Olimpíada será vexame se Rio não integrar favelas, diz antropóloga
A Olimpíada de 2016 será um vexame mundial para o Rio de Janeiro, se a cidade mantiver como única solução para integrar as favelas a ocupação policial. Para a antropóloga americana Janice Perlman, contudo, ainda há tempo de os Jogos serem, ao contrário, um "momento de glória".
As favelas são a alma da cidade, diz, e devem ser entendidas como seu ativo. "A diversidade é o que faz o Rio ser maravilhoso. Estigmatizar um grupo de pessoas excluídas, apropriar-se de sua força e sua arte e jogá-las no Minha Casa, Minha Vida não é a minha ideia de solução", afirmou, em entrevista à Folha.
Perlman desembarca no Rio em dezembro para sua terceira temporada de estudos sobre as favelas cariocas. Ela vai intercalar seis meses no Brasil e seis meses em Nova York, onde mora, durante três anos, para observar o legado dos Jogos Olímpicos nos morros.
A pesquisadora frequenta o Brasil desde a graduação. Começou sua pesquisa em povoados de pescadores na Bahia. Depois, entre os anos 1960 e 1970, viveu nas favelas de Catacumba (zona sul), Nova Brasília (hoje uma das áreas mais violentas do complexo do Alemão, na zona norte) e Vila Operária, em Caxias, na Baixada Fluminense.
Perlman teme que a crise econômica no país traga retrocessos e escancare a "falsidade" de se definir classe média pelo poder aquisitivo, e não pela igualdade de oportunidades e de proteção perante a lei.
*
Folha - O que a senhora espera encontrar no Rio?
Janice Perlman - Comecei o estudo em abril, maio. Em junho, quando estive no Brasil, percebi uma depressão, um desespero. Uma das minhas ideias é tentar descobrir quais são as coisas boas que estão sendo feitas, a despeito das dificuldades, como ações da juventude, parcerias com o governo e a iniciativa privada pouco conhecidas. Quero acompanhar como estão sendo feitas as decisões que vão determinar o futuro das favelas cariocas.
O que a senhora espera ver de mudanças nas favelas?
Quando estudei as UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) do ponto de vista da comunidade, de 2010 a 2012, havia algum ceticismo sobre a ocupação militar. Mas as pessoas tinham esperança de poder ir e vir e de ter a chance de se profissionalizar e educar melhor seus filhos com a UPP Social, uma série de projetos sociais, de saúde e educação que deveriam ter acompanhado a intervenção militar. Mas somente a parte policial aconteceu. Tenho pena, porque levou a abuso de poder de algumas pessoas e abriu a porta de volta para brigas dentro de comunidades. Agora, os moradores sempre dizem que, no dia em que a Olimpíada acabar, as UPPs e o tráfico vão vão se cruzar na entrada da comunidade, os traficantes voltando e os policiais saindo.
Há como reverter?
Posso jurar que alguns moradores e líderes de favela são igualmente ou mais brilhantes que os meus professores de doutorado e eles estão usando a inteligência para sobreviver, mas poderiam usá-la para implantar suas ideias de inovação, que vão resolver os problemas da cidade.
Ouvi críticas sobre o dinheiro que foi gasto no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) sem que a comunidade tenha sido consultada, como com o teleférico no Complexo do Alemão. Mas, como já foi gasto, vamos supor que todo o dinheiro de agora até a Olimpíada seja usado para ajudar os seres humanos a saírem do setor informal. Os turistas poderão entrar no morro e o governo poderá dizer "sim, foi nossa ideia".
Não sou a favor de cidades sem favelas, como a ONU estabelece em seus objetivos e metas. Sou a favor da igualdade de oportunidades. Se todos vivessem em quadras e conjuntos, a cidade não teria graça. A diversidade é o que faz o Rio ser maravilhoso. Estigmatizar um grupo de pessoas, apropriar-se de sua força de vida, de seu estilo, sua arte, sua música, eliminá-los, jogá-los no Minha Casa, Minha Vida, que são muito ruins, muito feios, construídos de forma precária, não é a minha ideia de solução. É ridículo levar essas pessoas para cada vez mais longe, porque elas têm que voltar para a cidade para trabalhar.
Tem aumentado a segregação?
As duas razões pelas quais ainda não houve gentrificação, pelas quais a classe média alta e intelectuais não compraram terrenos nas favelas, até agora, são a falta de títulos [de propriedade] e a ameaça de violência. Vai ser muito fácil pessoas ricas oferecerem dinheiro que parece muito para os moradores. Mas, uma vez entregue o dinheiro, a família descobrirá que esse dinheiro não vai durar muito, porque é caro morar em regiões mais afastadas e acessar o mercado de trabalho.
Na ditadura, o governo removeu favelas e botou seus moradores em conjuntos habitacionais afastados, o que foi e é um grande fracasso até hoje. Agora, as favelas bem localizadas que as políticas públicas não eliminarem serão alvo da remoção branca. O preço vai subir e o morador não vai conseguir ficar lá.
Como impedir esse fluxo?
É muito complicado quando o morador de baixa renda se separa de sua rede de apoio, então está se discutindo formas de cooperação e de posse de terrenos que seja coletiva. A tendência em todas as cidades do mundo é, cada vez mais, a segregação espacial, e o debate é quais são os caminhos que podem dar à pessoa segurança para manter a sua casa no mesmo lugar sem que haja títulos individuais. Esse assunto é muito quente, porque os órgãos da ONU, que estão 25 anos atrasados no seu pensamento, fazem propaganda para se dar títulos. Não é isso mais o que se discute.
Os preços de aluguel e compra em favelas com UPPs já têm subido muito, e o fluxo dos moradores para fora não será bom para eles. Quero pensar em como combater isso de maneira não paternalista. Não vou inventar uma solução, vou tentar entender as ideias das pessoas que estão pensando muito nisso e tentar ver se tem um caminho aceitável para os tomadores de decisão.
Qual é a visão estrangeira sobre o Rio?
Os problemas econômicos e a corrupção estão dando uma imagem triste e negativa, mas o governo pode mostrar força de vontade e fazer parcerias honestas com a comunidade. O megaevento pode ser um momento de glória. Como a atenção mundial estará voltada à Olimpíada, todo jornal, rádio, televisão, Twitter, Skype estará olhando o Rio.
Acho que há grande oportunidade de aprender com os erros da ocupação policial, que tornou a vida na favela muito pior. E tentar o contrário, que seria aceitar que as comunidades são vitais. A cidade nunca terá a vibração, a produtividade, a paixão, a personalidade única carioca que tem, se as favelas forem removidas. Então, em vez de policiá-las ou removê-las para a Olimpíada, talvez seja a hora de abraçá-las como um dos maiores ativos do Rio e parte da solução.
Várias ONGs estão organizando visitas de jornalistas do mundo inteiro. Vai ter gente hospedada em AirBnB e pousadas dentro das favelas. Então, se o governo investir, sem usar medidas punitivas e aliar programas sociais muito óbvios, poderá fazer com que as visitas a favelas sejam positivas não somente para a comunidade, mas também para o governo. Da forma como está, o estrangeiro verá um papel negativo do Estado e estou dizendo que ainda dá tempo de fazer uma imagem mais de parceria.
Como a senhora espera que a crise no país afete as favelas?
O momento atual no Brasil, com crise econômica e política, corrupção a nível nunca imaginado e um desespero geral, é ruim para todos, mas sempre pior para os excluídos. Sempre os mais vulneráveis sofrem mais com crises. Pode desmascarar a falsa impressão de que tirar pessoas da pobreza e levá-las para a classe média é uma ação medida pelo poder de consumo de eletrodomésticos e eletroeletrônicos. É preciso garantir as mesmas oportunidades de as pessoas desenvolverem os seus potenciais e serem protegidas igualmente perante a lei.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Acompanhe toda a cobertura dos blocos, festas e desfiles do Carnaval 2018, desde os preparativos
Tire as dúvidas sobre formas de contaminação, principais sintomas e o processo de imunização
Folha usa ferramenta on-line para acompanhar 118 promessas feitas por Doria em campanha