Em maternidade para viciada em crack, mãe tem alta, mas bebê fica
Na noite da última segunda-feira, os médicos da maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo, têm uma suspeita: uma mulher de 27 anos que chegou ao hospital em trabalho de parto, acompanhada de um homem agitado, pode ser usuária de crack.
Estado tem apenas 25 vagas para grávidas dependentes
As assistentes sociais são chamadas e conversam com ela, que nega. A certeza vem no dia seguinte, após o nascimento do bebê. A mãe da mulher confirma: a filha é, sim, dependente da droga.
Cenas como essa se repetem, em média, uma vez por semana no hospital. De cinco anos para cá, a maternidade viveu uma explosão de partos de usuárias de crack.
Em 2007 inteiro, foram cinco casos. Neste ano, só até os primeiros sete dias de dezembro, já foram 75.
Não existem dados oficiais de quantas usuárias da droga dão à luz na cidade. A maioria das maternidades não faz esse levantamento.
Por isso, a Leonor, que começou a sistematizar dados a partir de 2007, tornou-se o retrato de um problema de saúde pública que tem se agravado.
Nem sempre os sinais de uso da droga são claros. As suspeitas começam quando as mulheres afirmam que moram na rua, não têm vínculos familiares e não fizeram o pré-natal.
"Elas não querem mal ao bebê. Então quando dizemos que precisamos saber para ele ser tratado de forma adequada, elas assumem", diz a diretora do serviço de neonatologia do hospital, Adryana de Freitas.
Para as que não assumem, os bebês "denunciam": nascem muito pequenos, inquietos, choram muito, tremem e aparentam estar insaciáveis (sugam o leite com muita força) --efeitos da droga, que ainda está no corpo.
PROTOCOLO
Para melhorar esse atendimento, os funcionários da maternidade finalizaram na semana passada um protocolo --ainda mantido em sigilo. A ideia é que se descubra a parturiente usuária de drogas mais cedo (até com exames laboratoriais, se preciso).
O protocolo pode passar a servir de modelo para maternidades de todo o Estado.
A maior parte das mulheres que dá à luz na maternidade não sai de lá com seus filhos --isso só acontece quando o hospital tem a certeza de que deixar o bebê com a mãe não comprometerá o futuro da criança.
Neste ano, o hospital acionou a Vara da Infância e da Juventude para avaliar o destino de 55 dos 75 filhos de dependentes nascidos lá --o processo geralmente demora uma semana e, quando finalizado, a mãe já recebeu alta, mas pode visitar o bebê.
Segundo a direção, em 80% das vezes a Justiça manda esses recém-nascidos temporariamente para abrigos.
A situação, no entanto, pode se tornar permanente, caso a mãe demonstre para a Justiça não ter condições de criar a criança.
Apenas neste ano, 25 bebês filhos de dependentes de crack que nasceram na Leonor foram colocados para adoção. Em 2007, foram dois, segundo a Justiça -não há dados sobre a cidade.
A bebê da mulher de 27 anos que chegou ao hospital na última segunda-feira ainda aguardava a decisão da Justiça na última sexta. A mãe já não estava mais lá.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
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DISCRIMINAÇÃO
O desembargador Antonio Carlos Malheiros, coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, diz que surgiu um novo grupo de discriminação no universo da adoção: as crianças filhas de dependentes de drogas.
Para Malheiros, muitos casais hoje superam as resistências que haviam antes na adoção de negros, irmãos e até crianças mais velhas, mas relutam em aceitas filhos de viciados em drogas.
Segundo ele, a Justiça não está mais rigorosa ao retirar filhos de mães dependentes, é o número de casos é que está aumentando.
Folha - A Justiça está mais rigorosa?
Antonio Carlos Malheiros - Não acho que a Justiça está mais rigorosa. O número de casos é que está aumentando e o juiz não pode arriscar. O crack é absolutamente devastador em todos os sentidos e dificilmente quem é viciado vai se recuperar.
Muitas vezes, a mulher não quer o bebê, a gravidez não foi planejada. E quando quer, é uma situação de risco, não tem como. Provisoriamente se suspende o poder familiar e vamos ficar aguardando um milagre, que essa mãe se apresente e diga que está limpa. O que a gente mais quer é que a criança fique com a família. A lei determina que isso tem que acontecer em um período de até dois anos. Se não acontece, as crianças são colocadas em adoção, o que não significa, necessariamente, serem adotadas.
Como assim?
O que tem acontecido é que as pessoas que querem adotar estão vencendo seus preconceitos. Casais brancos estão adotando mais crianças negras. Crianças mais velhas e com irmãos também estão sendo mais adotadas. Mas quando são crianças filhas de usuárias de drogas, as pessoas caem fora. É um novo grupo alvo de discriminação. Isso ainda não está acertado cientificamente, mas eles temem que os filhos usuários de drogas tenham um mal mental, ou que já nasçam dependentes do crack. A maioria recusa. Fazemos palestras com as pessoas que querem adotar, e um esforço muito grande, mas o medo deles também é muito grande.
O ideal seria levar métodos contraceptivos? Injeções que fossem dadas a cada três meses, por exemplo?
Há uma grande discussão sobre isso. Se se conscientiza a mulher a fazer isso, Deus seja louvado! Mas na marra é complicado. A mulher é dona do corpo dela, assim como não é obrigada a fazer cirurgia para não ter mais filhos. Mas convencê-la a aceitar, é complicado. Ela pode até tomar a injeção na primeira vez, mas na segunda pode perder o interesse. Convencer pessoas viciadas em drogas é extremamente difícil. Já se discute se em casos extremos não se deve obrigar a mulher a fazer a cirurgia. Muitos também falam em internação compulsória: em que se interna porque ela está [gestando] uma criança. Serviria para que ela fosse ao hospital e fizesse o pré-natal. Mas acho os resultados dessas internações na marra negativos.
Como resolver a questão?
Tudo começa com a existência de um Estado ausente nas vidas das pessoas. Não se leva escolas de qualidade, serviços de saúde próximos a elas, opções de lazer e cultura aos mais jovens. Quando isso começar a ser feito, começaremos a ver um futuro melhor. Enquanto isso não ocorrer, vamos trabalhar sempre no pronto-socorro, tentando salvar a situação, mas é mais difícil.
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CRIANÇA TIRADA
Para Dartiu Xavier da Silveira, diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp, retirar os filhos de mães dependentes de crack é preconceito. Para ele, a droga é usada como justificativa para que se tire um bebê de uma mãe porque ela é miserável.
Folha - O que o senhor acha de a Justiça retirar os filhos de viciadas em crack?
Dartiu Xavier da Silveira - Retirar a criança é uma visão preconceituosa. Essa mulher está doente, não deve ser tratada como uma criminosa. O problema da cracolândia não é a droga, mas a falta de acesso à moradia e à saúde. A criança vai ser tirada da mãe porque ela é miserável e está na rua. Há um uso indevido do argumento de que é a droga [o problema] para justificar a retirada de um filho de uma mãe porque ela é pobre. Atendo pessoas de classe média, classe média alta com o mesmo vício e isso não acontece [entre elas]
Já se discute a internação compulsória dessas grávidas como medida para proteger as crianças. O que o senhor acha disso?
A internação compulsória não resolve. Ela é questionável. O processo de largar a droga vem de um investimento interno da mulher, por isso muitas recaem depois. Há um problema muito sério, uma dimensão até alarmista com as mães dependentes de crack sendo vistas como degeneradas. Mas não existem trabalhos científicos que demonstrem que uso do crack e da cocaína na gestação trazem danos mentais para o bebê, como acontece com o consumo do álcool, que é visto como uma droga legal. A questão do consumo do álcool é muito mais problemática. Então, quando se fala de internação compulsória, ela deveria se estender às dependentes de álcool também.
E qual seria a solução?
Ajudar essas mães a resgatar a cidadania, dar acesso à moradia, ao tratamento ambulatorial. Teria que haver residências [terapêuticas] para a reinserção social da mãe, não a retirada dos filhos. Lógico que se for uma mãe psicótica, fora de si, que coloca em risco a criança, é outra coisa. Mas isso corresponde a menos de 10% dos casos. A maioria só tem uma doença, que é a dependência química.
E o que o senhor acha da ideia de o Estado levar métodos contraceptivos injetáveis a cada três meses para atender a essas mulheres?
É uma medida preventiva que ajuda a lidar com a gravidez indesejada. É uma estratégia complicada, mas não é inviável. Mas não pode ser uma medida higienista. O governo deveria levar a elas alimentação, acesso a cuidados básicos e oferecer como opção o método contraceptivo.
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