Tenho pesadelos, diz vítima da PM em ato contra Bolsonaro há dois anos

Dispersão de manifestação no Recife foi marcada por repressão da PM; uma das vítimas ainda sente marcas

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Recife

"Tenho pesadelos à noite, não gosto de estar lembrando a situação, porque toda vez que falo volta [à mente] tudo novamente, é um sofrimento".

A fala é do adesivador Daniel Campelo, 53, ao rememorar, mais de dois anos depois, o dia em que perdeu a visão de um dos olhos ao ser vítima da violência policial no centro do Recife.

O homem foi um dos atingidos por balas de borracha disparadas pela Polícia Militar de Pernambuco no dia 29 de maio de 2021 em meio a uma repressão a um ato de centrais sindicais e movimentos sociais contra o governo Bolsonaro e em defesa da vacinação contra a Covid.

Além de Daniel Campelo, outro homem, Jonas Correia de França, 31, perdeu parcialmente a visão durante a repressão policial. Ambos não participavam da manifestação, mas circulavam na região quando foram atingidos naquele sábado na capital pernambucana.

Mais de dois anos depois, os policiais responsáveis pelos disparos não foram julgados na esfera judicial nem em processos administrativos internos da Secretaria de Defesa Social do Governo de Pernambuco.

Adesivador Daniel Campelo, 53, foi um dos feridos por repressão policial a protesto contra Bolsonaro no Recife
Adesivador Daniel Campelo, 53, foi um dos feridos por repressão policial a protesto contra Bolsonaro no Recife - Instagram @hugomunizzz - 29.mai.2021/Reuters

Jonas França não quis falar com a reportagem da Folha. Daniel Campelo, por sua vez, relembrou a data que jamais esquecerá pela violência sofrida, um dia após após seu aniversário.

"Não era protesto, era caminhada pacífica com crianças e mulheres. Antes de ser atingido eu passei ao lado, caminhando, como outras pessoas, no seu direito de ir e vir. As pessoas pediam vacina e alimento. Pedir vacina e alimento merece tiro e bala de borracha?", diz.

Daniel atravessava a Ponte Duarte Coelho, uma das principais do centro do Recife, quando foi atingido. Ele iria buscar material de trabalho. "Não cheguei ao destino porque fui interrompido pela ação da Polícia Militar de Pernambuco."

Desde então, teve o desempenho profissional afetado. Ele atualmente está sem trabalhar como adesivador e faz serviços esporádicos e temporários para garantir o sustento da família.

"O meu lado profissional está danificado. Minha vida não vai ser mais o que era, meu olho foi retirado, não tenho mais a visão do olho esquerdo. Tenho que batalhar e correr atrás de alguma coisa para o suplemento da família", afirma Daniel, que reside com a irmã.

Ele conta ainda que passa por dificuldades financeiras desde o episódio de maio de 2021. "As pessoas me ajudaram muito quando isso aconteceu, mas ainda estou com pendências para deixar em dia. Meus cartões de crédito foram suspensos porque não tive mais como pagar."

Atualmente, Daniel recebe dois salários mínimos (R$ 2.640) por mês do governo estadual. O repasse financeiro acontece em meio a uma batalha na Justiça, na qual a defesa do adesivador pede uma indenização ao Estado. "O valor atual não é suficiente, pois o que o governo tirou da minha pessoa é insubstituível e irreparável", diz.

Enquanto aguarda uma definição na Justiça, Daniel faz tratamento em uma unidade de atendimento oftalmologica do Recife e deve fazer uma nova cirurgia nos próximos meses. "Vou ter que passar por exames, continuo em tratamento e provavelmente passarei por um novo procedimento cirúrgico."

O ferimento provocado pelo disparo de bala de borracha provocou uma cavidade na região ocular esquerda de Daniel. Os médicos precisaram na cirurgia inicial há dois anos tirar parte da barriga para repor nas imediações do olho afetado.

Responsável pela defesa de Daniel, o advogado Marcellus Ugiette espera que ao fim haja o reconhecimento judicial da culpa do Estado de Pernambuco. "Não estamos pedindo caridade, estamos pedindo o reconhecimento", diz.

"O Estado só começou a pagar [os dois salários mínimos por mês] quando pedimos ao juiz a tutela antecipada por crime de desobediência. Recorreram [à segunda instância] e perderam", diz.

Atuando hoje na área de serviços gerais, Jonas França fez um acordo com o governo estadual para receber uma indenização, de valor não informado, e uma pensão vitalícia de um salário mínimo por mês. Ele foi atingido após sair do local de trabalho e também não participava da manifestação pacífica.

Governo diz que investigações estão em andamento

Em nota, a Secretaria de Defesa Social disse que o policial Reinaldo Belmiro Lins, apontado como responsável pelo disparo que atingiu Jonas França, segue afastado das funções operacionais com restrição do porte de arma até a decisão do mérito disciplinar. O processo está em fase de diligências. A pasta não respondeu se há prazo para término da apuração. A Folha não conseguiu contato com o policial.

O autor do disparo contra Jonas é réu por lesão corporal grave. O processo tramita no Tribunal de Justiça de Pernambuco em fase de audiências de instrução e julgamento.

Já o caso do disparo envolvendo Daniel Campelo da Silva segue em investigação interna e sem prazo para definição, de acordo com a secretaria, "até que todas as diligências sejam inteiramente realizadas e obtidos os devidos esclarecimentos".

O nome do agente do Batalhão de Choque que fez o disparo contra o adesivador não foi divulgado. Ele foi indiciado pela Polícia Civil por lesão corporal gravíssima e omissão de socorro. Outros oito policiais da Rádio Patrulha também foram indiciados por omissão de socorro.

Outro momento de repercussão no mesmo dia envolveu a vereadora Liana Cirne (PT), que foi atacada com spray de pimenta ao tentar negociar com policiais que estavam em uma viatura.

Na ocasião, ela foi atendida em uma unidade de pronto-atendimento e recebeu alta no mesmo dia.

Um policial foi punido internamente com 21 dias de detenção em maio de 2022, mas a parlamentar disse que o agente não era o que disparou o jato contra seu rosto. A Polícia Civil também concluiu as investigações nesse caso.

Os acontecimentos geraram uma crise para o Governo de Pernambuco à época. O então comandante da Polícia Militar, Vanildo Maranhão, também deixou a função. O então secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, atualmente superintendente da Polícia Federal no estado, entregou o cargo. O governador era Paulo Câmara (PSB).

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