Modelo frouxo de licitação da Codevasf leva a desvios e deve acabar, diz TCU

Brechas permitiram superfaturamentos em pavimentações da estatal que é cobiçada por partidos na transição de Lula

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São Paulo e Brasília

Uma fiscalização do TCU (Tribunal de Contas da União) mostra que o modelo afrouxado de licitações de pavimentação usado em larga escala pela estatal Codevasf no governo Jair Bolsonaro possui falhas graves e foi usado para desvios, superfaturamentos e outras ilegalidades.

Ao final do trabalho, os auditores recomendam que essas concorrências públicas flexibilizadas não sejam mais utilizadas pela estatal.

Se a orientação dos técnicos for seguida, poderá ruir um dos pilares de uma estratégia que transformou a Codevasf em um emendoduto na atual gestão e fez com que a estatal seja uma das fontes de cargos mais cobiçadas na fase de transição para o governo Lula.

Obra da Codevasf no município de Sítio Novo do Tocantins (TO), que ficou parada por mais de um mês
Obra da Codevasf no município de Sítio Novo do Tocantins (TO), que ficou parada por mais de um mês - Adriano Vizoni - 30.mar.22/Folhapress

No dia 1º, integrantes da equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirmaram que o recurso do Ministério do Desenvolvimento Regional, ao qual a Codevasf é vinculado, foi drenado pelas emendas parlamentes e tem abastecido ações que não são prioritárias, como pavimentações.

"Não pode pulverizar em asfalto quando não tem Defesa Civil. Não pode jogar recurso em pequenas obras, quando não tem Operação Carro-Pipa ou oferta de água, abastecimento de grandes cidades", disse o coordenador dos grupos técnicos da transição de governo, Aloizio Mercadante (PT).

Na fiscalização do TCU, os auditores mostraram que as brechas incluem a regra de que as obras de pavimentação podem ser orçadas como se fossem um serviço de colocação de piso em uma casa, com a cobrança por metro quadrado, além do uso de projetos padrão fictícios que servem tanto para ruas de cidades de Mato Grosso como de Sergipe.

Nesse mesmo processo do TCU, a fiscalização já constatou que três empreiteiras maranhenses suspeitas de participação em cartel ou corrupção em licitações de pavimentação da estatal Codevasf desviaram dinheiro público ao cobrar até pela construção de sarjetas que nunca saíram do papel, como revelado pela Folha.

Na prática, essas características encontradas em uma amostra de 23 contratos levaram os auditores a concluir que "esse contexto levou a irregularidades ao longo da execução dos objetos analisados, como superfaturamento e contratação de serviços desnecessários".

Procurada pela Folha, a Codevasf disse que suas licitações observam a lei e as conclusões da auditoria estão sendo analisadas.

Enquanto tramitam vários processos sobre a Codevasf no TCU, a estatal federal está na pauta da equipe de transição de Lula.

Há no grupo de transição a leitura de que o governo Bolsonaro e o Congresso mudaram a vocação da estatal, que se tornou executora de obras de pavimentação e distribuidora de veículos, máquinas e produtos a redutos de padrinhos de emendas parlamentares.

A finalidade original da Codevasf é a de promover projetos de irrigação e segurança hídrica no semiárido brasileiro.

A equipe de transição quer redefinir o escopo e retomar o controle do orçamento da companhia, hoje nas mãos do Congresso por meio das emendas, principalmente as de relator.

Parte da análise do grupo sobre a estatal é baseada em relatórios do TCU.

A equipe de Lula ainda não definiu qual grupo político assumirá o comando da Codevasf. Além da direção central, em Brasília, a estatal tem 12 superintendências instaladas em 11 estados.

A auditoria mais recente do TCU revelou situações como o uso do mesmo preço de obras aplicado em Goiás e Mato Grosso, onde não há usinas produtoras dos materiais de pavimentação, para estados do Nordeste, que ficam próximos desse tipo de fornecedoras.

Isso leva a distorções nos preços do transporte dos insumos, por exemplo.

O relatório da fiscalização foi concluído um ano e meio após os ministros do TCU, que chegam ao tribunal por indicação política, terem dado aval ao modelo afrouxado, contrariando a avaliação do corpo técnico do órgão, que em maio de 2021 já apontava vários riscos de ilegalidades.

No atual sistema de obras de pavimentação da Codevasf, a aquisição dos serviços acontece por meio de uma forma simplificada de licitação, o pregão eletrônico, que ocorre online. Ele leva aos chamados contratos guarda-chuvas, que têm validade para toda a extensão de estados e regiões.

O contrato guarda-chuva, no jargão técnico, é denominado Sistema de Registro de Preços (SRP) ou ata de registro de preços.

A justificativa dos ministros e da Codevasf é a de que o mecanismo afrouxado permite dar vazão ao enorme volume de recursos de emendas parlamentares direcionado à Codevasf no governo Bolsonaro e atende ao interesse social por permitir a pavimentação em localidades de baixa renda principalmente na área rural.

Os ministros admitem riscos de irregularidades, mas alegam que um bom monitoramento das obras permite evitar ilegalidades e aprimorar o método.

O que a mais recente fiscalização mostra é que na prática isso não ocorre, já que as premissas técnicas do modelo simplificado não se confirmam na vida real.

A primeira delas é a de que as obras de pavimentação podem ser orçadas por metro quadrado.

"A área de pavimentação em todas as situações analisadas nem é medida e nem paga por m², sendo mensurada e faturada por um conjunto de diversos serviços, cada qual com as respectivas unidades de medida (toneladas, tonelada x Km, m² de imprimação, metros lineares, etc.)", segundo a fiscalização.

Outra base do sistema afrouxado que foi atacada pela auditoria é a de que as obras de pavimentação são serviços de engenharia simples, que podem ser padronizados conforme modelos fictícios.

De acordo com os técnicos do TCU, os documentos padronizados "não possuem a precisão necessária e adequada para caracterizar os serviços que serão realizados".

A fiscalização ainda apontou que parte dos serviços previstos nas licitações acabaram não sendo executados na prática.

O problema é que, ao exigir nas concorrências itens que não são construídos, ocorre restrição à competitividade, uma vez que empresas podem desistir exatamente em razão desses serviços.

"Em função do que foi apresentado, recomenda-se que a Codevasf deixe de contratar obras de pavimentação asfáltica mediante a utilização do Sistema de Registro de Preços", conclui a auditoria.

Codevasf diz que licitações seguem a lei e proporcionam economia

A Codevasf afirmou em nota que suas licitações observam a lei e "proporcionam economia à execução de ações e projetos de desenvolvimento regional".

Segundo a nota, a estatal só paga por serviços efetivamente prestados e as conclusões da auditoria do TCU estão sob análise internamente e serão respondidas.

"A amostra avaliada pelo TCU refere-se a procedimentos licitatórios de 2018 e 2019. A Codevasf sempre observa apontamentos e recomendações dos órgãos de fiscalização e controle e tem continuamente aprimorado os procedimentos e controles da empresa", completou.

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