Descrição de chapéu Rio de Janeiro

'De um pingo fizeram um oceano', diz Sérgio Cabral sobre denúncias de corrupção

Livre após seis anos de prisão, ex-governador retoma estratégia de negar acusações e fala em uso de sobra de caixa dois; assista

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Rio de Janeiro

O cinza e o branco da prisão deram lugar a uma vista para o mar de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. O apartamento, porém, é simples, com uma sala apertada com um sofá, duas cadeiras e uma mesa pequena de quatro lugares. "Menos é mais", afirma Sérgio Cabral.

Depois de seis anos preso sob acusação de corrupção, o ex-governador afirma ter saído diferente da cadeia. Faz autocrítica por seu relacionamento próximo com empresários durante sua gestão (2007-2014) e a compra de joias. Defende uma vida austera, sem ostentação, seja para agentes públicos ou privados.

O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em seu apartamento no bairro de Copacabana, na zona sul do Rio - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Menos também é o que confessa após obter a liberdade.

Três anos depois de assumir ter liderado um esquema de corrupção e tentar se tornar um delator, ele retomou a versão de que o dinheiro ilegal que usou era fruto de sobras de caixa dois de campanha, e não de propina.

À pergunta sobre em que Cabral acreditar, ele responde: "É o Cabral que está aqui falando com você. É a verdade."

O ex-governador é acusado de cobrar 5% de propina em grandes obras e acumular US$ 100 milhões em contas no exterior em nome de doleiros. Cabral, agora, voltou a negar. "De um pingo fizeram um oceano. De uma situação, o juiz faz 35 processos sobre as minhas atitudes públicas, distorce tudo."

Ele atribui a confissão ao que chama de tortura de procuradores e do juiz Marcelo Bretas. "Me bota no pau de arara. Agora, não mexe com meu filho, meu irmão, minha mãe, as mães dos meus filhos. Eles fizeram isso de uma maneira fascista, nojenta e covarde."

Na semana passada, ele inaugurou uma conta no Instagram na qual pretende expor sua história e reflexões atuais. Diariamente também tem publicado vídeos na academia, hábito que adquiriu na prisão. "Tinha 105 kg [quando preso] e estou com 89 kg. Além de emagrecer, troquei massa gorda por magra."

Ele diz não ter planos de se candidatar (atualmente inviável em razão das condenações), mas se diz disponível para atuar como consultor de candidatos. "Quero estar nos bastidores."

Cabral responde a 36 ações penais sob acusação de organização criminosa, corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e peculato. Já foi condenado em 20 processos a penas que somam 375 anos, 8 meses e 29 dias de prisão. Tribunais superiores anularam outras condenações, o que pode se refletir nas sentenças ainda em vigor.

Como está esse retorno à liberdade? Tenho circulado em lugares fechados e abertos. Até pronto para um "hater", um sujeito agressivo cometer uma grosseria. Tomara que eu tenha o "fair play" do Cristiano Zanin [advogado de Lula] naquela situação do banheiro, [em] que deu um exemplo de educação e sobriedade. Mas até agora não houve. Ao contrário, muitas manifestações de carinho.

O [ex-presidente da OAB] Felipe Santa Cruz publicou uma foto ao seu lado e depois apagou. Por quê? Ele é um querido amigo. Me ligou muito feliz com a minha saída. Me chamou para encontrá-lo num restaurante e tirou uma foto. Depois parece que houve quem ligasse, pessoas com quem ele está aliado politicamente... Não quero entrar nesse detalhe. Mas pediram para ele tirar. Não me força a falar. [risos]

Por quê? Porque é um homem público importante e a gente não deve tirar a atenção dele. Precisa tocar a administração dele.

Foi o [prefeito] Eduardo Paes? É você que está dizendo. [risos]

Na legenda, Santa Cruz escreveu sobre "anos de injustiça". O sr. se sente injustiçado? Muito. De um pingo fizeram um oceano. De uma situação, o juiz Bretas faz 35 processos sobre as minhas atitudes públicas, distorce tudo, mente e confunde. Nunca superfaturei. É errado caixa dois? É errado. Mas os prestadores de serviços diziam nos bastidores: "Governador, é a primeira vez que a gente tem alguém aqui que não queira ser sócio nosso".

Mas eu cometi erros e tenho que enfrentá-los, como enfrentei. Fiquei seis anos preso injustamente diante das circunstâncias e do número de processos que essa pessoa inventou para mim.

O sr. ainda mantém interesse em ser delator? Nenhum, abomino delação. Em 2019, estava completamente arrasado. Família destruída, casamento acabado, filho perseguido. Já estava há quase três anos preso e fui manipulado. Graças a Deus o Supremo [Tribunal Federal] tornou ela inválida. Reitero aqui o pedido de desculpas às pessoas citadas. Eu não trago comigo o fardo dessa história.

A sua delação tinha 45 anexos. O sr. inventou 45 histórias? Eu não vou entrar nesses detalhes.

O sr. falou sobre o presidente Lula... Está anulado.

Mas que erros o sr. confessa? Estamos numa luta muito intensa para enfrentar esses processos, mostrar a ilegalidade e a incompetência do juiz. Não quero falar sobre isso enquanto anda. O próprio juiz Bretas está sob investigação do Conselho Nacional de Justiça.

O sr. sofreu alguma pressão dele? Vamos deixar o CNJ investigar, mas eu já fiz uma declaração registrada em cartório em que eu conto um episódio, passo a passo, da abordagem em que o juiz delegou ao seu parceiro, o advogado Nythalmar [Dias Filho], a ida a Bangu 8 para me fazer uma oferta de devolução de patrimônio barra [em troca de] decisão dele como consequência.

O método da 7ª Vara é fascista e ilegal. Os procuradores e o juiz abusaram muito dos seus poderes.

Quando a imprensa acha graça, quando artistas e celebridades começam a bater palma, editoriais e atos de apoio… É um cheque em branco. "Vai em frente, usa qualquer método." Esse clima contaminou todo o processo para a ousadia deliberada, arrogante e antidemocrática dessa turma da Lava Jato.

No governo, o sr. também se sentiu com um cheque em branco? Não, eu sempre fui controlado pela mídia, pelos Poderes e sobretudo pela democracia. Fui controlado pela população que me deu 70% de votos na reeleição.

"Ah, como é que pode esse cara que fez tudo isso…". Fez tudo isso o quê? Sete hospitais? 55 UPAs? Trouxe a Copa do Mundo e as Olimpíadas? Qual é o Sérgio Cabral de que vocês estão falando?

É possível separar o Cabral que fez obras do que, segundo as investigações, acumulou US$ 100 milhões no exterior? Está no meu nome? Eu tinha gente no caixa dois que me ajudava. O pai desses dois rapazes [os doleiros Renato e Marcelo Chebar] era casado com a minha secretária. Eles me ajudavam no dinheiro do caixa dois. Esses rapazes cuidaram de um monte de gente.

Essa posição é a que o sr. deu nos primeiros depoimentos. É a verdade. Porque quando começa a torturar a família, o buraco é um pouco mais embaixo. Se quiser me torturar, me bota no pau de arara. Agora, não mexe com meu filho, meu irmão, minha mãe, as mães dos meus filhos. Eles fizeram isso de uma maneira fascista, nojenta e covarde.

Quando o sr. confessou, disse: "Em nome da minha família, de Deus e da história, decidi falar a verdade". Em qual Cabral acreditar? É o Cabral que está aqui falando com você. Essa é a verdade.

Os US$ 100 milhões que os irmãos Chebar devolveram não são do sr.? Onde está escrito que é meu? Onde está documentado? Como é que alguém deixa US$ 100 milhões com outra pessoa e não tem um documento, uma "side letter". Eles não conseguiram comprovar.

Qual o seu plano hoje para o futuro? Não tenho pretensão política. Fui gestor por 30 anos. Pretendo seguir carreira de jornalista, consultor. Colaborar tanto na gestão privada quanto até mesmo em campanha.

Que conselho daria para o presidente Lula? Lula tem algumas oportunidades que aos 77 anos não pode desperdiçar. "Qual é o legado que eu vou entregar? Eu vou baixar os juros, aumentar a distribuição de renda, combater a miséria." Perfeito.

Já é muito, mas ele deve construir uma agenda comportamental. Discutir a legalização da maconha. É menos danosa do que a cachaça, o uísque.

Discutir a legalização dos jogos. "Ah, é um esquema para lavar dinheiro". Você lava dinheiro com boi, fazenda, comprando televisão, rádio, empresa fantasma, o que quiser.

Na prisão, viu algo que deveria ser diferente? Há um problema sério no Brasil para que o preso faça a remição da pena. Precisamos ampliar o cardápio de possibilidades. Se a gente colocar postos coletores de sangue nos presídios brasileiros e permitisse a doação, de forma voluntária, e abatesse [na pena], teríamos um jogo de ganha-ganha.

Algo na prisão que te surpreendeu? No meu governo inaugurei presídios. Mas não tinha noção nenhuma. Quando você entra na cadeia e fica atrás das grades, naquela claustrofobia, aquela aridez profunda... É muito duro, você vê de tudo. Gente que aguenta, que não aguenta, que se mata, que perde a família. Eu fiquei muito abatido. Cheguei a tomar uns comprimidos pesados, desmaiei.

Tentou se matar? Não. Mas estava muito triste, muito dopado.

Que tipo de autocrítica fez na cadeia sobre o seu comportamento no governo? Menos é mais. Não só como homem público, [para] qualquer pessoa. Vivemos num mundo muito injusto. Sempre vi na política o grande instrumento de mudança da vida das pessoas. Mas se você, pessoa física, não der o exemplo, não vale nada.

Fui à França receber no Senado a Legião de Honra. Quantos brasileiros têm? Aí vamos para um jantar oferecido por empresários, aquela festa, como se fosse um casamento, e aí alguns amigos põem o guardanapo na cabeça. Parece que eu estou no guardanapo, mas não estou. Mas não basta ser, tem que parecer.

Fornecedor do estado é amigo antigo e eu vou continuar amigo? Não dá. Não dá para usar avião de empresário. Vai para fila do aeroporto, ser igual a todo mundo.

Num dos depoimentos, o sr. falou que dinheiro e poder eram vício. Foi um desabafo. Não é que seja um vício, mas o poder e as suas consequências... Tem que medir muito. É que nem a pessoa que ganhou muito dinheiro como empresário. Abaixa a bola. Procura ter uma vida simples.

Eu vivia sempre cercado de gente, puxa saco para cacete. Todo aquele "entourage" de poder. Então, de repente, você está sozinho.

É você, a tua mãezinha que enfrenta um câncer para te visitar. Ali lutando. Professora primária, museóloga, ali, querida por todos os policiais penais. "Oi dona Magaly". A primeira a chegar e a última a sair. Adriana [Ancelmo] mesmo. A gente já separado, ela preparando e entregando a comida em toda visita.

Meus cinco filhos. Teus netos nascendo na cadeia. Isso tudo é muito duro. Você passa a relativizar tudo. O que é importante?

Quando o sr. comprava aquelas joias, não pensava nisso? Esse dinheiro foi utilizado do caixa dois para presentear. Completamente errado. E joia também… Hoje eu olho e acho tão ridículo ter feito isso. É um processo, você não enxerga. "Ah, não, esse dinheiro é de caixa dois. Isso aqui eu não estou roubando".

Mas, se sobrava dinheiro do caixa dois, por que o sr. pedia mais? A gestão do caixa dois, de quem lidera, acaba tendo sempre muitas demandas. Tem que contratar uma pesquisa para ver Fulano que é pré-candidato na cidade tal, a produtora para o horário do partido no ano ímpar [sem eleição].

O sr. não pedia pensando na sobra? Você inclui isso como uma coisa natural. Mas nunca comprei um apartamento. Nunca comprei nada.

Por que na crise da divulgação das fotos [de Paris], o sr. não se deu conta disso? Boa pergunta. Profeta do acontecido, engenheiro de obra pronta… É muito fácil eu falar agora, mas na hora você não está enxergando. Hoje eu estou.

O sr. acha que já pagou pelo fez? Eu espero que a Justiça avalie cada processo. Se deve ser anulado, recomeçado, declarado incompetência. Eu vou deixar a Justiça olhar e a minha defesa se expressar em meu nome.

O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em seu apartamento no bairro de Copacabana - Eduardo Anizelli/Folhapress

RAIO-X | SÉRGIO CABRAL FILHO, 60

É jornalista e foi governador do Rio de Janeiro (2007-2014), senador (2003-2006) e presidente da Assembleia Legislativa (1995-2002). Foi reeleito em 2010 com a maior votação da história do Rio de Janeiro (66%). Responde a 36 ações penais sob acusação de organização criminosa, corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e peculato. Já foi condenado em 20 processos a penas que somam 375 anos, 8 meses e 29 dias de prisão.

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