Descrição de chapéu Doenças Raras 2021

Paciente crônico aprende a intercalar fases tranquilas com outras muito duras

Repórter relata estágios emocionais e importância da empatia na hora do diagnóstico

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Americana (SP)

Posso dizer que tive sorte no meu diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico (LES): entre buscar ajuda médica e ter essa confirmação levei menos de um ano. Com uma doença que se confunde com muitas outras e a ausência de um único teste de diagnóstico, a maioria dos pacientes leva seis anos. Nesse período, entre tratamentos equivocados e a evolução da doença, o prognóstico vai se complicando. Outros ignoram sintomas leves, já chegam ao consultório com complicações graves e precisam entrar de cara com tratamentos agressivos.

Até 2006, eu nunca tinha ouvido falar em lúpus. Uma queda de cabelo me levou a uma dermatologista, que tratou o problema pontualmente. Mas de onde vinham aquela fadiga extrema, aquela dificuldade de raciocinar, aqueles dedos roxos? Por que estava perdendo tanto peso (6 kg)? Por causa das dores e do inchaço nas mãos, que já me impediam de pentear o cabelo e segurar o volante, procurei um ortopedista, que me encaminhou para um reumatologista. “Nossa, reumatologista?”, pensei. “Tenho só 30 anos, não tenho doença de velho.”

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Carolina Vila-Nova durante viagem a Monteiro Lobato (SP) - Arquivo pessoal

No ápice da falta de empatia, o primeiro reumatologista que eu consultei me falou apressadamente, já com meus exames na mão: “É, você tem lúpus.” “Hein?”. “Pois é, viu uma moça que saiu daqui com o rosto todo manchado? Então, é isso.” Insisti numa explicação. “Procura na internet que você vai ver”, falou.
Qualquer pessoa que já tenha pesquisado doença na internet sabe que isso é um erro. Fui trabalhar atordoada. O que vai ser de mim? Vou morrer? Ficar com sequela? E meu trabalho? Como fazer coberturas internacionais? Os textos na internet falavam que o estresse era um fator desencadeante. E agora? Não vou mais poder ser jornalista!

O segundo reumatologista me acolheu. Após confirmar o diagnóstico, ele me explicou o que era, o que esperar, como me tratar. É meu “médico-chefe” até hoje.

Comecei com um tratamento à base de corticoides e da agora famosa hidroxicloroquina. Mas saber que eu tinha uma doença rara e crônica pesou na minha saúde mental. Dizem que quem recebe um diagnóstico assim costuma passar pelos estágios de um luto: negação, raiva, depressão. Passei por tudo isso. Retomei a psicanálise e iniciei tratamento psiquiátrico.

No trabalho, fui remanejada para uma função que não envolvia viagens. Houve um custo profissional aí. Mas a prioridade era estar viva. Lá por 2009, o lúpus estabilizou, me senti tão segura que passei um ano morando na Alemanha e outro viajando pela Ásia.

Até que em 2015 uma lesão na retina forçou uma mudança de tratamento. O protocolo de uso da cloroquina exige o acompanhamento regular por um oftalmologista, o que permitiu a descoberta do problema no começo. Mas a cloroquina ficou inviável, e passei a administrar o imunossupressor azatioprina.

Uma das maiores apreensões dos lúpicos é a imprevisibilidade das crises. Nunca se sabe quando e como a doença vai atacar, mesmo com o tratamento em dia. Tanto que hoje há estudos que usam a inteligência artificial para tentar prever o risco de uma crise dentro de certo período de tempo.

Tudo ia bem, até que sofri uma neutropenia severa: o lúpus estava atacando meus neutrófilos, células sanguíneas responsáveis pela defesa contra infecções. Tinha dores, inchaço, vermelhidão e urticária dos pés à cabeça (literalmente), fora o risco à vida. Brinco que tive aí um gostinho prévio da pandemia: fiquei 15 dias trancada em casa e depois, quando saía, era só de máscara. Não podia estar em locais aglomerados; voltei ao trabalho só depois de um mês (e ainda levou um ano até que pudesse viajar de avião). Sem a azatioprina, fiquei apenas com doses maciças de corticoide. Engordei 12 kg.

Como consequência dessa crise, desenvolvi nefrite lúpica. Em questão de meses, eu deixava de ter um lúpus leve (com manifestações cutâneas e articulares) para ter um lúpus moderado (com manifestações sanguíneas) e então grave (com acometimento de órgãos vitais). Outro efeito eu só descobri no ano passado: necrose avascular nos quadris, resultado do uso prolongado de corticoides. Neste momento, aguardo cirurgia para colocação de próteses.

O trauma da crise e suas consequências me fizeram antecipar um desejo que eu maturava há anos, de deixar São Paulo e adotar um estilo de vida mais simples. Pouco antes da pandemia, me mudei para o interior do estado. Hoje tomo outro imunossupressor, o micofenolato de mofetila, e estou estável. Sou rígida com o distanciamento social.

O doente crônico aprende a ser resiliente, pois sabe que os momentos tranquilos serão intercalados com outros muito duros. Falei muito de medicamentos, mas o bom tratamento do lúpus é multifacetado. Inclui alimentação equilibrada e sem agentes inflamatórios, exercícios físicos (quando possível), psicoterapia e terapias corporais, meditação e boa rede de apoio.


Alguns exemplos de doenças raras

Acromegalia
Doença crônica que ocasiona o aumento excessivo de tecidos corporais, causada pelo excesso de hormônio do crescimento (GH) e da proteína IGF-1
Sintomas Fraqueza, altura e sudorese excessivas, dor articular, ossos grandes

Atrofia muscular espinhal (AME)
Doença genética neuromuscular causada por deficiência do gene que produz a proteína SMN e mata os neurônios motores
Sintomas Fraqueza muscular e comprometimento da mobilidade de membros do corpo

Epidermólise bolhosa
Grupo de doenças genéticas e hereditárias, com mais de 30 subtipos, caracterizadas por bolhas e lesões na pele, causadas por alteração do colágeno. A fragilidade da pele é comparada à de asas de borboletas

Fibrose cística
Doença genética que atinge pulmões, pâncreas e sistema digestivo, também conhecida como mucoviscidose ou doença do beijo salgado. Um gene defeituoso faz o corpo produzir muco mais espesso, que atrai bactérias infecciosas
Sintomas Tosse crônica, diarreia, suor mais salgado que o normal, dificuldade de ganhar peso e estatura

Hemofilia
Doença genética provocada por deficiência na atividade de proteínas responsáveis pela coagulação do sangue. Estimativas variam entre cerca de 400 mil e 1 milhão de casos no mundo e cerca de 13 mil no Brasil
Sintomas Sangramentos prolongados, dores e inchaço de articulações ou músculos

Lúpus eritematoso sistêmico
Doença autoimune causada pelo desequilíbrio do sistema imunológico, que reage contra células do próprio corpo; atinge órgãos internos e a pele
Sintomas Sensibilidade ao sol, queda de cabelos, dor nas articulações, perda de apetite e peso, dificuldade para respirar, redução motora dos rins, convulsões e tromboses

Neuromielite óptica
Também conhecida como doença de Devic, é uma condição autoimune inflamatória causada pela produção de anticorpos que atacam proteínas no sistema nervoso e podem destruir células na medula espinhal e fibras nervosas no nervo óptico
Sintomas Embaçamento da visão, dificuldades na locomoção e no controle dos esfíncteres

Osteogênese imperfeita
Também chamada de ossos de vidro ou doença de Lobstein, tem origem genética e se caracteriza principalmente pela fragilidade dos ossos. Mutações em genes responsáveis pela síntese de colágeno causam a redução da massa óssea
Sintomas Ossos frágeis, perda da audição, deformidade do crânio e baixa estatura

Raquitismo
Doença que compromete os ossos de crianças em fase de crescimento; pode ser hereditária ou causada por deficiência de vitamina D, cálcio ou fósforo. Os ossos ficam enfraquecidos e suscetíveis a fraturas
Sintomas Dores ósseas, anormalidades dentárias, baixa estatura e deformidades em membros inferiores

Fontes: Ass. Bras. de Esclerose Múltipla e Atlas da EM (3ª ed); Ass. Bras. de Assistência a Mucoviscidose, Grupo Bras. de Estudos de Fibrose Cística e Unidos pela Vida-Inst. Bras. de Atenção à Fibrose Cística; Casa Hunter, Inst. Vidas Raras, Genomika; Ass. Bras. de Pessoas com Hemofilia, Ministério da Saúde e World Federation of Hemophilia; Juntos pela AME, Inst. Nac. da AME; Sociedade Bras. de Neurocirurgia; Aliança Distrofia Brasil; Soc. Bras. de Dermatologia

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