Atriz Clarice Niskier seduz pelo despojamento, mas peça apenas repete frases de efeito
A pedido de seus discípulos, um rabino moribundo transmite seu veredicto final sobre o mundo: "A vida é uma xícara de chá". Perplexos diante da enigmática revelação, estes ousam pedir maiores explicações ao mestre. Ele reúne suas últimas forças para dizer: "Está bem. Então a vida não é uma xícara de chá".
Divulgação |
Atriz Clarice Niskier atua na peça, em cartaz no teatro Eva Herz, no Conjunto Nacional |
Bem-aventurada a cultura judaica, que transmite sua tradição por meio do senso de humor e do questionamento irrestrito. De Jesus Cristo a Freud, sempre é útil consultar um rabino, e esse tênue limite entre o óbvio e o profundo está na essência também do budismo, outra fonte de paz em tempos ambíguos.
Nilton Bonder sabe explorar esse filão com boa fé e sucesso editorial, em um democrático semear de bom senso. Em "A Alma Imoral", por exemplo, a acurada observação de que, no Êxodo, Deus não abre o mar Vermelho para o povo escolhido passar, mas o faz só depois de se comover com sua travessia suicida, pode servir tanto de inspiração para um empresário em falência quanto para um líder do MST. "Te ajude, que Deus te ajudará" poderia ser um provérbio de qualquer cultura, na sua simplicidade. Clarice Niskier, budista e judia, quis fazer disso um espetáculo.
Seduz sobretudo pelo despojamento. Nua, em um palco quase nu, tendo como figurino um único tecido preto que se molda em referências das várias culturas evocadas, Niskier se dirige diretamente ao público. Não é de estranhar o grande sucesso que mereceu em meio a um mercado tão sufocado por deboches e melodramas. Como uma lufada de ar fresco, a dramaturgista-atriz encarna a própria alma descrita por Bonder, livre por essência, cheia de uma imoralidade cordata, contribuindo com a tradição por meio da transgressão.
Material escasso
Infelizmente, essa ousadia não escandalosa acaba sendo material escasso para a teatralidade. A nudez impressiona nos primeiros momentos, mas logo se adequa e se torna quase previsível; uma marcação em princípio coreográfica e sensual se torna quase um cacoete depois de muita repetição. Limita-se a uma leitura em uma livraria, o que é um filão importante, mas menor, do mercado teatral.
O premiado figurino de Kika Lopes tem a solenidade e a elegância gregas, mas se limita a um só efeito. Entre o cio e o luto, professora que explica sem sofrimento os torvelinhos de sua própria alma, Niskier se impõe como uma Fedra serenada pela somaterapia. Procura fugir das vulgaridades da auto-ajuda, mas também não visa uma busca dialética.
"Alma Imoral" não impõe verdades, mas também não levanta polêmicas. Não dialoga com a platéia: atendendo a pedidos, repete suas frases de efeito, talvez imaginando elucidar pela exasperação. Cristalizando bom senso em ditos populares, o espetáculo aos poucos soa como a xícara de chá do rabino: não é nada, não é nada, acaba não sendo nada mesmo.
A Alma Imoral
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h. Até 15/6
Onde: Livraria Cultura - teatro Eva Herz - Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, Bela Vista, tel. 3170-4059)
Quanto: R$ 50
Avaliação: regular
Livraria da Folha
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