Crítica: Obra sobre J.D. Salinger utiliza fontes suspeitas
Como humilhar um autor que já foi acusado de beber xixi pela própria filha e de ser um manipulador pela ex-mulher, ambas autoras de livros sobre ele? Diga que o sujeito só tinha um testículo e que isso motivou sua reclusão.
A teoria do testículo tímido é um dos grandes "fatos" inusitados de "Salinger", biografia escrita por David Shields e Shane Salerno, roteirista de "Alien vs. Predador". A obra --lançada simultaneamente a documentário homônimo nos EUA-- sairá no Brasil em janeiro, pela Intrínseca.
O filme, ainda sem data de estreia no Brasil, parece um "book trailer" do livro, e o livro funciona como apoio do filme. Os dois são ótimos materiais de divulgação de um produto final que nunca veio.
Apesar de destroçada pela crítica, a biografia atraiu atenção ao oferecer o que todos se julgam no direito de possuir: a vida pessoal do sujeito.
J.D. Salinger (1919-2010) é um autor complicado de biografar. Saiu de cena no auge do reconhecimento. Seu último conto foi publicado em 1965, pela "New Yorker".
Depois, vieram o silêncio e a recusa em falar à imprensa. Em 1987, saiu de sua masmorra para processar Ian Hamilton, que escreveu uma biografia com várias passagens de cartas pessoais do escritor.
A biografia de Hamilton foi dilacerada, e a vitória de Salinger abriu precedente para decisões que atrapalham a vida de biógrafos desde então.
Shields e Salerno esperaram o biografado morrer. Dizem ter entrevistado mais de 200 pessoas, mas os dados são um mosaico de outros títulos sobre o autor e de fontes suspeitas ou anônimas.
A informação anatômica foi confirmada por duas mulheres que dizem ter se relacionado com ele e que preferiram não se identificar.
É de se questionar alguém que dá um depoimento desses sobre um ex-parceiro sexual (de 91 anos, isolado num chalé). O livro não questiona.
O que há são depoimentos de gente que não via Salinger desde os anos 1950, mas se considera fonte apropriada para falar de sua vida.
A obra joga dados conhecidos sobre o autor de "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951) como se fossem surpreendentes: ele gostava de mulheres mais novas, tinha problemas sexuais, recebia os adolescentes da cidade até uma garota escrever sobre ele no jornal local e não era companhia das mais fáceis.
ATIVO
Hamilton conta que, no julgamento, imaginava que veria um ermitão idoso, mas encontrou um homem forte e ativo. A reclusão do autor era relativa à imprensa, não à vida.
A nova biografia demorou mais de duas décadas para concluir o mesmo: Salinger viajava, casava, tinha filhos, casos, amigos. Só não estava disposto a publicar ou a comentar o mundinho literário.
A falha crucial do filme e do livro não são os equívocos metodológicos, mas, antes, a noção determinista e mecânica de associar vida e obra, como se a primeira entregasse a chave interpretativa da outra.
Isso leva a conclusões simplistas, como a de que Salinger é um grande autor devido a traumas como soldado na Segunda Guerra -apesar de ter escrito boa parte de "O Apanhador..." antes disso.
Os biógrafos citam trechos de livros de Salinger e os associam a sua vida, como se a literatura fosse toda uma grande indireta de Facebook, um bilhete passivo/agressivo.
A informação crucial também é confirmada só por fontes anônimas: segundo os autores, Salinger deixou obras inéditas para que fossem publicadas entre 2015 e 2020.
Os trabalhos incluiriam cinco novas histórias sobre a família Glass (grupo de personagens recorrente na obra de Salinger); um romance sobre seu relacionamento com a primeira mulher, Sylvia (que o livro acusa de ter sido informante da Gestapo); uma novela em forma de diário sobre a guerra; um manual de filosofia Vedanta e novas histórias sobre Holden Caulfield, de "O Apanhador...".
É mais do que os leitores poderiam esperar após meio século de silêncio. Mas Coldplay na trilha sonora do documentário já é vandalismo.
SALINGER
AUTORES David Shields e Shane Salerno
EDITORA Simon & Schuster
QUANTO cerca de R$ 50 (mais taxas) na Amazon.com (720 págs.)
AVALIAÇÃO regular
Livraria da Folha
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