MP de Lula sobre redes sociais deve parar no STF e posição de Rosa pode ser entrave

Ministra suspendeu medida provisória de Bolsonaro sobre o tema; contexto político do 8 de janeiro, porém, pode ter impacto

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São Paulo

O governo Lula (PT) pode enfrentar judicialização caso envie ao Congresso sua proposta com regras para as redes sociais via MP (medida provisória), assim como ocorreu com uma medida do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) às vésperas do 7 de Setembro de 2021.

Em primeiro lugar, o Executivo terá de comprovar a urgência em regular golpismo nas redes para justificar o uso de uma MP –os ataques de 8 de janeiro podem facilitar essa argumentação.

Em segundo, o governo pode enfrentar obstáculos devido à temática do texto. Decisão liminar da ministra Rosa Weber, em 2021, argumentava em linhas gerais que regras como de moderação de conteúdo não poderiam ser tratadas por medida provisória.

Não houve, porém, decisão do plenário à época –considerou-se que não havia mais o que se discutir na corte depois de o presidente do Senado ter devolvido a MP a Bolsonaro.

Plenário do STF
Plenário do Supremo Tribunal Federal - Carlos Moura-7.dez.22/Divulgação STF

Considerando os atos de 8 de janeiro e a disposição de ministros da corte sobre o tema, contudo, é possível que a conformação do STF (Supremo Tribunal Federal) agora seja diferente.

A proposta de Bolsonaro visava impedir a moderação de conteúdo pelas empresas, enquanto a de Lula pretende obrigá-las a combater conteúdo que atente contra o Estado democrático de Direito.

A depender do relator sorteado, pode ser que eventual pedido de suspensão seja negado. O ministro do STF Alexandre de Moraes, por exemplo, já se mostrou favorável a impor mais obrigações às big techs.

No fim de janeiro, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que sua pasta elaborou uma proposta para coibir conteúdo golpista nas redes sociais via MP, na esteira dos ataques bolsonaristas às sedes dos três Poderes. O formato vem sendo criticado por entidades da sociedade civil e especialistas.

A proposta ainda está em análise em outros órgãos do governo, que ainda não divulgou uma minuta ou sinalização do que deve enviar para o Congresso. Na transição de governo, debateu-se a necessidade de uma consulta pública para iniciar um processo de regulação ampla das plataformas.

Medidas provisórias passam a valer assim que assinadas pelo Executivo. O Congresso tem até 120 dias para apreciá-las, podendo então convertê-las em lei. Se não for analisada no período, ela caduca.

Regras de 2002 buscaram limitar esse poder da Presidência. Um dos requisitos é que o tema de uma MP tenha urgência e relevância. Além disso, o artigo 62 da Constituição determina que o governo não pode assinar uma medida provisória em temas como nacionalidade, cidadania, partidos políticos, direito eleitoral, político e penal.

Para Nathalie Fragoso, advogada especialista em proteção de dados e privacidade, se o governo optar por MP, a tendência é que sua constitucionalidade seja questionada, em especial caso ela possa ser interpretada como tratando de um desses temas vedados.

"Nos últimos anos, há julgados da corte que interpretam ‘cidadania’ como conceito normativo indissociável do regime de direitos e garantias constitucionais", afirma.

Relatora de ações contra a MP de Bolsonaro que visava mudar regras das redes sociais, Rosa empregou diferentes argumentos para suspendê-la. Além da falta de urgência e relevância, ela considerou que o texto tratava sobre cidadania.

A ministra também considerou que uma outra restrição da Constituição ao poder do presidente, prevista no artigo 68 e que cita explicitamente direitos individuais, também se aplicaria às MPs.

"O que ela falou ali tornaria inconstitucional a tentativa de falar daqueles mesmos temas, ainda que de forma diferente", afirma Diego Werneck, professor de direito do Insper.

"Ela adota uma concepção muito ampla do que é cidadania. Ela vai dizer que direitos fundamentais em geral estão ligados ao exercício da cidadania –liberdade de expressão, certamente– e que então isso não poderia ser regulado por MP."

Werneck tem ressalvas à argumentação utilizada pela ministra, que considera muito expansiva, e avalia que não está claro que essa seria a posição do plenário. Além disso, não descarta que a própria ministra possa revisitar sua argumentação fazendo algum tipo de distinção.

Ele avalia que há uma mudança na conjuntura política, entre a decisão sobre Bolsonaro e sobre uma eventual MP de Lula, que pode ter impacto na análise da corte.

De um lado, um cenário de maior normalidade institucional, o que recomendaria contenção. De outro, o 8 de janeiro, que poderia levar o Supremo a considerar que há urgência que justifique a MP.

"É urgente a ponto de não poder ser feito por um projeto de lei? Acho que essa é uma pergunta válida e eu acho que ela não tem resposta fácil no contexto atual", diz Werneck.

Entidades como OAB-SP, o Instituto Vladimir Herzog e a Coalizão Direitos na Rede divulgaram notas defendendo a necessidade de discussão.

"Há grande preocupação sobre os riscos representados por respostas inadequadas provindas de um processo unilateral, pouco participativo e apressado, com efeitos potencialmente negativos para a estrutura de direitos digitais no Brasil", diz a seccional paulista da OAB, acrescentando que a experiência com leis de emergência "é reconhecida e negativa".

A nota é assinada pela presidente da OAB-SP, Patricia Vanzolini, e pelo advogado Ronaldo Lemos, presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação e colunista da Folha.

O Instituto Vladimir Herzog diz que "não há dúvidas de que a atuação das plataformas digitais precisa ser regulamentada".

Mas contemporiza: "Por se tratar de um tema tão complexo e delicado, as soluções propostas devem sim ser céleres e concretas, mas precisam obrigatoriamente ser estruturais; e não apenas atender demandas momentâneas".

A Coalizão Direitos na Rede defende que matérias como a que está sendo aventada pelo Ministério da Justiça sejam discutidas com a participação dos diferentes setores atingidos e interessados.

Além disso, aponta que soluções apressadas, "mesmo que a partir de boas intenções, podem ter efeitos problemáticos sobre a internet brasileira, a circulação de informações online no país e a democracia que se visa proteger".


ENTENDA O QUE ESTÁ EM DEBATE

O que é a MP das redes sociais? Sob o impacto dos atos golpistas do 8 de janeiro, o Ministério da Justiça de Lula elaborou uma proposta de medida provisória que cria obrigações às plataformas de redes sociais para remoção de conteúdo ilegal sobre golpismo e terrorismo. Ainda sob análise do governo e sem texto divulgado, ela prevê que o descumprimento generalizado das obrigações geraria multa, conforme mostrou a Folha.

Quais os principais questionamentos até agora? Uma das críticas que têm sido feitas é justamente sobre a intenção de se apresentar a proposta via MP, que tem tramitação mais acelerada, no lugar de um projeto de lei. Além disso, também há críticas ao gasto de capital político para um projeto restrito a golpismo, deixando uma regulação ampla das plataformas —e que trate de desinformação— em segundo plano. O tema vem sendo debatido de forma intensa nos últimos dois anos no Congresso. Um terceiro ponto de divergência é o quanto o impacto dessas medidas no que hoje é estipulado pelo Marco Civil da Internet.

O que é o Marco Civil da Internet? O Marco Civil da Internet criou direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. O artigo 19 dessa lei isenta as plataformas digitais de responsabilidade civil por danos gerados pelo conteúdo postado por terceiros. Isso significa que elas só estão sujeitas a pagar uma indenização, por exemplo, depois de não atenderem uma ordem judicial de remoção. A constitucionalidade do artigo 19 é questionada em ação pendente de decisão no STF.

Qual a discussão sobre o artigo 19 dessa lei? A regra foi aprovada assim com a preocupação de assegurar a liberdade de expressão. Uma das justificativas é que as plataformas não seriam estimuladas a remover conteúdos legítimos com o receio de serem responsabilizadas. Por outro lado, críticos dizem que a regra teria gerado judicialização excessiva, além de não incentivar as empresas e combater conteúdo nocivo.

A proposta do governo impacta o Marco Civil? O entendimento é que, mesmo que o projeto do governo não altere o Marco Civil diretamente, a criação de obrigações às plataformas relacionadas à remoção de conteúdo ilegal impactaria o modelo atualmente vigente. Isso porque elas estariam sob pena de multas ou outras sanções mesmo sem terem desobedecido determinação de um juiz.

O Marco Civil resolve desinformação? Apesar de haver discordância sobre o artigo 19 e sobre leis envolvendo remoção de conteúdo, de modo geral, especialistas entendem que o Marco Civil sozinho não lida com problemas como desinformação e extremismo nas redes. Há muita divergência sobre o que fazer. Parte das propostas envolve uma regulação ampla das redes. Há também quem defenda a criação de um órgão regulador para monitorar o cumprimento de novas regras.

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