de 110 mil assinantes. As empresas obedeceram.

Moraes foi ainda mais longe. Em sete casos, ele ordenou a prisão de ativistas de extrema-direita sob a acusação de ameaçar a democracia por defenderam um golpe ou convocarem pessoas para atos públicos antidemocráticos. Pelo menos dois deles ainda estão detidos ou em prisão domiciliar. Alguns dos processos foram abertos pelo Ministério Público Federal, outros pelo próprio Alexandre de Moraes.

Em sua investigação, o tribunal descobriu evidências de que extremistas de direita discutiram ataques a ministros, estavam rastreando os movimentos dos magistrados e compartilharam um mapa de um prédio do tribunal, de acordo com um funcionário do STF que falou sob condição de anonimato porque as descobertas são parte de uma investigação sigilosa.

No caso de maior repercussão, Moraes ordenou a prisão de um congressista conservador depois que ele criticou Moraes e outros juízes em uma transmissão ao vivo online. "Tantas vezes eu imaginei você levando uma surra na rua", disse o deputado Daniel Silveira na transmissão ao vivo. "O que você vai dizer? Que estou incitando a violência?"

O STF votou por 10 a 1 para condenar Silveira a quase nove anos de prisão por incitar um golpe. Bolsonaro o perdoou no dia seguinte.

Com a maioria do Congresso, os militares e o Executivo apoiando o presidente, pode-se dizer que Moraes tornou-se o mais eficaz freio ao poder de Bolsonaro. Isso o converteu em herói da esquerda –e inimigo público número 1 da direita.

Bolsonaro tem vituperado contra ele em discursos, tentou, mas não conseguiu que ele fosse afastado e depois disse a seus seguidores que não respeitaria as decisões de Moraes (ele voltou atrás mais tarde nesse último ponto).

No mês passado, Moraes ganhou ainda mais poder, assumindo também a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, que fiscalizará a votação. (O momento foi uma coincidência.)

Em sua posse, o Moraes parecia falar diretamente com o Bolsonaro, que estava sentado nas proximidades. "Liberdade de expressão não é liberdade para destruir a democracia, para destruir instituições", disse Moraes, enquanto Bolsonaro franzia a testa.

As tensões entre os dois homens cresceram com o caso do grupo de WhatsApp dos empresários.

Bolsonaro criticou asperamente a ordem de Moraes, que em parte aprovou um pedido da polícia para realizar buscas nas residências dos membros do grupo. Em um momento incomum, a grande imprensa brasileira tomou o partido do presidente. "Trocar mensagens, meras opiniões sem ação, mesmo que as opiniões sejam contra a democracia, não constitui crime", disse a emissora Band em editorial.

Criticado, o gabinete de Moraes apresentou um documento legal adicional que disse fornecer mais evidências da ameaça potencial representada pelos homens. O documento reiterou ligações já públicas que alguns dos empresários tinham com agentes de direita.

Moraes descongelou as contas bancárias dos empresários mais tarde, e eles não chegaram a ser presos.

Luciano Hang, o magnata das lojas de departamento, disse que estava lutando para recuperar o controle de suas contas de mídia social, que coletivamente tinham pelo menos 6 milhões de seguidores. "Nós nos sentimos violados por ter a Polícia Federal aparecendo às 6 da manhã querendo pegar seu telefone", disse ele.

Lindôra Araújo, a vice-procuradora-geral da República e promotora de carreira, recorreu contra a ordem de Moraes contra os empresários, dizendo que o juiz cometeu abuso de poder, atacando-os por terem simplesmente expressado opiniões num chat privado. Segundo ela, a ordem de Moraes lembra "uma espécie de polícia do pensamento que é característica de regimes autoritários".

O recurso chegou a Moraes, que o rejeitou.

Tradução de Clara Allain

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