Opinião: Amazônia devastada não é, necessariamente, causa da seca em SP
Com a seca que se abatia sobre a Grande São Paulo e boa parte do Sudeste até a chegada de fevereiro, disseminou-se a noção de que sua causa imediata era o desmatamento da Amazônia.
Outra explicação a fincar raízes no senso comum punha a culpa na mudança do clima mundial.
A segunda ideia foi devidamente desidratada -com perdão pelo trocadilho- por vários especialistas. Entre eles, o climatologista Carlos Nobre, que em entrevista à Folha em 26 de janeiro afirmou ser difícil atribuir ao aquecimento global um extremo climático isolado como a estiagem no Sudeste.
Secas como essa já aconteceram muito antes que se começasse a falar em aquecimento global. Ou seja, não são incompatíveis com as variações naturais do clima. Mas também são compatíveis, se sua frequência aumentar (como parece ser o caso), com as predições dos modelos climáticos com a temperatura média da atmosfera em elevação.
Dito de outra maneira, o júri ainda não alcançou um veredicto. Quando o moroso tribunal da ciência chegar a uma decisão, poderá ser tarde demais para fazer alguma coisa a respeito.
A explicação mais popular, contudo, parece ser a do desmatamento da Amazônia. Ela tem dois pés na ciência, mas só chegou aonde chegou impulsionada pela prevenção e pela precipitação (sem trocadilho), as principais fontes do erro, segundo Descartes.
A primeira pegada científica se encontra na noção de "rios voadores", uma metáfora feliz cunhada por outro climatologista, José Marengo. É o apelido das correntes de ventos úmidos que, no mundo da meteorologia, são
conhecidos como jatos de baixos níveis.
As cabeceiras dos rios voadores estão no oceano Atlântico. A água do mar evapora e, carregada pelos ventos alísios, chega à Amazônia oriental, onde cai na forma de chuva. A própria floresta amazônica se encarrega de reciclá-la continuamente, por meio da evapotranspiração (água extraída do solo pelas raízes e liberada nas folhas).
Forma-se uma coluna móvel de vapor com três quilômetros de altura e milhares de extensão, com fluxo de 3,2 milhões de litros por segundo (cem vezes a capacidade de produção do sistema Cantareira com as represas cheias).
Essa massa úmida se desloca mais ou menos no sentido leste-oeste e, ao dar com a barreira da cordilheira dos Andes, se desvia para a parte central da América do Sul, Centro-Oeste e Sudeste brasileiros incluídos. A contribuição desses rios voadores para as chuvas na região, contudo, mal começa a ser estudada e medida.
A segunda pegada científica é a bem estabelecida relação entre a perda de cobertura florestal e a diminuição das chuvas. Isso foi medido em vários locais, naqueles 18% da Amazônia brasileira já devastados.
Modelos climáticos indicam que a perda de precipitação na própria região amazônica ficaria entre 15% e 30%. Há também estudos apontando que, se o desmatamento ultrapassar o limiar de 40% da floresta, ela poderá entrar em colapso irreversível e se transformar numa espécie de cerrado, bem menos denso e úmido.
Junte-se à receita a previsão de que o aquecimento global pode reduzir as chuvas na Amazônia, independentemente do grau de devastação, em 40% a 45% até o final deste século.
Misture-se tudo com a ânsia por encontrar a arma fumegante capaz de convencer todos de que a mudança do clima já está em curso, e tem-se aí o caldo de cultura perfeito para concluir que os rios voadores secaram e deixaram a Grande São Paulo à míngua.
Pode bem ser verdadeiro, mas não está provado. O nexo causal, quando ainda carece de comprovação empírica, é uma boa hipótese de pesquisa. Se afirmado sem o apoio de dados, está no mesmo patamar das crenças e lendas -e foi por água abaixo com as chuvas torrenciais de fevereiro.
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