Descrição de chapéu Inovação Educativa

Crianças decidem mudar até a cor da areia do parquinho de escola

Rede municipal adota projeto democrático, que ainda enfrenta resistência na comunidade

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São Paulo

A caixa com areia azul chama a atenção no parque da escola municipal Manuel Bandeira, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Durante a recente reforma do parque, a decisão sobre qual seria a cor da areia foi tema da assembleia geral da escola, que adota o ensino democrático.

A areia azul é uma metáfora colorida do seu modelo pedagógico, em que os alunos da educação infantil e do fundamental 1 opinam sobre vários aspectos: como devem ser as aulas, os projetos desenvolvidos em classe, o investimento de dinheiro e como responder à indisciplina.

“Todo mundo gostava da areia azul de um parque que tem aqui perto, o Céu Paraíso Alvorada. Então, sugerimos que a escola tivesse uma caixa de areia igual”, diz Julia Oliveira, 9, aluna do 4º ano fundamental. Sua colega de classe Yasmin Aragão, 10, emenda: “Aqui, a gente participa de todos os problemas da escola, depois sentamos numa roda para decidir como resolver”.

Julia e Yasmin são representantes do “conselhinho”, como são chamados os conselhos de cada classe. A escola, que tem 800 alunos divididos em três períodos, trabalha com dois representantes por turma, encarregados de ouvir os colegas em sala de aula, avaliar as propostas e levá-las para a assembleia geral, que acontece ao fim dos bimestres. A pauta, então, é votada em uma grande roda de conversa.

“Precisamos aplaudir. Precisamos conversar.” As frases no cartaz na porta da diretoria dão o tom sobre a dinâmica da assembleia, quando os projetos de sucesso aplaudidos e o que precisa ser discutido ganha espaço e ouvidos.

Um dos temas polêmicos neste ano é lembrado por Yasmin: “O pessoal do 5º ano estava falando muito palavrão e batendo nos pequenos, tínhamos que fazer com que eles parassem com isso”, conta.
Como cartazes ou cartas de advertência costumam ser ignorados, ficou combinado que quem não entrasse na linha teria de passar uma tarde inteira cuidando de um aluninho da educação infantil. 

Duas crianças sentam na estrutura de concreto da caixa de areia azul da escola
As alunas Julia Oliveira (à esq.) e Yasmin Aragão, representantes de classe no “conselhinho” da EPG Manuel Bandeira, em Guarulhos, na Grande São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

“Funcionou!”, diverte-se Yasmin. A medida reforça os cinco valores que estão estampados nas colunas do pátio interno e servem como pilares da filosofia da Manuel Bandeira: autonomia, responsabilidade, respeito, amizade e conhecimento. 

O processo de gestão democrática começou na escola em 2013, com a chegada de uma nova diretoria e a sistematização do projeto político-pedagógico da rede municipal. 

Inspirada na experiência do Projeto Âncora, escola de Cotia (SP), a diretora Solange Turgente resolveu criar os “conselhinhos” como um primeiro passo para garantir a participação de todos os envolvidos no território educativo —alunos, pais, professores e comunidade.

“Quando se fala em inovação na rede municipal, não dá para baixar uma norma via secretaria. É preciso enxergar a necessidade de mudança e ter vontade de mudar. Inovar dá trabalho, né?”, diz.

Dentro do modelo democrático, as crianças escolhem os projetos que querem desenvolver, ao longo do semestre, com foco nos eixos “linguagem oral e escrita”, “matemática”, “natureza” e “sociedade”. A abertura para temas do cotidiano é ampla e gera controvérsia.

Como quando uma turma optou por estudar novelas. Alguns pais torceram o nariz, mas mudaram de ideia diante do resultado. As crianças gravaram uma novela de rádio e criaram uma fotonovela sobre a independência do Brasil. “Alunos interessados aprendem e avançam mais fácil. Você não precisa mandar fazer lição”, diz Solange. 

Lidar com a resistência ao modelo não tradicional é um dos desafios. Em uma reunião de pais, a avó de um aluno questionou: “Por que vocês ficam perguntando para as crianças o que elas querem estudar? Não sabem o que ensinar?”. 

É quando alguém precisa explicar que, ao promover as crianças a protagonistas, elas se tornam mais autônomas e capazes de fazer suas próprias reivindicações.

O resultado, para além das notas, pode ser percebido, segundo a diretora, na horizontalidade das relações. “De cara, você percebe a segurança das crianças ao falar com colegas e professores de igual para igual”, diz ela.

Ou em depoimentos de alunas como Yasmin, articulada na fala e nos gestos, que aponta a escola como seu “lugar preferido”. “Sei que nossa escola é diferente das outras, porque a gente é quem faz a escola”, diz. 

Para Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, o principal desafio na rede municipal é tornar a escola mais atrativa e próxima da realidade do aluno.

“A escola dos sonhos é aquela em que o aluno queira estar, permanecer e aprender. Uma escola conectada ao mundo global, que leve em conta as novas tecnologias e modelos pedagógicos, mas que acima de tudo tenha um olhar sensível para estimular o desenvolvimento não apenas cognitivo, mas humano”, diz ele. 

O ponto crucial, contudo, é a carência de profissionais habilitados para absorver inovações. A alta rotatividade de profissionais é um problema recorrente na Manuel Bandeira. 

“Muitos professores precisam rever conceitos que aprenderam durante a formação inicial. No modelo democrático, até o professor levanta a mão em sala e espera sua vez para falar”, pontua Camila Tesche, coordenadora da escola. 

Nas escolas municipais, a inovação vem sendo buscada na tendência do protagonismo, que coloca os alunos como agentes ativos na resolução dos problemas. “É importante mostrar que, quando se escuta o aluno, ele desenvolve seu potencial criativo. Esse envolvimento gera motivação para produzir arte, ciência, política e articulação com a comunidade”, diz Gabriel Salgado, coordenador do projeto Criativos da Escola, do Instituto Alana. 

O protagonismo, a empatia, a criatividade e o trabalho em equipe são as bases do projeto, que premia anualmente 11 ideias educacionais inovadoras, a fim de estimular alunos e professores a transformar suas realidades.

A iniciativa faz parte do Design for Change, movimento global que surgiu na Índia e está presente em 65 países. No projeto “A Visão do Rap”, vencedor do prêmio em 2017, alunos do 2º ano do ensino médio usaram o ritmo para tornar as aulas mais interessantes e aumentar a participação dos colegas. 

A ideia surgiu na Etec (Escola Técnica Estadual) Jaraguá, na zona norte de São Paulo, diante do marasmo nas aulas de história, sociologia e filosofia, em que metade dos alunos dormia e a outra metade ficava dispersa. 

Quatro homens posam dentro de uma sala de aulas da Etec Jaraguá
Da esq. para a dir., Murilo Inacio de Oliveira, Matheus Sousa da Silva, o professor Raphael Paulino Gimenes e Luis Henrique de Oliveira Malafaia, da Etec Jaraguá, na zona norte de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

A partir da provocação do professor de sociologia, Raphael Gimenes, sobre como mudar aquele cenário, os amigos Murilo Inácio de Oliveira, 18, Matheus Sousa da Silva e Luis Henrique de Oliveira Malafaia, ambos de 17, sugeriram transformar os conteúdos em letras de rap.

“O mais complicado foi fazer um plano de aulas que durassem 45 minutos, como se fôssemos o professor. Isso tudo abriu minha mente para vários caminhos”, diz Luis.

Os alunos prepararam oito aulas em que, a partir do rap, foram tratados temas como racismo, igualdade de gênero, política e acontecimentos históricos. Eles ainda sugeriram atividades para cada aula, entre debate, exibição de filmes, pesquisa online e avaliação. 

Com o apoio da escola, montaram ainda kits didáticos contendo os planos de aula, os áudios e as letras das músicas. Depois do sucesso do projeto, o material ultrapassou os limites da escola. Em articulação com a prefeitura da cidade, o grupo já distribuiu os kits para oito escolas municipais e outras duas Etecs. “O rap ensina muito”, diz Luis. 

“Nenhum conteúdo trabalhado em sala com uso de estratégias obsoletas será mais interessante do que as informações disponíveis extra-muros da escola”, diz Tatiana Klix, editora do site Porvir, sobre inovação na educação. 

“O papel da escola transformadora é mais de curadora de conteúdo”, diz ela. “O aluno deixa de ser um agente passivo para se tornar protagonista ou, no mínimo, coadjuvante do professor”.

Diante dos desafios da rede pública em termos de estrutura, remuneração, formação e valorização de professores, Gabriel Salgado, do Instituto Alana, afirma que é preciso acreditar na educação que está sendo desenvolvida pelos estudantes. “Não falamos de uma inovação estática ou descontextualizada, mas que faz sentido para aquela realidade”, diz ele. 

No caso da escola municipal Manuel Bandeira, em Guarulhos, a alegria das crianças na lúdica caixa de areia azul é um sinal dos tempos. “Eles vão pra casa com um visual meio ‘Avatar’, mas está tudo certo”, diz a diretora, Solange Turgente.

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