Mães que internaram filhos por crack têm destinos opostos após 4 anos
No final de janeiro de 2013, um antigo casarão imponente recebia diariamente um grupo de mães em busca de auxílio do Estado. Para muitas delas, era a tentativa mais drástica no longo caminho que percorriam para livrar seus filhos do vício do crack: a internação à força.
Ali, no Bom Retiro, região central de São Paulo, começava a funcionar, no Cratod (Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas), um plantão com juiz, promotor, defensores públicos e médicos incumbidos de avaliar os casos em que essa medida extrema poderia ser aplicada.
Após sucessivas ações policiais na cracolândia, a alternativa apresentada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB) trazia alguma esperança a familiares de dependentes químicos e também aos usuários de crack. Era o início do programa que depois seria batizado como Recomeço. Até 2016, 11.500 pessoas foram internadas para desintoxicação. Dessas, uma em cada cinco contra a vontade.
Quatro anos depois, a reportagem localizou duas mulheres entrevistadas pela Folha naquela época. Até aquele ponto, a trajetória dessas mães era parecida. O que se seguiu, entretanto, foi bem diferente.
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PELA MÃE, JOVEM LARGOU O CRACK
"Eu tô pedindo. Estou desde os nove anos nesta vida. O que tenho que fazer para que eles entendam que eu preciso de ajuda? Trazer um cachimbo de crack e fumar aqui, na frente deles?"
A frase foi dita à Folha em janeiro de 2013 por Thomas Watanabe Fantine, então com 20 anos, em frente ao Cratod (Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas).
Quando bateu na porta do local, que oferece internação, ele já fumava pedra havia 11 anos. O primeiro trago foi aos nove, quando um dos meninos que frequentavam o Vale do Anhangabaú chegou com a novidade. Dali em diante, ele passaria a perseguir aquela sensação de alívio várias vezes por dia.
Bruno Santos/Folhapress | ||
Sheyla Watanabe com o filho Thomas |
Thomas chegou a passar um longo período morando em um casarão abandonado na cracolândia, conhecido como "o buraco". Quando ele e outros viciados foram tirados dali, a prefeitura removeu toneladas de lixo junto.
"Eu cachimbava e achava que estava em um palácio, mas era tudo ilusão", diz.
Em um impulso de lucidez, pediu ajuda no Cratod. Ouviu de um médico que a prioridade era para casos mais graves que o dele. Thomas, então, anunciou: "Vou voltar para a cracolândia".
Na época, a mãe do rapaz, Sheyla Watanabe Fantine, 49, chegou a duvidar que ele pudesse se recuperar um dia. "Do jeito que estava, era que nem um zumbi. Sabe o zumbi do clipe do Michael Jackson?"
Todos os sábados, procurava Thomas na cracolândia para levar roupa e pagar um almoço, que às vezes era o único da semana.
Ela acompanhou o rapaz na nova tentativa de internação. "Ele pegou o crack e colocou em cima da mesa. Falou: 'Já que vocês não vão me internar, então vou acabar de morrer aqui mesmo'."
Surtiu efeito: ele conseguiu uma vaga. Quando saiu, cerca de um mês depois, deu nova entrevista à reportagem afirmando que o tempo era pouco para largar o vício de uma vida. "Estava medicado ainda e acendi a primeira pedra de crack", lembra Thomas. Voltou a morar na rua, daquela vez na praça da Sé.
Para a mãe, na época do tratamento, o rapaz não estava pronto para largar o vício. Ainda.
Isso mudou quando ficou sabendo que Sheyla estava internada em estado grave. A pressão alta afetou os rins, que pararam de funcionar.
Thomas diz ter se trancado na casa da avó. "No começo, eu chorava", lembra ele. "O que doía mais era saber que é só você pisar na rua para achar a droga e toda aquela sensação ruim parar de uma vez", diz.
Mas ele resistiu. Thomas diz que já não fuma crack "há uns anos". Na "vida pós-cracolândia", já teve vários empregos, o último deles como ajudante de pedreiro.
De pé na calçada em frente à casa em que vive com a avó na zona norte de São Paulo, sorriu ao ver fotos antigas suas mostradas pela reportagem, nas quais parecia bem mais abatido.
A vida mudou quase totalmente desde então. Mas há coisas que nunca somem. "A vontade de fumar ainda é grande. Se eu falar que é pouca, estou mentindo", diz Thomas.
FILHO MORREU APÓS INTERNAÇÕES
Janicleide Xavier, 44, vestia roupas escuras e falava pausadamente. "Quando eu vejo meu filho me agradecer por eu não desistir dele, isso vale a pena. É o começo de uma nova esperança para mim."
Veiculado há quatro anos, o vídeo é uma propaganda do programa Recomeço, do governo Geraldo Alckmin (PSDB), baseado na internação e abstinência para tratar a dependência das drogas.
Janicleide foi uma das mães que viu na possibilidade de internar o filho contra a vontade a chance de afastá-lo do crack. Jeferson Araújo, na época com 23 anos, sofria de esquizofrenia, o que dificultava o tratamento.
Logo na primeira internação pelo Recomeço, o rapaz fugiu pela porta da frente. A mãe insistiu. Após dois meses de desintoxicação, saiu da clínica cheio de sonhos e com aparência saudável.
Bruno Santos/Folhapress | ||
O filho de Janicleide Xavier chegou a ser internado seis vezes antes de morrer neste ano. |
Janicleide e o filho deram várias entrevistas, e posaram abraçados para um fotógrafo da Folha. "É difícil. Às vezes eu tenho que colocar aquele poder superior, a mente em paz e falar: Deus, só por hoje eu não vou usar", afirmou Jeferson na época.
Ele sonhava ser modelo. Ganhou um book e disputou uma vaga numa agência. "Quando meu filho foi fazer o teste final, ele estava muito medicado, e isso atrapalhou a fala. O Jeferson, quando tinha uma frustração, saía zanzando por aí", diz.
A mãe diz que o filho passou por ao menos outras quatro internações depois daquela decepção, todas involuntárias. "Meu filho tinha uma cabeça de criança. Ele falava que não queria ser internado. Ia com raiva, mas ia."
Se tivesse oportunidade, porém, Jeferson fugia. Depois de uma das vezes, acabou preso por tentativa de roubo –ficou mais de um ano na cadeia.
Os períodos em casa eram turbulentos, diz Janicleide. No meio das crises, o rapaz ficava agressivo. Agrediu o pai. em uma ocasião.
A mãe diz que Jeferson ficou longos períodos sem usar crack ou cocaína, mas manteve o uso da maconha. "Pode ser que tenha usado [crack] no último mês, porque ele já estava totalmente desligado desse mundo", afirma. "Tanto que no dia que morreu falou que estava vendo pessoas mortas e pessoas vivas."
Após fugir de um hospital, onde era tratado de doença pulmonar, Jeferson foi encontrado morto na rua. A causa foi parada cardiorrespiratória.
Olhando para trás, Janicleide avalia como positivos os períodos de internação pelo Recomeço, mas diz que as estadas eram muito curtas para um caso grave como o dele. "Por que deram alta para o meu filho se ele não estava bem ainda?", questiona.
Para ela, a principal lacuna está no tratamento pós-internação. Sempre que voltava para casa, em Cotia, na Grande São Paulo, Jeferson era encaminhado a um centro psicossocial do governo. Sem tratamento adequado, diz, o rapaz saía de uma crise para outra.
Enquanto lutava contra o vício do filho, Janicleide dedicou-se a estudar o assunto e passou a ser procurada por familiares de dependentes. Mesmo após a morte de Jeferson, ela pretende continuar ajudando mães que estão na mesma situação que ela viveu um dia.
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