Poeta Ana Miranda adaptou conto de Kafka para a "Folhinha"
Leia adaptação de um conto de Franz Kafka da poeta e romancista Ana Miranda.
O texto foi publicado em 7 de fevereiro de 1998, na "Folhinha".
- No aniversário de 50 anos, 'Folhinha' relembra sua história e tenta imaginar o futuro
- Clarice Lispector, Gilberto Freyre e outros nomes ilustres escreveram para a 'Folhinha'
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UMA CRUZA
Tenho um curioso animal que é metade gatinho, metade cordeiro. Ganhei de herança do meu pai.
Comigo o bichinho se desenvolveu completamente. Antes ele era mais cordeiro do que gato. Agora é metade, metade. Ele tem a cabeça e as unhas do gato. Tem a forma e o tamanho do cordeiro. Os olhos deles, arredios e faiscantes, parecem tanto olhos de gato como de cordeiro. O pelo dele é macio.
O seus movimentos parecem ao mesmo tempo saltitantes e furtivos.
Estendido ao sol, no parapeito da janela, ele se enrosca e ronrona.
No campo, corre como louco, e ninguém o alcança. Foge dos gatos e quer atacar os cordeiros.
Nas noites de lua, o seu passeio preferido é a calha do telhado.
Ele não sabe miar e tem pavor dos ratos. Passa horas e horas na frente do galinheiro. Mas nunca matou nenhuma galinha.
Eu o alimento com leite; é do que ele gosta mais. Ele sorve o leite em grandes goles por entre seus dentes de caçador.
Naturalmente ele é um grande espetáculo para as crianças. Domingo pela manhã, é hora de visita. Eu me sento com o bichinho no colo e as crianças da vizinhança me rodeiam.
Elas falam então as mais extraordinárias perguntas que nenhuma pessoa consegue responder:
- Por que só existe um animal assim?
- Por que só você tem um animal assim?
- Já existiu algum igual a ele antes?
- O que vai acontecer com ele depois que ele morrer?
- Ele não se sente só?
- Por que ele não tem filhos?
- Como é o nome dele?
etcetera.
Um dia as crianças trouxeram um gato. Contrariando as suas esperanças, o bichinho não reconhecer o gato, nem o gato reconheceu o bichinho.
Em outro dia as crianças trouxeram um cordeiro. Os dois bichos se olharam mansamente com seus olhos animais e se aceitaram um ao outro como uma coisa feita por Deus.
Em meu colo, o animalzinho não sabe o que é medo. No meu colo, ele não tem vontade de perseguir outro bicho, e nenhum bicho o persegue. Ele gosta de ficar escondidinho perto de mim.
É muito apegado à família que o criou. Essa fidelidade à família não é uma coisa esquisita num bicho, é bem normal, é o instinto de um animal que tem muitas pessoas conhecidas, mas nenhum parente de verdade.
Para ele, o apoio que nós damos é sagrado.
Algumas vezes, eu tenho de rir, quando ele fica respirando depressa, ofegante, e se enrosca nas minhas pernas, sem querer se afastar de mim. Como se não bastasse ser gato e cordeiro ele quer também ser cachorro.
Um dia eu estava sem dinheiro - isso acontece com qualquer um - e pensei em vender o animalzinho. Pensando nisso, eu me balançava na cadeira do meu quarto, com o animal nos joelhos. Baixei os olhos e vi lágrimas que gotejavam em seus longos bigodes.
Eram lágrimas suas ou minhas?
Teria esse gato de alma de cordeiro um orgulho humano?
Não herdei muito de meu pai, mas vale a pena cuidar dessa herança.
Ele tem a inquietude dos dois: a do gato e a do cordeiro, que são muito diferentes. Por serem duas inquietudes tão diferentes, quase não cabem dentro dele.
Às vezes ele pula na poltrona, põe as patas dianteiras no meu ombrã e chega seu focinho perto do meu ouvido. É como se ele me falasse, e de fato ele volta a cabeça e me olha de uma maneira diferente para observar o efeito de sua comunicação. Para agradá-lo finjo que entendi e balanço a cabeça. Ele pula no chão e fica brincando por perto.
Às vezes ele parece tão infeliz por ser assim, metade uma coisa, metade outra, que penso numa maneira de salvar esse animal. Talvez a faca de um açougueiro seja sua salvação.
Mas ele é uma herança, e não posso fazer isso. Portanto, ele deverá esperar até que se acabe a sua respiração.
Mas de vez em quando ele me olha, com olhos que parecem se um ser humano, como se esperasse de mim que eu o salvasse, ou dissesse para ele quem ele é de verdade.
Um gato ou um cordeiro?
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A escritora Ana Miranda adaptou para crianças um conto de Franz Kafka, a partir da tradução de Jose Luis Borges.
Quem é o escritor Franz Kafka?
Em vida, os livros do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) só eram conhecidos pelos amigos. Em um de seus livros mais famosos, "A Metamorfose", o personagem Gregor Samsa se transforma num inseto gigante.
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