Diversidade é crucial para tornar democracia mais legítima, diz cientista política

Para Jane Mansbridge, aumentar presença de mulheres, negros e outros grupos melhora a política

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São Paulo

Jane Mansbridge, 82, mergulhou no tema da representação política ainda nos anos 1960. Estava preocupada com os coletivos estudantis que desmoronavam porque não conseguiam satisfazer as demandas de seus membros.

De lá pra cá, passou a olhar coletivos maiores: os sistemas democráticos. Mas, no fundo, mantém a mesma preocupação: quer melhorar os mecanismos de deliberação e ampliar a participação política, de forma que governos e Congressos façam leis capazes de satisfazer os cidadãos.

"O século 18 não nos deu um sistema suficientemente legítimo para isso", diz a norte-americana Mansbridge, uma das mais importantes pensadoras da democracia e ganhadora do Prêmio Johan Skytte de 2018, apelidado de Nobel da Ciência Política.

"Vamos precisar de um sistema bastante melhorado no futuro se formos seguir com essa vida complexa, interdependente. Precisaremos de uma democracia muito melhor para sustentar isso. E por isso eu acho que as questões ligadas à representação [política] são tão cruciais."

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Jane Mansbridge, uma das mais importantes pensadoras da democracia e ganhadora do Prêmio Johan Skytte de 2018, apelidado de Nobel da Ciência Política - Stephanie Mitchell /Harvard Staff Photographer

Quando fala em melhorar a representação, Mansbridge pensa em maneiras de aumentar a presença de grupos em geral minoritários na política. O Congresso é um de seus alvos.

Entre seus estudos mais influentes está um artigo de 1999 no qual ela analisa as vantagens de haver equilíbrio na representação descritiva —isto é, equilíbrio na quantidade de deputados cujas experiências pessoais espelhem as de eleitores em termos de pertencimento a um determinado grupo social.

Um exemplo ajuda: num país em que há equilíbrio do ponto de vista da representação descritiva, a proporção de negros e de mulheres entre os eleitores e a proporção de negros e de mulheres entre os parlamentares será aproximada.

"A representação parlamentar é também um trabalho coletivo, e o que queremos é uma coleção de pessoas que tragam perspectivas de toda a sociedade", diz. "Se existe proporcionalidade, então essas diferentes experiências estarão representadas de forma proporcional, com o que o colegiado será mais rico e mais forte."

Um estudo recente mostrou que tanto negros quanto mulheres estão sub-representados entre deputados federais e estaduais no Brasil, com menos eleitos do que sua proporção na população. Como isso afeta a atuação política?

Afeta de pelo menos três maneiras. Primeiro, legislar não é apenas uma questão de fazer decretos. É uma questão de elaborar leis que respondam às experiências e às necessidades das pessoas. Se um deputado nunca viveu uma experiência típica de um certo grupo... Há uma série de questões que são relevantes para pessoas negras ou para mulheres e que nem são percebidas por pessoas brancas ou por homens.

Em segundo lugar, há uma questão de comunicação com outros parlamentares. No Congresso americano, o deputado Barney Frank às vezes era a única pessoa homossexual com quem um outro deputado tinha conversado —​e esse outro deputado descobria que Frank era normal, que ele não era um pervertido nem nada disso. Então isso muda a comunicação entre os próprios deputados.

Por fim, há a comunicação com os eleitores. É até uma questão de linguagem, mesmo de linguagem corporal. Um parlamentar que seja negro, mulher ou indígena, por exemplo, faz com que eleitores negros, mulheres ou indígenas se sintam muito mais à vontade para conversar e apresentar seus pontos de vista sobre um determinado problema.

Uma possível objeção a esse raciocínio é a seguinte: se homens não conseguem representar mulheres e se brancos não conseguem representar negros, então o oposto também é verdade, de forma que o Congresso se tornaria uma reunião de grupos apartados entre si. Como a sra. responde a isso?

A resposta é: todo mundo pode representar todo mundo. Eu posso representar um marciano. Posso representar as futuras gerações. Posso representar alguém na China. Mas, se eu quero representar alguém na China e não sou desse país, provavelmente não vou fazer um trabalho tão bom quanto alguém de lá. Ou seja, é uma questão de fazer um trabalho melhor ou pior.

Mas a representação parlamentar é também um trabalho coletivo, e o que queremos é uma coleção de pessoas que tragam perspectivas de toda a sociedade. Isso significa ter brancos, negros, homens, mulheres etc.

Como um coletivo, homens representam mulheres e vice-versa, assim como brancos representam negros e vice-versa. Com sorte, cada um fará o seu melhor para representar todos os eleitores, mas eles têm perspectivas distintas que decorrem de suas diferentes experiências de vida. Se existe proporcionalidade entre os deputados, então essas diferentes experiências estarão representadas de forma proporcional, com o que o colegiado será mais rico e mais forte.

E se, por exemplo, uma pessoa negra é eleita, mas não atua em favor dos interesses da maioria dos negros? Digamos, uma pessoa negra que negue o racismo no Brasil.

Existem deputados bons e deputados ruins em qualquer grupo. Então, se houver representação proporcional de negros no Congresso, é possível que um ou dois desses deputados negros tenham a visão que você citou, porque esse tipo de ponto de vista existe na comunidade negra, ainda que seja uma fração pequenininha de pessoas.

O fato de a cor da pele ser negra não significa que essa pessoa represente todos os negros. Existe muita heterogeneidade dentro de cada grupo, e queremos que essa heterogeneidade esteja representada.

Uma crítica comum à ideia de representação descritiva é que não deveriam importar características como gênero ou cor da pele, e sim o que o deputado pensa.

Não se trata de um ou outro. Precisamos de ambas as características. O que as pessoas pensam é imensamente importante. Mas as experiências de vida que elas trazem também são extremamente importantes. Você não consegue pensar em boas leis se não tem ideia do que está se passando na vida de outra pessoa, se não entende as nuances.

É por isso que eu digo que deputados precisam atuar como um coletivo, porque ninguém consegue entender as experiências de vida de todo mundo. Contudo, se você faz parte de um coletivo, você pode ouvir os outros e aprender com eles.

Outra crítica a medidas que buscam proporcionalidade de raça e gênero é que elas limitam a capacidade do eleitor de escolher entre os melhores. Faz sentido?

Essa maneira de colocar o problema assume que existe uma única hierarquia [de qualificação], como se fosse um vestibular, no qual as pessoas tiram notas de 0 a 100. Mas não é assim que funciona o mundo. Existem diversas maneiras de ser bom, de estar entre os melhores.

Em condições normais, os eleitores vão olhar os candidatos e pensar: "Qual me representa melhor?". E eles vão olhar cor da pele, gênero, região, experiência de vida etc. O que o eleitor quer é o que for melhor para ele, e esse "melhor para ele" resulta de uma constelação de características.

E eu gostaria de acrescentar classe social, uma característica que não é devidamente explorada. Uma pessoa pode achar melhor ser representada por um branco de classe baixa do que por um negro com ensino superior, se esse negro com ensino superior vier de uma família de classe alta e não tiver ideia do que se passa em uma área rural, por exemplo.

De que maneira o histórico de um país altera a importância de haver proporcionalidade de raça e gênero? O Brasil, por exemplo, foi o último país das Américas a abolir a escravidão.

Primeiro, se há esse tipo de história, vai haver muita desvantagem além da pura discriminação. É uma situação estrutural mais profunda, na qual pessoas pretas e pardas acabam vivendo em regiões pobres, segregadas formal ou informalmente, com escolas de pior qualidade, por exemplo. Então a história importa muito do ponto de vista material, mas também do ponto de vista ético.

Se um país cometeu um mal como a escravidão... A Alemanha mostra que existem certos erros históricos coletivos que devem ser corrigidos. Uma maneira simples de medir isso é ver se o direito ao voto foi legalmente negado a um determinado grupo. Se sim, há um caso histórico para reparação. Não necessariamente reparação monetária, mas uma compreensão moral de que há uma dívida a ser paga e de que algo deve ser feito.

Quais as melhores maneiras de corrigir a desigualdade na representação parlamentar?

Não existe uma fórmula. Esse é um território relativamente novo, com o qual estamos lidando há cerca de 30 anos. Nós aprendemos por tentativa e erro, e é assim que vamos descobrir quais são as melhores soluções.

Eu faço uma distinção entre maneiras mais fluidas e menos fluidas. As menos fluidas são as cotas. Elas têm desvantagens tremendas, mas às vezes são necessárias quando outras opções foram testadas e não funcionaram. Então vamos com as cotas nesses casos, de preferência de forma temporária.

Outra opção são os incentivos no sistema de financiamento eleitoral, que são relativamente não fluidos. Ele estabelece um tipo de cota, mas pode ser mudado a qualquer momento.

E entre as opções mais fluidas eu coloco soluções como dar bolsas de estudo para faculdades de direito, com uma espécie de pontuação extra para quem vem de grupos aos quais o voto já foi negado. É uma sugestão minha, porque as faculdades de direito formam muitos deputados nos EUA, mas nunca foi implementada.

Enfim, existem muitas maneiras de romper as barreiras. Quanto mais fortes elas forem, mais pesadas precisam ser as intervenções.

​​A gente falou bastante de raça e gênero, mas imagino que essas não sejam as únicas características que importam do ponto de vista da representação descritiva. Que outros grupos devem ser levados em conta?

Eu considero classe social extremamente importante. Se você olhar para pessoas que foram excluídas do voto no passado, você vai encontrar pessoas que não tinham propriedades, por exemplo.

Isso significa que temos uma responsabilidade ética e histórica de ver como a sociedade se estruturou de modo a criar desvantagens para pessoas de classes mais baixas. Elas com frequência vêm de áreas rurais, suas escolas são terríveis, o transporte para a cidade é muito difícil e por aí vai.

No caso de grupos muito pequenos, como indígenas, ter um ou dois deputados pode significar uma sobrerrepresentação, mas isso pode ser importante se há interesses específicos que são notoriamente diferentes e precisam de compreensão e representação. Agora, para decidir quais são esses grupos, isso depende muito do contexto histórico de cada país.

As ideias de proporcionalidade também se aplicam a outras esferas da administração pública?

O que eu chamo de sistema representativo inclui toda a administração, inclui ONGs, inclui tudo o que diga respeito ao mundo de coagir cidadãos. Leis não são coisas divertidas que a gente encontra no chão. Leis te forçam a fazer uma coisa que você não faria. Leis estruturam a nossa vida. Quanto mais interdependentes nos tornarmos, mais precisaremos regular essa interdependência.

O século 18 não nos deu um sistema suficientemente legítimo para isso. O que aprendemos de nossos antepassados diz respeito a uma democracia que não fazia muita coisa. Hoje temos democracias que regulam inúmeros aspectos de nossa vida, e o sistema não está produzindo a legitimidade para sustentar toda essa regulação.

Então vamos precisar de um sistema bastante melhorado no futuro se formos seguir com essa vida complexa, interdependente. Precisaremos de uma democracia muito melhor para sustentar isso. E por isso eu acho que as questões ligadas à representação são tão cruciais.


Raio-X

Jane Mansbridge, 82
Mestre em história e doutora em ciência política pela Universidade Harvard, instituição na qual é professora da Escola de Governo. Foi presidente da Associação Americana de Ciência Política e, em 2018, recebeu o Prêmio Johan Skytte, apelidado de Nobel da Ciência Política. É autora, entre outras obras, de "Beyond Adversary Democracy" (Além da democracia de adversários, Universidade de Chicago, 1980)

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