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Rubens Glezer

Brasil vai decidir entre os projetos de 1988, com Lula, e o de 2018, com Bolsonaro

Não se trata de uma disputa entre Estado forte e Estado mínimo, mas sobre intervir ou ser neutro para coisas diferentes

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Rubens Glezer

Professor de direito constitucional da FGV Direito SP e coordenador do Supremo em Pauta

Nossos opositores parecem irracionais e desejam algo que não conseguimos compreender. Eles não compartilham de nossos valores e já não há acordo sequer sobre fatos.

Há quem tente explicar tanta diferença supondo que o voto no candidato à Presidência adversário é fruto, necessariamente, de cegueira ou manipulação. Porém, neste artigo há um esforço caridoso de identificar o que existe de mais democrático e valioso em cada um desses projetos.

O que opõe as pessoas democratas e de boa-fé para votarem em candidatos distintos? São dois projetos de sociedade muito diferentes: o de 1988 e o de 2018.

Esses projetos pensam o papel do Estado de maneira muito distinta. No projeto de 1988, o Estado possui o papel essencial de garantir que as diferenças positivas (de cultura, valores e modo de vida) sejam respeitadas, enquanto as diferenciações negativas (que barram igualdade de oportunidades e dignidade) sejam combatidas. Por isso, nele é tão importante a preservação das terras indígenas e do seu modo tradicional de vida.

No projeto de 2018, o Estado é um promotor de valores majoritários. Sob essa ótica, as terras indígenas devem ser extintas, e a população, assimilada ao modo de vida majoritário, para se tornarem "como todo mundo".

Juiz eleitoral defende o direito de votar em branco ou anular o voto
Urna eletrônica - Abdias Pinheiro/Secom/TSE - Divulgação

Não se trata de uma disputa entre Estado forte e Estado mínimo; mas sobre intervir ou ser neutro para coisas diferentes.

No projeto de 1988, o Estado deve ser neutro para não interferir em relação às liberdades individuais para traçar projetos de vida. Há uma defesa enfática da laicidade e dos direitos da comunidade LGBT+, além de fomento à arte diversa; são formas de proteger pluralidades de crença e modos de vida.

Nesse âmbito, no projeto de 2018, o Estado deve intervir para ser garantido o espaço para os valores das religiões majoritárias nos espaços públicos. Por isso promove, por exemplo, controle sobre o conteúdo da produção artística e cultural fomentada com dinheiro público. Nesse projeto, é importante controlar e censurar peças de campanha publicitária de estatais ou a fala de professores em escolas públicas, em nome da proteção desses valores morais majoritários.

No projeto de 1988, o Estado deve intervir na promoção da igualdade necessária para o exercício das liberdades individuais. Nesse projeto, o Estado tem largos deveres para a promoção de saúde, educação, cultura, segurança pública, bem como na proteção do meio ambiente.

No projeto de 2018, o Estado deve ser neutro nesses campos, para que a desigualdade seja tratada de acordo com a liberdade dos indivíduos; é a iniciativa privada e a lógica de mercado que selecionam o que será promovido, protegido e a quem será concedido. Dessa forma, a segurança pública se resolve com maior acesso a armas, e o acesso à educação, com mais empresas de educação privada.

A eleição presidencial deste ano é uma escolha entre esses dois projetos de sociedade. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) representa um compromisso com o projeto de 1988, e a eleição de Jair Bolsonaro (PL) representa o endosso ao projeto de 2018.

É evidente que, até hoje, nenhum desses projetos foi posto em prática de maneira integral. Tanto Lula como Bolsonaro, em seus governos, sacrificaram valores desses projetos em nome de valores e interesses de conjuntura. Mas os projetos norteiam o país para rumos completamente distintos.

O projeto de sociedade proposto em 1988 é comprometido com a ambiguidade da sociedade brasileira. Ele reconhece a amplitude da diferença de nossos interesses e necessidades e tenta contemplar a todos eles na medida do possível.

O projeto de sociedade proposto em 2018 visa forjar uma unidade na sociedade brasileira. Todos os grupos devem receber o mesmo tratamento, e as minorias devem ser incorporadas aos valores e modos de vida das maiorias.

No projeto de 1988, a vitória não é completa e a derrota não é acachapante. Quem vence as eleições tem que barganhar e negociar com diferentes setores relevantes, sem conseguir promover mudanças drásticas.

No projeto de 2018, a vitória é completa, e a derrota, destrutiva: quem perde as eleições sabe que não terá voz ou vez até ganhar. Cada indivíduo e grupo tem que escolher se integrar à maioria da ocasião ou cair em desgraça.

Porém, o projeto de 2018 é sedutor para muitos, porque é capaz de oferecer a diferentes grupos a promessa de que ele é a maioria que será respeitada. Mas não há unidade real entre as bases militares, financeiras, industriais e religiosas que aderem a esse projeto. Uma, ou algumas, serão tidas como "traidoras da pátria". Quem adere ao projeto de 2018 deve ser capaz de confiar que a unidade prevalecente no governo será a de seu grupo (dentre os outros que o apoiam) ou não calcula a gravidade de ser derrotado nesse modelo majoritário.

O projeto de 1988 é sedutor para muitos, pela promessa de construir uma sociedade com mais liberdade e igualdade para todos. Porém, não há recursos e nem compatibilidade entre muitos desses projetos. Nenhum grupo se sentirá plenamente satisfeito. Quem adere ao projeto de 1988 deve ser capaz de aceitar que as suas conquistas individuais e coletivas serão lentas e progressivas, sem grandes mudanças, rupturas ou revoluções. É um projeto de concessões mútuas, no qual nenhum lado se sente totalmente vencedor, mas no qual todos sabem que não perderam o que possuem de mais importante.

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