Leia íntegra da entrevista com diretor do documentário 'The Act of Killing'
Leia abaixo a íntegra da entrevista com o cineasta Joshua Oppenheimer, diretor do documentário "The Act of Killing". O filme chega ao Brasil no Festival de Cinema do Rio, que começa no mês que vem.
Carrascos de massacre recontam mortes até em forma de musical
*
Folha - Queria que falasse um pouco da sua história, como você se tornou documentarista. Li que você nasceu no Texas, estudou em Harvard.
Joshua Oppenheimer - Eu cresci nos EUA, fui para Harvard. Eu estudei cinema, mas antes tinha estudado filosofia e física teórica. Então o cinema foi minha maneira de explorar o que está está escondido, as histórias minúsculas, as fantasias, ficções que compõem a nossa realidade aparentemente factual. Meu mentor, Dusan Makavejev --ele fez filmes como "Misteries of the Organism", "Sweet Movie"-- é um grande cineasta iuguslavo que combinou ficção e documentário tentando achar esse tipo de intersecção [entre ficção e documentário]. E logo depois da universidade me mudei para o Reino Unido e em 2001 fui pela primeira vez para a Indonesia para fazer um filme sobre trabalhadores rurais que plantavam dendê lutando para organizar um sindicato --no período posterior à ditadura de Suharto sindicatos eram ilegais. E eles precisavam desesperadamente de um sindicato, porque as trabalhadoras estavam usando um herbicida que estava destruindo seus fígados e as matando na faixa dos 40 anos. E eles tinham medo de organizar um sindicato por que seus pais, tios, avôs tinham estado num sindicato, em 1965, e foram acusados de serem comunistas ou simpatizantes de comunistas pelo então novo regime militar, jogados em campos de concentração e despachados pelo Exército para serem mortos por grupos paramilitares. E eles temiam que isso pudesse acontecer com eles de novo.
Nós fizemos aquele filme em 2001 e 2002 e eu imediatamente senti como se chegasse à Alemanha depois do Holocausto e descobrisse que os nazistas ainda estavam no poder. E senti que essa situação era tão profunda, tão importante, tão poderosa que eu teria que voltar e trabalhar nisso o tempo que fosse necessário, e isso tem tomado anos da minha vida. Então eu voltei em 2003 para continuar filmando nessa comunidade de sobreviventes [da ditadura] e todas as vezes que nós filmávamos juntos o Exército vinha e nos parava. Talvez eles achassem que a gente estivesse interessado em expor o que ocorreu em 1965 [quando os assassinatos em massa começaram]. Então conversamos com a comunidade de defensores dos direitos humanos e perguntamos: "Na Indonésia isso é uma má ideia, a história é muito sensível, não deveríamos estar fazendo esse filme?", e todos diziam: "Não, esse filme é muito importante. Nós precisamos de um filme que exponha não apenas essa horrível situação, o que ocorreu em 1965, mas um filme que demonstre a natureza do atual regime, a maneira como esse passado dramático sustenta um regime inteiro de favorecimento, impunidade, corrupção e medo e, particularmente, oprime os sobreviventes. Nós precisamos disso não tanto para o público internacional, mas para o público da Indonesia, nós precisamos de um filme que seja como a criança que aponta e diz: 'O rei está nu'. Todo mundo já sabe, mas as pessoas têm medo demais para dizer"[, disseram.] Então os sobreviventes disseram: "É provavelmente muito perigoso filmar conosco, por que você não filma os agressores? Eles vão se vangloriar, vão parecer ter orgulho do que fizeram, então o público verá porque temos tanto medo e eles verão a natureza de todo esse regime".
Então comecei a filmar todo o carrasco que eu achava, em toda a plantação, subi a cadeia de comando [da ditadura] até [chegar a cidade indonésia de] Medam e Anwar [Congo, protagonista do documentário] foi o 41 pessoa que filmei.
E por que esse interesse na Indonésia?
Quando eu fui enviado para fazer o filme sobre os trabalhadores rurais, eu poderia ter sido enviado para qualquer lugar. Na verdade, foi o Sindicato Internacional de Trabalhadores Rurais e no Setor de Alimentação que comissionou o filme, chamado "Globalisation Tapes", pois eles queriam documentar comunidades de trabalhadores lutando para se organizarem em sindicatos, como uma ferramenta educacional para trabalhadores rurais de todo o mundo. Eles pensaram em nos mandar para a Índia, para a Colômbia, e acabaram nos mandando para Indonésia. E o sentimento, como eu disse, foi esse de estar chegando na Alemanha 40 anos depois do Holocausto e ver que os nazistas ainda estavam no poder e que essa era uma terrível situação. [Senti que essa situação] demandava seja lá o que fosse necessário. Então eu me doei à Indonésia. Senti que eu tinha uma dívida, que eu tinha uma espécie de responsabilidade moral de tratar desse assunto. Mas gostaria de dizer uma coisa: não é uma situação extraordinária. É uma situação terrível, mas talvez a coisa mais terrível é quão comum ela é. Eu vivo na Dinamarca hoje, e [a Dinamarca] é uma das sociedades mais justas no mundo, uma dos mais iguais entre ricos e pobres. Mas tudo o que nós compramos nessa tão decente Dinamarca é produzida em lugares como a Indonésia, que passaram por histórias de horror, nos quais carrascos ainda estão no poder, pessoas que com suas vitórias construíram regimes de medo que são tão opressivos que as pessoas que fazem essas coisas que compramos, como esses trabalhadores que eu filmei, dos quais falávamos no início, são incapazes de entender o custo humano de tudo o que compramos, incorporado na etiqueta que pagamos. Então, mesmo na Dinamarca e certamente nos EUA todos dependemos de Anwar, seus amigos e congêneres ao redor do mundo para manter o que compramos barato. Nesse sentido, "The Act of Killing" não é sobre essa distante e invertida realidade. É sobre esse ponto cego da nossa realidade. E todos somos convidados desse banquete canibalístico de Anwar e seus amigos. Nós talvez não estejamos próximos ao massacre, mas estamos sentados à mesa.
Aliás, alguns criticaram seu filme por ele não apresentar uma contextualização histórica precisa, mas talvez isso ajude a entender o filme não como uma história local, mas como algo que tem a ver com qualquer pessoa.
Algumas pessoas disseram que queriam uma cartilha histórica, como um filme de TV a cabo. Há diversas questões aí. A primeira coisa é que esse filme não é sobre o que ocorreu em 1965. Ele é completamente preciso no que mostra, mas ele é sobre o agora, sobre o que acontecia enquanto eu filmava cada carrasco que eu achava. No início, minhas perguntas eram sobre o que ocorreu em 1965. Mas todos se gabavam, se ofereciam a me levar aos lugares em que eles mataram, para me mostrar como eles matavam, com um aparente orgulho, e eu entendi rapidamente [isso] e comecei rapidamente a mudar as perguntas que eu fazia --o que estava acontecendo agora em 2005, em 2004, quando eu estava filmando todos esses carrascos? O que está acontecendo agora que explica esses homens estarem se vangloriando [das atrocidades]? Por que eles se vangloriam? Quem eles de fato vangloriam? Qual é a função de se gabar? Como eles imaginam que o mundo os vê? Como eles querem ser vistos pelo mundo? E, ao final, como eles veem a si mesmos? E essas questões são sobre o hoje, elas não são sobre 1965. E acho que não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo --criar uma lição histórica e expor o que acontece quando você constrói sua normalidade sobre horror e mentiras. Uma das lições é que não é apenas a sociedade da Indonésia que é criada sob horror e mentiras, mas nossa sociedade [ocidental] também. Eu não entraria nos detalhes [da relação entre] americanos e o genocídio sem fazer uma documentário histórico, mas a América, como espectadora, assombra o filme desde seu início.
Vendo seu filme, pensei algumas vezes na [filósofa alemã] Hannah Arendt e na "banalidade do mal" [teoria desenvolvida por Arendt em seus textos sobre o julgamento do dirigente nazista Adolf Eichmann, segunda a qual o Holocausto não foi realizado por pessoas monstruosas, mas por gente comum obedecendo a uma estrutura que tornou o genocídio normal]. Você acha que esse conceito se aplica ao que você mostra?
Acho que há algumas diferenças. Talvez a coisa mais importante que eu aprendi seja a celebração do assassinato em massa, a celebração da atrocidade. Não é algo grotesco e estranho. Todos nós, todos os dias, justificamos nossos atos para nós mesmos. Nós todos dizemos mentiras para nós mesmos. Todos nós buscamos fugir dos aspectos desagradáveis da nossa realidade por meio de fantasias, comumente fantasias toscas, de segunda mão, sobre quem nós somos --filmes de Hollywood, seja lá o que for. Uma das coisas que eu aprendi quando conheci Anwar, e meio que persisti com Anwar pois sua dor estava perto da superfície, foi a celebração do genocídio. No início, isso parece ser um sinal de que eles não têm remorso. Na verdade, é o oposto. É um sinal de que eles sabem que fizeram algo é errado e de que eles estão desesperadamente se justificando para si mesmos. Há um paradoxo no coração do "The Act of Killing". É um paradoxo trágico. Uma vez que você corrompe você mesmo matando uma pessoa e se safa e se justifica e o Estado justifica seu ato --porque você é humano, porque você sabe que é errado, porque você tem uma consciência-- isso ironicamente leva a uma espiral descendente de corrupção e mal. Você tem então que oprimir os sobreviventes. Para que eles não desmintam sua versão da história, você tem que culpá-los pelo o que ocorreu com eles próprios, pois essa é parte da sua desculpa para o que você fez. O que significa na prática que agora você pode impunemente extorqui-los no mercado [como um ex-carrasco faz com um chinês em uma cena mostrada no filme], roubar a terra deles, e, acima de tudo, você tem que voltar a matar. Por que se o governo diz: "Agora, mate essas pessoas", outro grupo de pessoas, pelos mesmos motivos que você matou as primeiras pessoas, se você se recusar da segunda vez é o equivalente a admitir que estava errado da primeira vez. Ironicamente, precisamente porque somos humanos liberamos essa espiral descendente de mal. E acho que isso é verdadeiro para todas as sociedades. Nos EUA há impunidade para a tortura. E há um custo, há definitivamente um custo. Por sabermos que é errado, isso nos corrompe, nos afasta da realidade, e todos nós nos tornamos carrascos.
O seu filme parece levantar tantas questões, misturar tantas camadas da realidade, que ao final me pergunto se ele dá alguma resposta.
Acho que o filme dá sim respostas. O filme testemunha e documenta essa espiral descendente de corrupção e mal. [O que ele mostra é] que a razão não pode ser separada do fato de que nós, humanos, somos seres morais. Que versão você viu do filme?
A mais longa [com quase 2h40].
Bom. Quando Anwar começa a sentir remorso, ele se jogo em seu pior "eu", ele corta um urso de pelúcia [em uma das cenas das reencenações fictícias], certo? Você vê esses atos maldosos como uma resposta direta, humana ao ódio criado pela reconhecimento de que o que ele fez é errado. Acho que o filme mostra também mostra que nós, seres humanos, estamos sempre nos refugiando, fugindo, criando nossas realidades ao contar histórias sobre ela. Se você pensar, o que está alimentando Anwar em todo o processo de criar os filmes de ficção é a consciência dele. Ele vê a si mesmo no telhado no início do filme [Oppenheimer se refere ao momento do filme em que Anwar vê uma das primeiras cenas gravadas com o documentarista], fica muito incomodado, ele vê que há algo errado ali e decide... Acho que ele sabe o que está errado com aquela imagem no telhado [em que Anwar reconta seus assassinatos de maneira irônica]. Ele vê que os assassinatos estão errados. E ele não ousa dizer [para a câmera], porque ele nunca foi forçado a dizer que estava errado. Ele evitou desesperadamente isso toda a sua vida. E em vez disso ele acha que tem que mudar a roupa, a maneira de atuar [ao rever a cena, Anwar diz que tem que se vestir de maneira mais agressiva da próxima vez que reencenar os assassinatos]. Ele começa a embelezar [as reencenações]. Então o que estava abastecendo esse processo de embelezamento, desde o início, é a sua consciência. Na verdade, acho que é a consciência que está abastecendo esses atos meio que malévolos de dançar nos locais onde ele matou pessoas. No sentido de que, aos insistir em dançar nesses locais [como Anwar faz no telhado, imitando um passo de cha-cha-cha], ele está dizendo que esses assassinatos não significam o que eles realmente significam. Se torna inevitável que, eventualmente, por meio das reencenações, que isso se torne a cela escura na qual ele reconhece o horror que fez.
E acho também que esses filmes meio que tomam o documentário. Então ele deixa de ser um documentário e se torna uma espécie de delírio febril, no qual nos perdemos na imaginação, nos pesadelos de Anwar.
Esses filmes de fato existem?
Não, eles só estavam produzindo imagens para o nosso filme. Eu quis saber como esses homens viam a si mesmos, qual era o efeito do vanglorio deles na sociedade e propus de maneira bem aberta: "Olhe, você participou de um dos maiores morticínios da história da humanidade. toda a sua sociedade é baseada nisso, suas vidas são moldadas por isso, vocês querem me mostrar o que vocês fizeram? Eu quero entender o que isso significa para a sua sociedade, então me mostrem o que vocês fizeram, da maneira que vocês quiserem. Eu filme o processo, eu filmo as reencenações, colocamos essas coisas juntas, criamos um documentário que respondam a essas questões". Eles sabiam desde o início que eles estavam fazendo cenas apenas para o "The Act of Killing".
E você teve alguma dúvida ao usar essa técnica narrativa?
Não, pois meu comprometimento moral, desde o início, era em expor um regime de impunidade em nome dos sobreviventes da ditadura, da comunidade de direitos humanos, para os próprios indonésios. E nunca, nem por um segundo, ainda que o processo tenha me tornado pessoalmente próximo a Anwar, nem por um segundo eu esqueci minha condenação moral aos atos dele, mesmo que eu nunca tenha me permitido condená-lo no todo, como pessoa.
O filme tem transformado totalmente a maneira como a Indonésia fala sobre seu passado. A mídia da Indonesia tem produzido edições duplas, especiais de revistas jornalísitcas de alcance nacional. reportagens investigativas nas TVs e em jornais sobre o genocídio, chamando o genocídio de genocídio, basicamente quebrando um silêncio de 47 anos, tudo como resultado do filme. O filme foi passado centenas de vezes em centenas de cidades, ele passa várias vezes todos os dias.
Como o governo da Indonésia respondeu? Você e sua equipe na Indonésia têm sido alvo de alguma ameaça?
Minha equipe na Indonésia continua anônima, para garantir a segurança dela. Aliás, eu estou sempre falando com eles. Recebi algumas ameaças ocasionais, pelo Twitter e Facebook.
O governo ficou em silêncio. Os principais jornalistas, cineastas, escritores, historiadores e educadores da Indonésia estão apoiando o filme, de uma maneira bem incisiva. O governo entendeu que condenar o filme ou bani-lo imediatamente criaria um problema de relações públicas.
Dito isso, se nós submetêssemos o filme aos censores [da Indonésia], para saber se ele poderia ser exibido em cinemas de maneira normal, comercial, acho que haveria pressão de militares ou dos [grupos] paramilitares [dos quais fazem parte boa parte dos ex-carrascos da ditadura] para banir o filme.
O Exército disse que "nós temos que estar prontos para exterminar os novos comunistas". E, quando questionados quem eram os "novos comunistas", eles disseram: "Pessoas que estão se juntando para ver certos filmes". Então havia uma ameaça ali.
Bem, eu não vou à Indonésia nesse exato momento e isso é uma das coisas mais tristes. [O cineasta alemão e produtor-executivo do filme] Werner Herzog disse para mim: "A arte não faz diferença". Então ele sorriu e falou: "Até o momento em que faz". A parte mais triste de lançar o filme é que eu não posso estar na Indonésia, que é um lugar que amo tanto, para fazer parte do momento em que esse filme está fazendo diferença.
Para um brasileiro, uma das coisas interessantes em relação ao filme são as similariedades entre o que ocorreu na Indonésia e no Brasil. Um ditadura violenta, feita também com o apoio dos EUA, sob a mesma política de contenção do comunismo, e também usando um grupo paramilitar para o serviço sujo [no caso brasileiro, a Oban]. Ainda que, claro, não tenhamos vivido um genocídio nem parecido com o da Indonésia.
Você me perguntou antes que realidade o filme mostra. O filme testemunha a fantasia febril da impunidade.
Uma das coisas que me chama atenção é que, aqui, os antigos comunistas venceram e hoje estão no poder e o que ocorreu na nossa ditadura é hoje condenado. Mas, ainda assim, me parece que nós sabemos menos sobre o que ocorreu aqui do que os indonésios sobre o que houve na Indonésia, onde esses atos fazem parte da história oficial, e são sempre repetidos.
Sim e não. Acho que a maior parte das pessoas da Indonésia não sabem os detalhes das mortes. Eles só sabem que algo horrível aconteceu. E acho também que o medo faz as pessoas esquecerem o que elas sabem. Uma maravilhoso escritor da Indonésia escreveu sobre terrorismo de Estado, dizendo que "terrorismo de Estado é mais efetivo quando as pessoas nem sequer percebem que têm medo --elas só se autocensuram".
Então, se você voltar à imagem do rei nu, as pessoas podem se esquecer que o rei está nu, de tanto tempo que elas estão mentindo para si próprias.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade