Análise: Concepção harmônica fez Paco transcender o flamenco
A morte do violonista Paco de Lucía, aos 66 anos, surpreendeu o mundo musical. Em forma e em plena maturidade, ele havia tocado em São Paulo - depois de uma ausência de 16 anos - no dia 11 de novembro passado.
Foi um belo show, mas ainda mais especial foi vê-lo de perto um mês antes em Havana (Cuba), onde decidiu estrear a turnê atendendo ao pedido do compositor contemporâneo Leo Brouwer.
Quando os dois músicos —de formações tão diferentes— se abraçaram após uma performance de mais de duas horas que deixou o público em estado de graça, o compositor de vanguarda repetia a palavra chave para entender Paco: "harmonia!".
Paco está para o flamenco como Astor Piazzolla (1921-1992) para o tango. Como o argentino, não é um purista: sua música coloca a tradição em perspectiva, ele invariavelmente arrisca perder aquilo que não pode ser perdido.
As estruturas de sua música saem dos dedos do improvisador, da escuta de padrões rítmicos implícitos, e do diálogo com outros músicos —como no antológico trio com Al Di Meola e John McLaughlin nos anos 80.
Suas escalas rapidíssimas, densas e claras internacionalizaram o flamenco e passaram a ser imitadas por estudantes de violão ao redor do mundo. Mas nunca eram efeitos: uma escuta microscópica revela o comando de sutilezas fraseológicas em cada gesto.
Ao cumprimentá-lo em Havana após o show, notei que estava praticamente sem unhas na mão direita, o que torna difícil explicar a qualidade sonora. Pareceu uma pessoa simples, com jeito interiorano e olhar triste.
Mas no palco estava em casa. Furava os estilos sem raiva, com elegância. Dava espaço à individualidade de todos os músicos, mas em nenhum momento a música perdia o fio.
Sua concepção rigorosa saía do violão, da dança vertical e horizontal dos dedos a espalhar ao redor as dores da vida.
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