Viagem de barco pelo rio Negro enche os sentidos com a vida na floresta

Expedição percorre cerca de 250 km entre mata, rio, igarapés, comunidades indígenas e parques

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

0

Barco de madeira com três andares e frisos verdes passa por águas escuras de rio em dia com neblina Foto: Luciana Coelho/Folhapress

Novo Airão (AM)

No interior da floresta, aonde se chega com o barco da Expedição Katerre partindo de Novo Airão (AM), o braço do rio Jauaperi marca o mapa entre Roraima e Amazonas. A única divisão possível, porém, é mesmo a da cartografia. Em dadas horas do dia, mal se distingue céu e rio, terra e água, planta e bicho.

Seriam quase 300 km entre Manaus e o igarapé Xixuaú caso a distância fosse medida em linha reta, exceto que na Amazônia nada se mede pelo menor intervalo entre dois pontos. O barco navega à velocidade média de 17 km/h, as curvas no curso d’água alongam o tempo, o caminho retorce, força a pausa, pede atenção.

Existe algo de fantástico em atravessar pela primeira vez um rio imenso, agora novamente cheio após a seca que devastou a região em setembro e outubro, e no estado de suspensão a que essa parte da floresta nos convida.

São sons de macacos e pássaros que espiralam pelos tímpanos, indiscerníveis ao ouvido amador; respira-se diferente. E quando se troca a embarcação de cabines confortáveis pela menorzinha para um passeio, o ritmo do canoeiro conduz a outra dimensão.

Essa sensação prevalece nos oito dias de expedição —a Katerre oferece roteiros mais curtos e mais frequentes, além de um para as Serras Guerreiras de Tapuruquara (AM), mais longo do que o do Xixuaú.

É uma viagem na qual nenhum sentido passa incólume. A comida a bordo, preparada por uma equipe de três cozinheiras esmeradas, reúne o que existe de mais fresco no rio e na terra: muito peixe (aruanã, matrinxã, tucunaré, pirarucu e às vezes com a chuva forte ou a correnteza que ganha força entre pequenas quedas, iranha, se o turista fisgar), açaí, farinha de Uarini, frutas locais.

De tudo o que vai perdurar na memória, entretanto, os sons são o mais definitivo. O guia pede atenção para emular um piar de ave. O do macaco não saiu bem, já o do jacaré funcionou e deu ao turista a graça de um diálogo trôpego entre homem e réptil. Em alguns momentos, a água entra na sinfonia, na hora da chuva forte ou quando a correnteza ganha força entre pequenas quedas.

Não se paga pouco pela experiência. As expedições da Katerre custam a partir de R$ 1.200 a diária em cabine compartilhada com pensão completa. Há um tarifário distinto para aqueles que desejarem fretar o barco em grupo e montar o próprio itinerário dentro das possibilidades.

Ruy Tone, o paulistano obcecado por viagens exóticas e sustentáveis que pegou parte dos ganhos da construtora da família e se tornou sócio da Katerre há dez anos, tem pretensões maiores.

Ele quer ajudar a fazer de Novo Airão, cidade que se estende por 25,5 mil km² à beira do Negro e abrange o Parque Nacional Anavilhanas, um polo para quem quer conhecer a floresta por dentro. Isso inclui aumentar a escolaridade da população, injetar na economia local novos produtos para a indústria (especialmente a cosmética) e incutir a vontade de preservar a mata em quem tira dela o sustento.

Por ora o plano vai bem. Já são três os barcos de cruzeiro da Katerre, todos construídos ou adaptados com inspiração nos modelos regionais e com conforto suficiente para garantir uma estadia de luxo nos parâmetros amazônicos.

Há cabines individuais e duplas com banheiro espaçoso, ar condicionado na maior parte do dia, e as refeições memoráveis muito frescas (há ainda um cardápio trivial, bife, torta e pizza, para quem assim preferir). Ruy também gosta de oferecer vinhos de bons rótulos aos passageiros para embalar as conversas na mesa comunitária, pouco antes ou pouco depois de a embarcação ancorar para a noite.

Quando a reportagem participou da expedição, o elenco no barco era eclético. Além do dono da empresa, do guia Josué Basílio e da tripulação, havia um casal de turistas britânicos (a Katerre diz que a maior parte de seu público é brasileiro, mas a procura por estrangeiros é grande); dois brasileiros que contribuem para um projeto ambiental impulsionado pelo empresário paulista e duas técnicas do ICMBio.

Também estava no barco o ativista educacional e ambiental Paul Clark, um escocês que adotou a floresta como casa nos anos 1990 e com a mulher, a italiana Bianca Bencivenni, passou a alfabetizar crianças ribeirinhas que as escolas comunitárias não alcançam.

Essa composição revela muito do que a Katerre pretende oferecer para seus clientes: turismo socioambiental no qual entender as comunidades que habitam as margens do Negro é parte tão importante quanto tomar contato com os animais e a mata.

Cabe ao guia Josué, um indígena Tukano poliglota cheio de boas histórias, conduzir a missão. Instrutor de sobrevivência na selva frequentemente procurado por estrangeiros adeptos da modalidade e por equipes de filmes e realities rodados na região, ele aprendeu com o pai, Adriano, os bônus e os ônus da floresta.

Nesse rol entram quais frutas são comestíveis, fazer fogo a partir de galhos, de qual animal é cada pegada, qual aranha temer, que plantas ajudam em caso de ferimento ou mal-estar, onde pisar, o que ouvir, para que lado olhar.

Quando a lua clareava o rio a ponto de fazer a fauna noturna se esconder, Josué enxergou no meio do capim do igapó um jacarezinho de poucas semanas desgarrado. Tomou o filhote nas mãos, explicou suas características aos turistas e o devolveu a água sem incômodo. Macaco, gavião, morcego, cobra, tucano, micro-rã, não tem animal que escape do olhar do guia.

As horas diárias de navegação comportam a prosa acalorada e também a quietude.

Na ocasião desta reportagem, a viagem incluía a soltura de filhotes do projeto Bicho de Casco (tartarugas e outros quelônios recolhidos das praias fluviais para evitar caçadores e outros predadores), então parte das paradas nas pequenas comunidades visava contabilizar e reintroduzir na natureza os bichinhos.

Outra parte era para contemplar as praias à margem do rio ou para mergulhos no meio do leito. Há ainda uma visita às ruínas de Airão Velho, a antiga sede da cidade onde as plantas tomaram as edificações em um cenário de distopia à la "Last of Us".

Dorme-se no barco, e quem quiser pode passar uma das noites na rede sob uma maloca na reserva do Madadá, perto de onde Ruy pretende construir mais uma hospedagem.

Ele já tem o Mirante do Gavião, um hotel de luxo sustentável composto de cabines e casas na árvore cheias de comodidades e lindamente integradas na paisagem, além de um restaurante de ar modernista e vista escandalosa do rio.

Ruy não é o único a ancorar seus projetos em Novo Airão, a cidade de 15 mil habitantes que dista de Manaus pouco mais de duas horas, ou 115 km de estrada predominantemente asfaltada e esburacada.

Nos últimos anos, o município, com o chamariz do Parque Nacional de Anavilhanas e seu arquipélago fluvial, tem se firmado como polo de turismo sustentável e um dos principais destinos turísticos do estado. Segundo dados da Amazonastur, são mais de 20 mil turistas por ano, número próximo ao da mais conhecida Barcelos, ainda que bem abaixo dos mais 100 mil de Presidente Figueiredo e dos mais de 300 mil da capital, Manaus.

A movimentação fez a oferta de hotéis se diversificar (há do rústico/comunitário ao sofisticado/luxuoso, sempre com ênfase no ecoturismo) e o governo do estado e a prefeitura investirem em melhorias, capacitação e promoção.

A infraestrutura ainda é limitada, embora a expedição da Katerre esteja bem preparada para emergências. Uma intercorrência médica durante esta reportagem foi prontamente manejada com deslocamento em voadeira até a UBS mais próxima, na comunidade amazonense de Moura.

Desde agosto, o Jacaré-Açu conta com sinal de internet, antes limitado às imediações da cidade, em todo o trajeto. Não precisava. A imersão plena no momento e a desconexão com o restante, afinal, são o ponto alto do passeio.

A jornalista viajou a convite da Katerre

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.