Modelo de segurança adotado por setor aéreo é inspiração para sistema viário

Integração entre máquina, homem e meio baliza esforços para reduzir mortes no trânsito

Fabrício Lobel
Leipzig (Alemanha) e São Paulo

Um acidente nunca acontece por apenas um motivo. É o que afirma uma máxima da aviação mundial. Uma tragédia é sempre fruto da mescla de três elementos: a máquina, o homem e o meio.

Ao longo das últimas décadas, o setor aéreo desenvolveu um sistema de camadas de proteção para que, quando um desses três elementos falhasse, os outros dois pudessem garantir a segurança.

Assim, a aviação comercial de passageiros fechou 2017 como o mais seguro ano de sua história, com uma morte entre quase 37 milhões de voos —marca invejável para qualquer meio de transporte.

​E é olhando para o setor aéreo que especialistas e agentes públicos tentam encontrar inspirações para reduzir a violência das ruas e estradas. Diariamente são registradas, em média, 3.400 mortes no trânsito no mundo. No Brasil, são mais de cem casos por dia.

Quando o assunto é a máquina, uma das abordagens é apostar no avanço da tecnologia dos veículos. O próprio freio ABS (que evita o travamento da roda e a perda de controle na frenagem), exigido em veículos mais novos, foi inspirado em aeronaves.

Hoje as discussões no mundo centram na crescente capacidade de os computadores dos veículos identificarem perigos ao longo da viagem e reagirem para evitar acidentes.

Um carro que desempenhe sozinho todas as funções de um motorista poderá chegar às concessionárias quando menos se espera —ao menos é o que aposta a indústria.

Na maioria desses projetos, os carros dispõem de câmeras que enxergam o entorno, scaners a laser e radares para medir a distância, formato e velocidade dos objetos. Assim, o veículo consegue uma leitura em 360 graus do que o circunda e toma decisões como acelerar, virar e frear.

Um dos grandes desafios desse modelo é fazer com que o veículo possa interpretar os estímulos aleatórios em um cenário caótico como o trânsito de uma cidade: uma criança que tropeça e cai na pista ou um motorista que furou um semáforo vermelho.

Para ensinar o computador a captar e a reagir a essas sutilezas do trânsito, os projetos têm de colocar carros para rodar em situações reais.

A Google, por exemplo, informa que o seu carro autônomo Waymo já rodou mais de 9 milhões de quilômetros. O que significaria, segundo a empresa, que, em um dia, seus carros autônomos rodam e ganham mais experiência que um motorista médio americano em um ano inteiro.

Entretanto, o setor automobilístico já esteve mais otimista com o avanço da tecnologia. Recentemente, graves acidentes geraram apreensão sobre a segurança desses carros.

Uma das pontas de lança desse movimento, a Uber estimava que clientes de algumas cidades americanas já tivessem à disposição o serviço de viagens com carros sem motoristas até o ano que vem.

Porém um acidente em março, com um carro autônomo em teste que matou uma pedestre, suspendeu o projeto por tempo indefinido.

A segurança de veículos sem motoristas foi tema do debate de abertura do Fórum Internacional de Transporte, realizado no final de maio, em Leipzig, na Alemanha.

Para Philippe Crist, gerente de projetos do fórum, apesar da promessa de aumento da segurança no trânsito com carros autônomos, a primeira fase de implantação desse modelo deve ser a menos segura.

“Até o momento não sabemos se a tecnologia é ou não mais segura. Devemos entender que a automação pode ser uma ferramenta, mas não traz mais segurança de maneira isolada.”

Segundo Timothy Papandreau, que trabalhou no projeto de carro autônomo da Google, engenheiros perceberam durante os testes que, ao concederem aos poucos a automação isolada de certas funções (direção, freio ou aceleração), o motorista tende a prestar menos atenção, o que não é desejado em carros ainda não autônomos.

Portanto, a transição de um veículo inteiramente controlado pelo homem para um controlado por computador deve ser feita com muito cuidado.

“Todos querem ser os primeiros [a entregarem um carro 100% autônomo]. Mas há risco em ser o primeiro. O estado do Arizona [nos EUA, onde a regulação para testes do tipo é mais branda] foi o primeiro em muitos pontos, mas foi também onde apareceram os primeiros acidentes”, afirmou Crist à Folha.

A introdução do carro autônomo chegará aos poucos ao usuário comum, analisa Alessandro Rubio, membro da comissão técnica da SAE (associação internacional de engenharia automotiva que pesquisa questões de segurança).

“Enquanto isso, o motorista deverá ser orientado, treinado e acostumado a essas novas tecnologias. A formação de condutores precisa ser atualizada”, afirmou Rubio.

Na equação da segurança no trânsito, o desempenho do homem também é um fator determinante de uma viagem segura. Prova disso na aviação é o rigor do treinamento dos pilotos. Enquanto isso, no solo, uma preocupação crescente é acerca de idosos, cada vez mais numerosos no mundo.

Na Europa, onde o envelhecimento está em ritmo mais acelerado, governos preveem aumento de idosos envolvidos em acidentes de trânsito.

Hoje, cerca de 20% dos acidentes por lá envolvem um idoso com mais de 65 anos, segundo a Comissão Europeia. A expectativa é a de que até 2050 a participação dessa população suba para 33%.

No Brasil, entre 2000 e 2015, segundo dados do Observatório Nacional de Segurança Viária, o número de mortes de idosos no trânsito subiu 62%, bem acima do aumento das mortes totais, de 33%.

A Líder Seguradora, administradora do DPVAT (seguro obrigatório), tem ainda outro dado. Em 2017, nas três categorias de seguros disponíveis (por morte, por invalidez e por despesas médicas), a faixa etária que proporcionalmente mais gerou pedidos ao DPVAT por morte é a dos idosos.

Quando o idoso é motorista, há redução progressiva das habilidades essenciais para dirigir: motora (acionar os comandos do carro), sensorial (perceber os estímulos vindos do trânsito) e cognitiva (tomar decisões ágeis).

“A partir do momento em que se obtém a Carteira Nacional de Habilitação, não há mais inibições ao seu uso. A única questão é que, ao completar 65 anos, o motorista tem de fazer avaliação médica de três em três anos [no resto da população, isso ocorre a cada cinco anos]. Entre os idosos, essa avaliação deveria ser anual para perceber com maior rapidez quando a condução de veículos já não é mais possível”, afirma o médico Dirceu Rodrigues Alves, da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego).

“Porém, para muitos, perder o direito de dirigir significa bloquear e isolar alguém que sempre teve a autonomia de dirigir”, reconhece ele.

Segundo Wilma Paixão de Souza, 70, que dirige há 41 anos, o idoso sofre muito preconceito no volante. “Um dos piores problemas no trânsito é a impaciência das pessoas. É isso que provoca acidentes.”

Souza acaba de renovar a sua CNH até 2021. “Adoro dirigir. Enquanto puder e me sentir segura, eu continuo, caso contrário, não. Todos os dias me analiso: se estaciono direito, como estão meus reflexos. Estou sempre alerta”, conta.

As cidades brasileiras precisam se adaptar para serem mais seguras para a população mais idosa, de acordo com a especialista em mobilidade Meli Malatesta. “Antes, idosos eram minoria. Cada vez menos será assim.”

Mais uma vez como a aviação, que estuda o desenho de novas rotas e tecnologias para seus aeroportos, especialistas em transporte viário de todo o mundo buscam um nível de segurança no trânsito maior, caso máquina e homem falhem.

A proposta hoje mais discutida internacionalmente é a adoção da filosofia Visão Zero, que tem como princípios a ideia de que todo acidente grave e com mortes no trânsito pode ser evitado e que as pessoas invariavelmente cometerão erros, mas a cidade, o meio, deve estar preparada para evitar que isso ocorra.

Com origem na Suécia, a política da Visão Zero prevê que cuidar só da educação e da fiscalização no trânsito já não gera resultados esperados.

A metodologia propõe aumentar a segurança das ruas por onde os veículos e pedestres passarão, alterando o seu desenho, reduzindo velocidades em áreas específicas e aumentando calçadas.

“A Visão Zero é apenas uma questão de vontade política. É necessário inverter a prioridade no trânsito do carro para o pedestre. Vai dar protesto de motoristas? Vai, mas é preciso para evitar mais mortes”, analisa Malatesta.

É verdade que, nos últimos anos, o Brasil tem conseguido reduzir o número de mortes no trânsito. Em 2016, foram 37.345 vítimas, contra quase 45 mil em 2012. Ainda assim, o país está longe da meta que havia pactuado com a Organização Mundial da Saúde: 21 mil mortes até 2020. O próprio Ministério da Saúde já admitiu ainda não ter alcançado o número.

Por isso, especialistas alertam para uma mudança urgente na abordagem da segurança viária no país, ao custo de milhões de reais dedicados a internações hospitalares, pagamento de seguros e, principalmente, da perda de uma centena de vidas ao dia.

Colaborou Clarice Pereira

O repórter Fabrício Lobel viajou a Leipzig, na Alemanha, a convite do International Transport Forum

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