Sonho de jogar na China fracassa e jovens carentes recorrem à Justiça
Foram Chico e Calô, duas calopsitas, que ajudaram a família de Rodrigo Santana a tirar a corda do pescoço.
O problema começou no final de 2015, quando Rodrigo parecia ter ganhado na loteria: aos 20 anos, iria estudar inglês, formar-se em administração e, principalmente, treinar futebol com tudo pago em Taiwan (ilha que funciona como um país, mas é considerada pela China como uma "província rebelde").
Rodrigo largou o bico de empacotador com que ajudava os pais, se despediu da namorada e embarcou no que prometia ser a virada de sua vida, com 16 colegas de famílias carentes da região oeste da Grande São Paulo.
Menos de um ano depois, 9 dos 17 compraram a própria passagem e voltaram para casa. Agora, tentam se desvencilhar de dois pesos: a dívida contraída pelas famílias para pagar até R$ 7.000 pelos voos e uma multa que está sendo cobrada pelos organizadores –a de Rodrigo é de US$ 8.000, o equivalente a R$ 25 mil.
Marcus Leoni/Folhapress | ||
Rodrigo Araújo e seu pássaro Calô em sua casa, em Cotia, região oeste da Grande SP |
FILHOS DE BUDA
O intercâmbio foi organizado pela Blia (Associação Internacional Buddha´s Light do Brasil), ONG ligada ao templo Zu Lai, em Cotia (Grande São Paulo), que incorporou o Projeto Cruzeiro, onde vários dos participantes treinavam futebol.
A organização criou o time Filhos de Buda - Blia F.C., que disputava torneios no Brasil e fez uma turnê de apresentação pela Ásia no final de 2015.
Na volta dessa viagem, a Blia abriu inscrições para atletas interessados estudar na Universidade Nanhua, na província de Chiayi (centro-oeste de em Taiwan).
O grupo também formaria o time de futebol da universidade, que faz parte da rede internacional de entidades fundada por Hsing Yun, assim como a ONG e a ordem budista Fo Guang Shan, à qual o templo Zu Lai é filiado.
Rodrigo, que tentava a sorte no esporte desde pequeno, viu na oportunidade uma escala promissora para o mercado do futebol chinês, que até 2020 deve ultrapassar US$ 400 bilhões (R$ 1,2 trilhão), com 20 mil centros de treinamento e 70 mil campos, segundo os planos de Pequim.
Fabio Braga - 11.dez.15/Folhapress | ||
Templo budista Zu Lai, ao qual é ligada a ONG Blia |
SONHO E REALIDADE
Nem todos os integrantes do Filhos de Buda F.C. se interessaram pela viagem, e a Blia recrutou atletas que não faziam parte de seu time, como Anailson Lira, então com 19 anos de idade, que jogava em uma escola municipal no km 15 da via Raposo Tavares.
Formado um time, o grupo embarcou para a China e desembarcou em Hong Kong em 3 de maio de 2016, para uma segunda rodada de apresentações. A imprensa regional noticiou 12 jogos em 23 dias, organizados pelas fundações Soong Ching Lin (ligada ao governo) e Mestre Hsing Yun.
O patrocínio foi do grupo estatal de investimentos Citic, segundo os jornais locais.
Da China foram a Taiwan, e aí o vento começou a virar.
Antes de chegar à universidade, os jovens foram alojados por cerca de dois meses no templo Fo Guang Shan, santuário budista conhecido por suas refeições vegetarianas feitas em silêncio total.
Lá, seus passaportes foram recolhidos pelos organizadores, dizem Rodrigo, Anailson e outros três colegas —Wesley Caldas, Weslley Silva e Renato Santos.
Por causa do relato de retenção de passaportes, o Ministério Público de São Paulo encaminhou o caso ao Ministério Público Federal.
No processo, há reprodução de correspondência em que os jovens se queixam aos organizadores da falta do documento.
Procurados ao longo de dois meses, representantes do templo e da Blia não quiseram falar com a Folha.
Na contestação feita ao processo que corre na 2a Vara Cível de Cotia, os advogados da ONG dizem que os passaportes foram recolhidos para fazer a matrícula na universidade e depois devolvidos e que todos os participantes assinaram um contrato que previa multa em caso de desistência.
Os cinco jovens também afirmam que precisavam servir como garçons no refeitório do templo, que a comida era racionada e lhes fazia mal e que o tratamento que recebiam quando se machucavam não fazia efeito.
"A gente precisava se ambientar aos poucos, e eram só três refeições por dia. Nenhum jogador do mundo tem só três refeições por dia. E o treino era ao meio-dia, num calor de 40 graus. Quando pedimos filtro solar, eles riram", diz Renato, 24, o capitão do time.
MULTA QUESTIONADA
Renato foi o primeiro a pedir para voltar, dois meses depois da chegada. "No Brasil, fui enganado por empresários muitas vezes. Em Taiwan, quando me disseram que não estávamos lá para jogar futebol, percebi que acabaria me prejudicando mais uma vez."
O jogador afirma que voltou 5 kg mais magro.
Rodrigo, segundo a família, emagreceu ainda mais. Dos habituais 70 kg, chegou a 59 kg, segundo seu pai, Luiz Gonzaga Andrade de Araújo, 52. "No primeiro mês, todos estavam felizes. De repente, ele passou a ligar todo dia, querendo voltar."
Com a insistência, Mara, mãe do Rodrigo, também começou a ficar aflita, e os pais decidiram comprar a passagem de volta.
Os R$ 4.815 necessários Araújo levantou parte com o dono da churrascaria em que trabalha, parte com um de seus irmãos. "O resto parcelei no cartão de crédito."
Um mês depois de sua volta, Rodrigo recebeu pelo correio uma convocatória do escritório de advocacia Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich e Schoueri para discutir "valores devidos" e eventuais descontos ou parcelamentos.
"Mostraram uma listinha cobrando alimentação, chuteiras que eles ganharam de um patrocinador... não tinha nenhum recibo. Se foi tudo doado, por que estão me cobrando? Quando disseram que era 8.000, pensei em vender meu carro, que ainda estou pagando. Mas eram dólares! Só se eu vendesse minha casa", diz Araújo.
NA JUSTIÇA
Com outras quatro famílias, ele contratou a advogada Soraya Barbosa, que entrou na Justiça com pedido de anulação do contrato e indenização por danos morais.
"Não houve 'desistência', como pretende o templo Zu Lai. Os garotos tinham que voltar, porque estavam machucados, sem tratamento eficaz e sem alimentação adequada", diz ela.
Barbosa também questiona o fato de uma entidade que se diz sem fins lucrativos por atender comunidades carentes possa cobrar multas equivalentes a mais de um ano de renda das famílias.
"A Blia tirou daqui garotos que treinavam para jogar futebol desde pequenos, manteve-os precariamente num templo, tendo até que trabalhar como garçons, deixou-os sem dinheiro e, o pior, sem passaporte."
Enquanto a causa corre na 2ª Vara Cível de Cotia, Araújo passou a dar hora extra para quitar a dívida com o patrão. Mara organizou bazares e complementou com a venda de gelinhos para a vizinhança, por R$ 1 cada um.
Chico e Calô fizeram sua parte e ajudaram a quitar a dívida do cartão de crédito: desde o começo deste ano, chocaram sete filhotes, que Araújo conseguiu vender por R$ 150 cada.
Rodrigo foi contratado em março como auxiliar de expedição de uma rede de farmácias. Diz que vai devolver o que os pais gastaram, mas que ainda sonha em fazer carreira como jogador.
"Enquanto as minhas pernas aguentarem, vou continuar tentando".
OUTRO LADO
Daniel Crivelli - 5.fev.2017/FramePhoto/Folhapress | ||
Comemoração do início do Ano Novo Chinês no templo Zu Lai, em Cotia (SP) |
Procurados por telefone e por e-mail desde o começo de março, os organizadores do intercâmbio não quiseram falar com a Folha.
Na contestação feita pelos advogados da Blia, anexada no dia 20 de abril ao processo em curso na 2ª Vara Cível de Cotia, a defesa nega todas as queixas dos jogadores.
O texto diz que as refeições "eram fartas e balanceadas" e que, mesmo no templo budista, era servida carne. "O emagrecimento é consequência natural do corpo em fase de adaptação à nova cultura, ao clima, aos temperos."
Os advogados afirmam também que as lesões dos jovens "são extremamente comuns e inerentes ao próprio esporte" e foram tratadas.
Os participantes e suas famílias foram informados de que "o objetivo do projeto era estudar e não somente jogar futebol", argumentam.
Não informam, porém, por que foram recrutados apenas jogadores desse esporte nem por que o contrato estipula uma multa caso os participantes fossem contratados por uma equipe de futebol, amadora ou profissional.
Sobre a multa, a defesa diz que integra o contrato assinado livremente pelos jovens.
PROBLEMAS DE ADAPTAÇÃO
A reportagem encaminhou ao templo Zu Lai e à ONG Blia perguntas específicas sobre a queixa dos participantes de que ficaram sem os passaportes em Taiwan e de que tiveram que trabalhar servindo refeições três vezes por dia no templo Fo Guang Shan.
Também pediu informações mais precisas sobre os gastos com as viagens -cuja restituição está sendo cobrada dos participantes.
Às famílias, foi passada uma lista impressa, com valores em dólares taiwaneses e uma conversão feita a caneta. O valor cobrado pela ONG, em um dos casos, chega a R$ 28.593.
Nenhuma das questões específicas foi respondida pela Blia.
Segundo a assessoria de imprensa, "como é a primeira turma, houve dificuldade de adaptação ao clima, fuso horário, alimentação e disciplina - o que ocasionou algumas dificuldades, e alguns ajustes forem feitos, a partir destas dificuldades de adaptação".
"Uma nova turma está sendo formada - a segunda. Foi decidido que qualquer reportagem sobre o programa será feita somente após a adaptação desta segunda turma", diz a nota.
Os organizadores não quiseram informar quem patrocinou as viagens de exibição em 2015 e 2016 nem que medidas estão sendo tomadas para evitar problemas na segunda edição do intercâmbio, em fase de seleção.
Não foi atendido pedido de entrevista com os jovens que ainda estão em Taiwan.
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