'Teatro é a arte do conflito', diz diretor do mítica companhia alemã Schaubühne
Diretor do teatro Schaubühne, Thomas Ostermeier, que traz a São Paulo este fim de semana "Um Inimigo do Povo", renova a trama de Ibsen, transformando o autor norueguês em um dramaturgo do século 21.
Na tentativa de fazer ressoar em seu público conflito entre interesse econômico e social retratado no texto, faz atualizações na obra e rejuvenesce seus personagens. "Os homens chegam no poder hoje mais cedo do que quando o texto foi escrito", justifica ele.
Teatro mítico de Berlim visita o Brasil pela primeira vez
Ostermeier leva à cena comportamentos e contradições de sua geração. Além de se vestirem de maneira casual, os personagens passeiam com cachorro, cantam rock e ajudam a cuidar dos filhos em cena.
Arno Declair/Divulgação | ||
Cena da peça 'Um Inimigo do Povo', de Thomas Ostermeier |
Os protagonistas atiram diálogos cortantes um ao outro e chegam a realizar um debate em cena, no qual os espectadores também podem participar. Voam sobre o palco farpas como: "Não estamos diante da crise de uma sociedade, mas do declínio de uma civilização". Ou: "Ao contrário daquilo que nos é forçado desde a infância, a inteligência não consiste em adequar-se. Tal inteligência é a do escravo". Ou ainda: "Nós lidamos com uma sociedade que está em estado de morte clínica ligada a aparatos de massa que prolongam sua vida e que espalha para a atmosfera do planeta um gás podre."
Ostermeier opta por enfatizar sobre o palco a guerra que assola a humanidade de hoje cotidianamente. "O homem não quer ser parte do esquema de corrupção próprio ao capitalismo, mas, ao mesmo tempo, almeja uma vida boa. Como podemos unir estes dois anseios sem que com isso tenhamos que fazer parte da máquina capitalista?", pergunta ele.
A questão permanece no ar, inconclusiva, também ao fim do espetáculo. Em entrevista para a Folha, falou sobre "Um Inimigo do Povo", como renovou o público do Schaubühne, e o que o move nesta empreitada. Confira a conversa abaixo.
*
Folha - Você construiu uma verdadeira parceria com Ibsen. Foram cinco trabalhos em conjunto até o momento. O que o atrai neste autor?
Thomas Ostermeier - O diálogo entre Ibsen e a nossa realidade. Para mim o que Ibsen tem de mais interessante são seus personagens, que enfrentam verdadeiras batalhas em suas vidas. Tenho a impressão de que em muitas peças do fim do século 19 e começo do 20, como as de Tchecov, os personagens não lutam por amor, por família, por uma vida melhor. Limitam-se a sofrer. Acho importante esta luta presente em Ibsen, pois sinto que cada vez mais acreditamos menos no mundo.
Como conseguiu transformar Ibsen num autor do século 21?
Como Ibsen morreu há mais de um século, não há problema de direito autoral. Sendo assim, posso reescrever seus textos. É isso que costumo fazer. Mantenho o esqueleto de suas peças, mas agrupo personagens, corto e faço adaptações para que a obra crie fricção com a realidade.
Que questão buscou lançar em "Um Inimigo do Povo"?
"Um Inimigo do Povo" é uma crítica sobre o mundo contemporâneo. A peça fala sobre como o poder econômico venceu o politico. Para mim esta é a principal questão da nossa realidade. A política abriu mão do poder em prol da economia. Para mim, ela precisa reaver o poder.
Sua intenção foi apresentar este conflito sem tomar partido?
Eu entendo as duas visões apresentadas na peça. Os personagens não podem agir diferente do que fazem, não tem escolha. Se você é acionista de uma empresa, precisa obter lucros. Caso contrário vai ser mandado embora. Não pode se dar ao luxo de pensar no meio-ambiente, no que for. Para mim esta não é uma questão de pessoas, mas de estrutura. A outra visão da peça é das pessoas progressistas. Ou seja, artistas, jornalistas, pensadores que refletem, sentem e percebem a existência de um problema na nossa sociedade.
Por que os clássicos o atraem tanto?
Não é uma predileção. Todas as peças bem-feitas que apresentam questões importantes me atraem. Gosto muito de autores contemporâneos. Mas como não é sempre que um grande texto da atualidade se apresenta, aproveito a oportunidade para me debruçar sobre um clássico, reescrevê-lo e transformá-lo numa obra contemporânea.
Desde que você começou a dirigir o Schaubühne, você renovou o público do teatro, atraindo jovens. Como conseguiu tal proeza?
Não pensando sobre isso. Não se deve pensar em como atrair uma audiência. Se fizer isso vai, de certa maneira, trair suas questões, suas histórias. Tudo o que faço é falar sobre meus conflitos e contradições, tentando ser o mais sincero possível comigo mesmo. Talvez por isso as pessoas percebam uma verdade no meu teatro. Uso esta arte para pesquisar o humano. E eu sou o ser humano que melhor conheço. Ou assim espero (risos). Fico feliz com o fato de que muita gente compartilha dos mesmos interesses, das mesmas questões, que eu. Para mim isto é um milagre, o paraíso, um sonho.
É normal ouvirmos que o teatro está em crise. Você acredita nisso?
De jeito nenhum. Para mim vivemos um momento teatral especial, melhor do que há alguns anos. Isto se deve aos conflitos da sociedade hoje, que estão muito fortes. A vida na atual realidade capitalista não está fácil. E teatro é a arte do conflito. Quando, como agora, temos contradições se agigantando na sociedade, usamos o teatro para debater estas questões, e consequentemente entender melhor o que acontece. O teatro, especialmente o Schaubühne, oferece ao público histórias que ajudam o espectador a entender melhor sua realidade. Isto não se encontra em nenhuma outra mídia: no cinema, no jornal e definitivamente também não na televisão. Felizmente existe o teatro para preencher esta lacuna.
Qual a força do teatro, na sua opinião?
A força do teatro para mim é, em primeiro lugar, o senso de comunidade que esta arte gera. O teatro existe para ser compartilhado com um grupo de gente. Não há muitos lugares no mundo de hoje em que compartilhamos algo sobre a vida humana com outras pessoas. Na maioria das vezes estamos sozinhos. Outro aspecto da força do teatro, para mim, é o fato dele acontecer ao vivo diante do espectador, e de ser impossível retornar ao momento compartilhado. O teatro faz com que nos deparemos com a morte. Depois de cada apresentação, há uma morte. Isto é, de certa forma, como a vida. Por este aspecto, o teatro está bem próximo da verdade da vida. Sua beleza é que ele guarda ao mesmo tempo vida e morte.
E qual a fraqueza do teatro, na sua opinião?
Ela aparece quando o teatro é feito com diretores e atores ruins. Nada pior do que isso.
O que move sua arte?
O amor pelos atores e o interesse em descobrir mais sobre vida, humanidade, sobre quem somos. Uso o teatro para entender melhor o homem, para descobrir a razão de sermos como somos.
Você passou a se entender melhor depois que começou a trabalhar com teatro?
Não. (Risos). É interessante perceber isso. Na verdade, acho que quanto mais você pesquisa, menos você entende as coisas. E mais você busca este entendimento.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade