Descrição de chapéu África

Joanesburgo é a chave para ir a fundo na história de lutas da África do Sul

Com fama de violenta e sem charme, cidade costumava ser ignorada, mas é vital para contar o que foi apartheid

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A Hillbrow Tower pairando sobre o horizonte de prédios de Joanesburgo, na África do Sul

A Hillbrow Tower pairando sobre o horizonte de prédios de Joanesburgo, na África do Sul Demerzel/Adobe Stock

Joanesburgo

Há uma rua em Joanesburgo que ostenta um título talvez único no mundo. É improvável que alguma outra tenha sido morada de dois vencedores do Nobel da Paz. No caso da Vilakazi Street, falamos do líder político Nelson Mandela, que morou ali numa casinha de dois cômodos, e de Desmond Tutu, arcebispo e ativista que viveu a algumas quadras de distância.

Não para por aí. Foi nessa mesma rua que houve, em 1976, o Levante do Soweto, quando milhares de secundaristas negros se insurgiram contra o apartheid num ato que terminou com centenas de estudantes mortos pela violência policial. O evento ajudou a atrair atenção internacional para as leis segregacionistas da África do Sul, que concediam direitos apenas a brancos, e ajudou a implodir o regime, que por fim caiu em 1994.

Isso ajuda a explicar por que Joanesburgo vale ser incluída em um roteiro de viagem pela África do Sul. Por muito tempo, a grande metrópole do país funcionou apenas como porto de chegada no continente ou ponto de partida para os safáris —os melhores do país estão mais próximos dali do que da Cidade do Cabo. A fama de violenta, dispersa e pouco atraente também afugentava turistas.

Mas é fato que não dá para mergulhar na história da África do Sul sem passar um tempo em sua principal cidade.

Tudo começa em fins do século 19, quando da descoberta de uma gigantesca mina de ouro na região. O minério trouxe um afluxo de gente vinda dos povos colonizadores (britânicos, que dominavam o país, e descendentes dos holandeses, que foram os primeiros brancos a se afixar por ali), além de asiáticos
e, é claro, dos nativos negros vindos do interior, usados como a principal mão de obra.

A babilônia de povos —até o indiano Mahatma Gandhi morou ali por um tempo— não foi bem vista pelo poder local, que logo tratou de estipular áreas delimitadas em que cada etnia poderia viver, num embrião do que viria a se institucionalizar sob a forma do apartheid, nos anos 1940.

Torre pintada na região do Soweto, em Joanesburgo, na África do Sul
Torre pintada na região do Soweto, em Joanesburgo, na África do Sul - Waldorf/Adobe Stock

Brancos tinham plena liberdade de locomoção; os negros ficaram restritos a uma área no sudoeste da cidade, que mais tarde seria conhecida como Soweto (acrônimo para "southwest township").

É o Soweto que guarda as chaves para explicar a trajetória social e política da África do Sul. É recomendável contratar o serviço de algum tour guiado, como aquele oferecido pela empresa Curiocity, para conhecer esse superbairro habitado por mais de 1,2 milhão de pessoas, vivendo em condições das mais diversas.

Por cerca de R$ 287 dá para ir até lá em grupo, com segurança, entrar na casa de Mandela e no Museu do Apartheid e almoçar iguarias locais, com tudo incluso no preço do tíquete.

Kliptown, por exemplo, é de suas porções mais miseráveis. Um passeio vai mostrar a permanência das distorções sociais no país, não muito diferente da realidade das mais pobres favelas brasileiras.

Ali, onde mais de 70% da população está desempregada, vivem milhares em moradias improvisadas, com paredes de metal que fervem no verão e congelam no inverno. Não há coleta de lixo nem água encanada —as pessoas se suprem em poucas torneiras próximas a restos de comida espalhados na ruas de barro. Energia elétrica só à base de gatos.

O Museu Nacional Nelson Mandela, comumente referido como Mandela House, é a casa na rua Vilakazi, Orlando West, Soweto, África do Sul, onde Nelson Mandela viveu entre 1946 e 1962
O Museu Nacional Nelson Mandela, comumente referido como Mandela House, é a casa na rua Vilakazi, Orlando West, Soweto, África do Sul, onde Nelson Mandela viveu entre 1946 e 1962 - Erdbe Ernaut/Flickr

Um projeto social local, o Little Rose Centre, vive de doações para manter uma escolinha para as crianças
e um punhado de computadores para os adolescentes.

Ainda no Soweto, a região de Orlando West é onde fica a rua Vilakazi. Um memorial foi erguido em homenagem a Hector Pieterson, menino de 12 anos que foi uma das crianças assassinadas pela polícia do apartheid durante o protesto dos estudantes. Uma famosa foto em que ele aparece carregado depois de ter sido alvejado correu o mundo e levou diversos países a impor embargos à África do Sul.

A três quadras dali fica a casa de Mandela, hoje transformada em museu. Nas décadas em que o líder político esteve preso por seu ativismo contra o regime, sua família vivia sob constante vigilância da polícia branca. A fachada conserva buracos de balas desferidas para intimidar Winnie Mandela e as filhas do casal.

Já a casa que foi morada de Desmond Tutu, arcebispo que foi uma espécie de apoio espiritual da população negra nos anos de segregação, não está aberta a visitas, mas pode ser contemplada do lado de fora.

O Museu do Apartheid, inaugurado em 2001, fica no caminho entre o Soweto e a região central de Joanesburgo.

O secretário de Estado americano Antony Blinken junto de Antoinette Sithole, irmã do estudante Hector Pieterson, morto pela polícia do apartheid, em visita ao the Hector Pieterson Memorial, no Soweto
O secretário de Estado americano Antony Blinken junto de Antoinette Sithole, irmã do estudante Hector Pieterson, morto pela polícia do apartheid, em visita ao the Hector Pieterson Memorial, no Soweto - Andrew Harnik/Pool via Reuters

Reúne uma coleção impressionante de documentos, fotos e vídeos, além da reprodução de celas de prisão e de veículos blindados que foram empregados pelo governo sul-africano para manter negros alijados do poder. Também mostra a longa luta por direitos civis liderada por nomes como Mandela, Tutu e a cantora Miriam Makeba.

Logo na entrada, duas portas com avisos distintos (uma para brancos e outra para não brancos) permitem ao visitante experimentar a diferença de direitos e padrões de vida que estavam destinados às duas porções da população.

Maboneng é o bairro do momento. Seu nome, que em sotho significa "lugar da luz", faz referência à energia elétrica que tanto chamava a atenção dos povos vindos das vilas remotas para trabalhar nas minas.

Nos anos pós-apartheid, quando brancos abandonaram a região central da cidade e construíram bolhas mais ao norte da cidade, a área passou a ser ocupada por artistas negros, num raro caso em que revitalização não significou gentrificação. O lugar oferece uma amostra da produção contemporânea, com galerias, restaurantes e lojas vendendo roupas criadas por gente local.

Fachadas de rua no bairro de Maboneng, em Joanesburgo, na África do Sul
Fachadas de rua no bairro de Maboneng, em Joanesburgo, na África do Sul - Elio/Adobe Stock

O centro em si de Joanesburgo, não muito longe dali, é algo desolado. Por muito tempo, seus arranha-céus em art déco eram uma demonstração de poder da elite no país, que tentava ali criar uma Manhattan africana. Com a chamada "white flight", o êxodo branco que foi consequência da democratização do país, o lugar foi abandonado e pode ser perigoso, sobretudo à noite, quando fica ainda mais vazio. Passeios com guias locais, portanto, são indispensáveis.

Ao norte, Sandton é um dos bairros mais ricos da cidade e região que concentra os principais hotéis. Numa comparação local, seria algo como o encontro entre a Faria Lima e a Berrini, com altíssimos prédios espelhados, restaurantes, lojas de grife e a bolsa de valores de Joanesburgo.

O coração do bairro é a Mandela Square, praça rodeada por um shopping center refinado, bem próximo dos cinco estrelas da região, como o Hotel DaVinci, que tem acesso direto ao centro comercial e à vari-
edade de opções culinárias.

A maior novidade do entorno é o luxuoso The Leonardo, prédio de 55 andares (o maior de toda a África subsaariana), que mistura unidades residenciais e de hotelaria —suas suítes presidenciais,
com vista de quase 180º para a cidade, costumam ser ocupadas por chefes de Estado.

No topo dele fica um bar a céu aberto que se anuncia como o mais alto de todo o continente. Ali em cima, uma vending machine como aquelas que vendem refrigerantes é toda equipada com minigarrafas de espumantes Moët & Chandon, luxo que não se encontra nem no Brasil —para atestar como Joanesburgo é mesmo assentada em contrastes.

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